São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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Ponto de Fuga

O país do homem cordial


A dificuldade dos jovens artistas para mostrar o que fazem é enorme: estão fora do mercado, encontram poucos lugares para expor, para debater com outros artistas e com a crítica

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Chave de ouro: a Bienal do Vazio encontrou um fim condigno. Caroline Pivetta da Mota, de 23 anos, entrou no prédio do Ibirapuera com um grupo e pichou paredes [em 26/10].
Foi posta na cadeia. Uma moça de 23 anos foi mandada para aquilo que se chama cadeia no Brasil porque pichou parede. O argumento jurídico, destruição de patrimônio cultural, aplicado àqueles traços facilmente eliminados com uma ou duas demãos de pintura, é um despautério.
Pena prevista: dois ou três anos na prisão.
Caroline tem argumentos mais inteligentes para defender seu ato do que os curadores para responder sobre o "conceito" que presidiu a Bienal de 2008. Diz ela: "Estava me manifestando contra os desfavorecidos, os que não têm acesso àquela coisa toda".
A dificuldade dos jovens artistas para mostrar o que fazem é enorme. Estão fora do mercado das artes, circuito que se assanha só por valores artísticos lucrativos. Encontram poucos lugares para expor, para debater com outros artistas e com a crítica. Aí, a Bienal exibe acintosamente um enorme espaço vazio, sem falar no pequeno conjunto mal alinhavado de obras do primeiro andar, várias bem pífias.
Tem razão Caroline: alguém precisa manifestar pelos desfavorecidos da arte, os excluídos da turminha artística que manda, desmanda, mói e remói.
Ela explica bem: "Tanto grafite quanto "picho" são underground, coisa do fundão. Não são feitos para exposição em galeria. A parada que eu faço é na rua, é para o povo olhar e não gostar. Uma agressão visual".

Muros
Pichação e grafite são transgressores. Brotam de uma cultura socialmente bem marcada.
São arte, coisa que muitos já perceberam. A galeria Triângulo, em São Paulo, deu abrigo a essa vibração enérgica que os pichadores manifestaram no Ibirapuera.
A Bienal, porém, não sabe disso: enfrenta um problema da cultura com boletim de ocorrência.
Nádegas
"A Bienal dizia ser um espaço interativo. Rolou de algumas pessoas entrarem lá para discutir arte contemporânea. O cara que ficou pelado (Maurício Ianês) estava integrado com o sistema, para a gente não é assim.
A arte tem que ser livre". A frase do pichador Rafael Augustaitiz denuncia o caráter oficial e convencional das vanguardas.
As vanguardas se institucionalizaram e afastaram qualquer liberdade não autorizada, que não caiba em sua ordem autoritária e arbitrária.
Há tempos, Gerald Thomas sofreu um patético processo porque mostrou a bunda no Municipal do Rio, ao ser vaiado por uma excelente montagem.
Se sua bunda tivesse aparecido durante o espetáculo, antes de a cortina baixar, seria artística e livre de perseguições judiciárias.

Onde fica mesmo?
Ainda bem que a Bienal não é em Mato Grosso do Sul.
Se fosse, haveria fortes chances para que os pichadores levassem bala.
O governador Puccinelli fez declarações durante a cerimônia "Feliz Cidade" (sic), em que distribuiu 1.500 pistolas calibre 40 a policiais militares.
"Os policiais estão autorizados a atirar no peito de quem tem passagem." Não precisam cumprir "100% dos dizeres dos direitos humanos".
"A ordem é atirar."
Seu secretário da Justiça alega com candor: "Ele (governador) pensa como médico, como cidadão. Não entende as questões técnicas".
Bom. Matar os outros é uma questão técnica, pensamento de médico, de cidadão, de governador? No inferno talvez seja. O pior é que o velho lugar-comum está cada vez mais certo: o inferno é aqui.


jorgecoli@uol.com.br


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