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+Sociedade
Horas de desespero
Diminuição
das aulas
de história em benefício das
de sociologia
em SP é um
erro grave, que
irá prejudicar
ainda mais
os alunos
das escolas
públicas
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RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Mais uma vez a
história sai prejudicada no ensino médio, e
não digo isso
com o espírito de autocomiseração tão corriqueiro entre os
professores de história.
Mas esta decisão do governo
do Estado de São Paulo -de reduzir a carga horária letiva de
história para abrigar a disciplina de sociologia e ampliar a de
filosofia- irá prejudicar os estudantes sem compensação à
altura.
A obrigatoriedade da filosofia pode ser considerada positiva, pois dá um toque de humanismo e um estímulo à reflexão
ética muito salutares. Sobretudo no mundo atual, onde o individualismo narcísico e o
egoísmo possessivo parecem
ter se consagrado como valores
universais.
Mas ampliar a carga de filosofia e introduzir sociologia já é
discutível. Trata-se de disciplina muito específica no campo
das ciências sociais, voltada,
antes de tudo, para a discussão
de modelos abstratos para o estudo das sociedades.
Ficará o aluno obrigado, precocemente, a debruçar-se sobre o pensamento de Weber,
Durkheim e, decerto, o velho
Karl Marx. Sabe-se lá como isso será ensinado pelos professores ou recebido pelos alunos.
E, se entra a sociologia, por
que não a antropologia ou a
ciência política? Qual é o critério de escolha da sociologia como representante das ciências
sociais no ensino médio? De
todo modo, a inclusão da sociologia ou de qualquer das outras
chamadas ciências sociais é
desnecessária nesta altura da
formação escolar.
Fusão
Tudo se agrava com a diminuição da carga de história, que
já incorporou, recentemente, a
obrigatoriedade de disciplinas
sobre histórias africana e indígena. A primeira em 2003, pela
lei nº 10.639, e, a segunda, em
2008, pela lei nº 11.645.
Nesta última, a fórmula utilizada para denominar a disciplina é "história da cultura afro-brasileira e indígena". Nada
contra a inclusão desses novos
conteúdos que, sem dúvida,
ajustam o ensino da história no
Brasil às nossas raízes culturais
múltiplas, embora nada disso
seja realmente novo.
Muito pelo contrário, pois já
Karl von Martius, em meados
do século 19, dizia que a chave
para compreender a história do
Brasil residia no estudo da fusão das três raças, a branca, a
indígena e a negra. Deixando de
lado o linguajar "raciológico",
hoje tão valorizado nas políticas afirmativas do governo, a
idéia de Von Martius era boa.
Tão boa que ninguém a seguiu naquele tempo em que a
escravidão brasileira estava no
apogeu. Foi somente Gilberto
Freyre quem viria a assumir esse projeto em seu "Casa-Grande e Senzala", de 1933. E ainda
foi acusado de racista...
Seja como for, ensinar história não é o mesmo que ensinar
somente história do Brasil ou
de tudo aquilo que guarda relação direta com a nossa história.
Esse "brasil-centrismo" (me
perdoem pelo neologismo cacófono) é, por razões óbvias,
um equívoco que afetou muito
o ensino da história.
Os estudos da Antigüidade e
da Idade Média, por exemplo,
saíram dos currículos do secundário em reformas anteriores, e seus conteúdos acabaram
excluídos dos exames vestibulares. O que será cortado da história com esses novos ajustes?
O grave risco é o de se formular um currículo de história
centrado, de um lado, numa
história do Brasil ideologizada
e, de outro, numa história geral
cada vez mais presentista.
A julgar pelos cortes cronológicos anteriores, a próxima vítima deve ser a história moderna
e, assim, o estudo da história
geral corre o risco de começar
pela Revolução Francesa!
Triunfo do clichê
Que história será essa, que,
de reforma em reforma, vai arqueologizando o passado?
É o triunfo do clichê de que a
história serve para compreender o presente, quando o melhor dela, História, é conhecer o
próprio, as diferenças de uma
mesma sociedade no tempo ou
entre civilizações distintas.
E, agora, o ensino médio de
São Paulo ainda vai amputar
mais a história para abrigar a
sociologia. Decisão temerária e
repleta de conseqüências negativas para a formação dos alunos. Dos alunos do "ensino público", vale sublinhar.
Porque os colégios particulares não entrarão nessa onda de
cortes, mantendo sua carga de
500 horas ou mais, enquanto as
escolas públicas paulistas terão
de contentar-se, segundo cálculos recentes, com cerca de
200 horas.
Moral da história: nos vestibulares futuros, os egressos das
escolas públicas de São Paulo
sairão em grande desvantagem
nas provas de história, sobretudo os que optarem por carreiras humanísticas, onde a prova
de história é decisiva.
Assim, terão mais dificuldade, como sempre, de ingressar
em universidades públicas. O
remédio das cotas, em si mesmo duvidoso, torna-se quase
uma piada de mau gosto num
contexto como esse.
RONALDO VAINFAS é professor titular do departamento de história da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
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