São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

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Chinatowns

O arquiteto e urbanista Jorge Wilheim discute o modelo de desenvolvimento de Pequim e Xangai e seus desafios imediatos, como poluição e desigualdade social

Nas principais cidades chinesas, o trato das áreas verdes é impecável: longas avenidas ladeadas por belas árvores

Andrew Wong - 26.set.2003/Reuters
Mulher fotografa obras da Bienal de Arte de Pequim, em 2003


JORGE WILHEIM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao visitar a China, é preciso levar em conta três premissas básicas: o seu espaço continental, definindo a escala de todas as intervenções humanas; o tempo dessa cultura, que se distribui por cinco milênios repletos de inovações; e a população, cujo número (1,3 bilhão) estabelece desafios próprios.
Com isso em mente, entrei na grande praça Tiananmen, em frente à Cidade Proibida, símbolo histórico do poder chinês, ao lado de boa parte dos 12 milhões de turistas chineses que aproveitavam os dez dias de férias oficiais.
Pequim foi fundada pelos mongóis no século 13. Ocupa uma vasta planície e ainda obedece aos eixos principais em cujo centro está a Cidade Proibida. Dentro do quadriculado de suas amplas e imponentes avenidas, recentemente alargadas, se situava a trama habitacional de estreitas vielas ("hutongs") sobre as quais abriam-se as portas de acesso a pequenas casas, cujas dependências rodeavam diminutos pátios arborizados.
Essa encantadora estrutura doméstica, contida pelas vastas avenidas, está sendo substituída, atendendo à demanda decorrente do programa de reforma e abertura introduzido em 1978 pelo líder Deng Xiaoping.
Antigos hutongs dão lugar a edifícios destinados a escritórios, hotéis e apartamentos.

Olimpíada urbana
A demanda foi acrescida pela preparação dos Jogos Olímpicos de 2008, cujo inteligente planejamento distribui seus pavilhões pela cidade, sendo que boa parte dos ginásios novos pertencerão a universidades e outras instalações e estão em amplos parques rodeados por habitações.
É inevitável a comparação: quando da postulação olímpica de São Paulo em 2002, derrotada pela cartolagem esportiva sediada no Rio, quando também se propunha uma Olimpíada urbana, de modo a deixar um bom legado à cidade.
Havia estado em Beijing em 1995 e ficara impressionado com o fluxo intenso de bicicletas; hoje elas foram em boa parte motorizadas ou substituídas por motonetas, e a elas se somou um crescente número de automóveis. Duas conseqüências: as avenidas foram alargadas para acolherem sete pistas em cada sentido e gerou-se uma grande poluição, agravada pela queima de carvão na produção de energia.
Essa poluição não chega a ser atenuada pelos bem-cuidados parques, como o Back Lakes [Hou Hai, Lagos dos Fundos], que visitei em um dia ensolarado: famílias divertiam-se nos pedalinhos de seu grande lago, comiam e jogavam cartas, exercitavam-se com petecas e cintas coloridas, riam bastante ou cantavam, enquanto numerosos casais, alguns idosos, dançavam com elaborados floreios.
Antes de visitar outras cidades, como Xian, convém lembrar que, há 15 anos, houve uma importante alteração na distribuição dos centros de poder; no tempo de Mao Tse-tung (1893-1986), estes eram constituídos pelas unidades de produção, fábricas ou cooperativas agrícolas, em torno das quais se estruturavam os empregos, a habitação, as finanças.
Os centros geradores passaram a ser as regiões e cidades, as quais possuem razoável autonomia na captação de recursos e na disposição dos gastos. Essa medida de descentralização é democratizante; porém, em muitos casos, as lideranças locais do Partido Comunista Chinês acabam centralizando despoticamente as decisões.

Legado histórico
A arte chinesa desenvolveu-se por milênios, como pudemos apreciar no Museu Histórico de Xian. Começa no neolítico (3600-2000 a.C.), com a fabricação de instrumentos de jade, e com a idade do bronze, cujas grandes bacias decoradas e objetos da vida cotidiana caracterizaram a arte chinesa até 800 a.C. A esse período se seguiu o da terracota (seguido pelas obras em ourivesaria, baixo-relevos e gravuras), bem representado não apenas no museu como no mausoléu de Qin Shi-huang (259-210 a.C.), que hoje constitui a principal atração turística de Xian.
Esse notável imperador, além de unir os sete reinos de então, unificou a moeda, os pesos e medidas e a estrutura viária do imenso território, iniciando a construção da Grande Muralha, que objetivava defender o Império do Meio dos mongóis.
Depois de tantos feitos, era compreensível que se preparasse para ser acompanhado no além pela procissão de vasto exército de 6.000 soldados, oficiais e dignitários, todos esculpidos em terracota em tamanho natural, "desfilando" sob uma estrutura a ser coberta por terra e grama, descoberta acidentalmente em 1974. Ao visitar Xangai, é necessário ter em mente que o programa de "reforma e abertura" iniciado em 1990 reintroduziu na China o regime capitalista, sob a justificativa retórica da "maximização das forças produtivas". Para tanto, criaram-se 14 zonas em que se privilegia a modernização e a exportação e nas quais o direito de uso do solo é facilmente obtido.
Essas zonas se agrupam em três grandes regiões urbanizadas: o conjunto Pequim-Tianjin, a região de Xangai e suas cidades-satélite e, mais ao sul, a região de Hong Kong-Shenzen-Guangzhou. Cada uma dessas regiões está no estuário de um dos grandes rios e é dotada de importante porto. Uma quarta região de concentração, não litorânea, é Chongqing.
Xangai já era cidade dinâmica e importante em meados do século 19, quando a China foi derrotada na Guerra do Ópio, travada principalmente pela Inglaterra, objetivando forçar a China a conceder facilidades comerciais para as potências européias.
A última e decadente dinastia, além de abrir os portos ao comércio exterior, concedeu territórios aos cidadãos e empresas da França, Inglaterra e dos EUA. Essas concessões se ampliaram após a Guerra dos Boxers (1900), revolta nacionalista gerada por um grupo de lutadores de kung fu. A imperatriz regente Cixi, mestra das intrigas, viu-se obrigada a ceder mais, levando à desmoralização final do sistema dinástico (1911).

Paris do Oriente
Assim, enquanto ao longo do rio Huangpu, no longo cais denominado Bund, se instalaram as firmas exportadoras, em um bairro central localizou-se uma concessão francesa, cujos residentes obedeciam a leis francesas e pagavam impostos exclusivos. Essa colonização atípica resultou em forte imigração e no caráter cosmopolita da cidade. Este se consolidou no século 20, e Xangai passou a ser considerada a "Paris do Oriente", até que a invasão japonesa (1931) a paralisa.
A partir de 1980, Xangai retomou sua importância; seu prefeito propôs a abertura de uma expansão do outro lado do rio, na região rural de Pudong.
Porém só em 1990 Xiaoping autorizou sua implantação, e o governo investiu nela, dessa data até 2000, US$ 22 bilhões.
Por outro lado, dos US$ 570 bilhões de investimentos estrangeiros na China, hoje focalizando o setor imobiliário, boa parte foi feita nessa região.
A região urbanizada de Xangai tem mais de 16 milhões de habitantes (São Paulo aproxima-se de 19 milhões), em 6.377 km2 (contra os 8.051 km2 da Grande São Paulo), e constitui a principal área urbanizada da China. Tem uma renda per capita de US$ 4.505 (em São Paulo, segundo a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, essa renda era de US$ 4.918, em 2004). É menos poluída do que Pequim e especialmente que Chongqing, onde a poluição do ar é 2,9 maior que a de São Paulo.
Para compreender a velocidade com que Pudong e as demais transformações urbanas estão sendo realizadas é preciso apontar duas características da China de hoje: o solo pertence ao Estado, o qual concede o seu uso por meio de transferências, arrendamento, associações, de forma semelhante ao que seria no Brasil o direito de superfície.
Tal fato permitiu deslocar da área central de Xangai cerca de 12 mil unidades de trabalho e 400 mil habitações.
Crescem rapidamente as atividades do setor imobiliário à medida que a transferência de fábricas para a periferia da cidade e para outras cidades de sua região libera espaços para habitações e escritórios.
Enquanto as margens do rio Huangpu estão planejadas com parques, em Pudong edifícios altíssimos (a torre Jin Mao, onde o hotel Hyatt se instalou do 50º andar até o 88º, deixará de ser o edifício mais alto, ao se concluir o prédio vizinho) obedecem ao planejamento produzido em equipe por quatro renomados arquitetos: Massimiliano Fuksas, Toyo Ito, Dominique Perrault e Richard Rogers. Nessa região os investidores estrangeiros que obedeçam ao planejado têm seus projetos aprovados em menos de dez dias úteis.
Cresce também a taxa de motorização, e, para acolhê-la, viadutos e vias elevadas cruzam a cidade. Das 11 linhas de metrô planejadas, duas já existem e por elas chega-se a Pudong, a qual, aliás, liga-se ao lado oeste do rio também por três pontes e dois túneis.
Nas principais cidades chinesas, o trato das áreas verdes é impecável: longas avenidas ladeadas por belas árvores recentemente plantadas e com intermináveis canteiros de flores, sempre com jardineiros atarefados em sua manutenção. E sem anúncios, embora esses proliferem nas empenas e nos topos iluminados de prédios.

Problemas atuais
Esse crescimento frenético cria demanda de mão-de-obra para a construção civil, à qual se acrescenta a de empregos no setor terciário. Resultado: a imigração de 3 milhões de trabalhadores temporários, sem licença de residência urbana; donde sem direito à gratuidade da educação, subsídios para moradia, atendimento em saúde e pensões.
A situação tende a gerar uma economia informal, uma categoria de pobres urbanos, com trabalho, porém sem garantias, aumentando o distanciamento social.
A China enfrenta algumas questões cruciais e substantivas para alcançar o "desenvolvimento socialista harmonioso" propugnado pelo presidente Hu Jintao, sem que neste artigo haja espaço para desenvolver o tema: Produzir energia sem poluir o ambiente, colocando em sua matriz energética outras fontes além do carvão; regular o uso da água, recurso escasso; o envelhecimento da população ativa e a carência de mulheres; a diminuição da eqüidade social acarretada pelo regime neoliberal implantado; a necessidade de modelos rurais-urbanos que evitem a migração desmesurada para as metrópoles; as restrições à democracia, no partido e no regime; e o desafio teórico de uma reconceituação do socialismo (liberdade e eqüidade no século 21).


JORGE WILHEIM é arquiteto e urbanista, ex-secretário de Panejamento Urbano do município de São Paulo (2001-2004). É autor de "Cidades - O Substantivo e o Adjetivo" (ed. Perspectiva).


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