São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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Madonna de ferro

A DISCRIMINAÇÃO PELA ORIGEM ITALIANA, O PASSADO SINDICALISTA DO AVÔ OPERÁRIO, A ÉTICA DO TRABALHO DURO DA CIDADE EM QUE VIVEU MOLDARAM A VIDA E A ARTE DA CANTORA, DIZ A BIÓGRAFA LUCY O'BRIEN



Madonna e Iggy Pop têm a ética do trabalho duro no showbusiness, que vem da formação em Detroit

Spencer Platt - 20.nov.08/Getty Images/ France Presse
Pedestre passa por rua do centro empobrecido de Detroit, sede das maiores montadoras de automóveis dos EUA

EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Talvez o maior ícone da música pop atual, Madonna Louise Ciccone -que inicia hoje, no Brasil, shows da sua badalada turnê "Sticky & Sweet"- teve um passado menos glamouroso antes de atingir o estrelato.
Ela cresceu em Detroit, cidade-símbolo do capitalismo industrial por ser a sede da indústria automobilística dos EUA, mas que hoje enfrenta a pior crise econômica de sua história.
Foi lá, em meio a uma fervilhante vida cultural, em que conviviam gêneros como rock, disco e punk e o ambiente industrial e sindical, que Madonna se formou na música e na dança. Essa faceta pouco conhecida da trajetória da artista é revelada no livro "Madonna -A Biografia do Maior Ídolo da Música Pop" (Ed. Nova Fronteira, 512 págs., R$ 59,90), que saiu no Brasil neste ano. A obra é o resultado de 20 anos de pesquisas. Na entrevista abaixo, a autora, Lucy O'Brien, fala da formação de Madonna, desde a infância em Pontiac à adolescência em Rochester Hills -ambos subúrbios de Detroit-, entre 1958 e 1976.
Madonna viveu em Detroit no período em que emergiram as raízes do punk e do tecno, sons que ecoavam das fábricas da cidade. Filha de Tony Ciccone e Madonna Fortin, ela nasceu em 16 de agosto de 1958 em Bay City -uma pequena cidade do Estado de Michigan à beira do lago Huron, perto da fronteira com o Canadá-, onde os pais estavam de férias.
Seu pai era engenheiro na General Dynamics, empresa de equipamento militar. A mãe, católica influenciada pelo jansenismo -que prevê um estilo de vida cristão moralmente rigoroso-, teve seis filhos e morreu em 1963, aos 30 anos, vítima de câncer de mama.
Desde a adolescência, Madonna interessou-se pela dança -fez aulas de jazz, sapateado, balé e era animadora de torcida nos jogos escolares. Ainda em Detroit, descobriu o entusiasmo pela música disco.
Em 1976, conseguiu uma bolsa para estudar dança na Universidade de Michigan, em Ann Arbor -quando deixou Detroit definitivamente.
Mas as influências da cidade industrial de inverno rigoroso, que viu nascer o punk e o tecno, não a abandonaram.
Segundo O'Brien -que leciona no departamento de mídia e comunicação do Goldsmiths College, na Universidade de Londres-, foi lá que Madonna, impregnada da visão do trabalho como uma virtude, delineou sua "obsessão" pela carreira profissional.

 

FOLHA - Como eram Pontiac e Rochester Hills à época que Madonna passou lá a infância e a adolescência, respectivamente?
LUCY O'BRIEN
- Pontiac era uma cidade voltada para a indústria automobilística que prosperou nos anos 1950, mas, com seu declínio, ela também definhou.
Rochester é muito mais classe média. Quando a família de Madonna se mudou para lá, era um novo subúrbio, cercado de florestas e campos -um lugar agradável para crescer.

FOLHA - Que influência a formação familiar católica teve sobre ela?
O'BRIEN
- Enorme. Seu pai é um católico devoto, e assim era sua mãe [que morreu quando ela tinha 5 anos]. Madonna trouxe temas religiosos para o centro do seu trabalho, como no álbum "Like a Prayer" [1989] e na turnê "Blond Ambition" [1990], em que realmente explorou a tensão entre sexualidade e espiritualidade.

FOLHA - Qual era o ambiente cultural em Detroit nos anos 1970? Como ele foi influenciado pela vida industrial, operária e sindical da cidade?
O'BRIEN
- Detroit era uma cidade voltada para a indústria automobilística que atraiu muitos trabalhadores migrantes e apresentava uma mistura cultural vibrante.
Isso se refletiu nas estações de rádio, em que havia uma real mistura de rhythm and blues, soul, pop e rock.
Nos anos 1970, entretanto, como em boa parte dos EUA, ainda havia muita segregação, com trabalhadores negros vivendo na cidade e brancos vivendo nos subúrbios mais prósperos.

FOLHA - Como o punk e o tecno surgiram em Detroit? Que bandas emergiram desses movimentos e qual a relação da cidade com eles?
O'BRIEN
- O punk emergiu por meio de bandas barulhentas, ruidosas e dinâmicas como MC5 e The Stooges. O punk refletia a ética comum nonsense da cidade. Como alguém me disse certa vez, as pessoas em Detroit gostam de "trabalhar firme e jogar duro".
O tecno veio das discotecas negras underground. Ele era uma mistura dos estilos soul/ rhythm and blues e mestres europeus dos sintetizadores, como [o pioneiro grupo alemão] Kraftwerk.
O tecno ecoou a ética pura da linha de produção da Ford em Detroit. Penso que DJs como Kevin Saunderson [pioneiro do tecno] gostavam de Kraftwerk porque era, de alguma forma, a trilha sonora da sua cidade: todas as linhas limpas e espaçosas, mas também nitidamente definidas.

FOLHA - Madonna participou, de alguma forma, dos movimentos punk e tecno em Detroit? O'BRIEN - Ela regularmente ia a clubes gays, como Menjo's, mas, no final dos anos 1970, a música que ela estava predominantemente dançando era disco. Ela não absorveu realmente o punk até se mudar para Nova York e tornar-se ativa na cena urbana.
E o tecno a conquistou depois que ela deixou Detroit.

FOLHA - Ela foi influenciada por bandas como The Stooges e MC5?
Ela conhecia os integrantes dessas bandas? Ela ouvia Iggy Pop? O'BRIEN
- Penso que ela os conhecia, mas nos anos 1970 Madonna ouvia mais música disco.
Não acho que tenha realmente conhecido Iggy Pop, a não ser muito depois. Ela e Iggy são muito diferentes, provêm de diferentes gêneros.
Mas foi muito terno eles acabarem compartilhando o palco na turnê "Re-Invention" [2004], durante show na Irlanda. E, neste ano [10/3, em Nova York], ele cantou a canção "Ray of Light" na cerimônia de inauguração do Rock and Roll Hall of Fame. Eles têm conexão porque ambos são de Detroit e têm essa ética do trabalho duro no showbusiness.

FOLHA - O que a jovem Madonna fazia em Detroit para se divertir?
Que locais freqüentava e quais bandas gostava de ouvir?
O'BRIEN
- Ela ia a festas. Um velho amigo de escola disse que eles alugavam um quarto de motel para dar festas e beber cerveja. Havia bailes na escola.
Madonna assistia a artistas locais como Mitch Ryder e Bob Seger tocando.
Ela também foi a grandes shows no estádio Silverdome, como o de David Bowie, para o qual foi escondida (seu pai não queria que fosse!).

FOLHA - Madonna cresceu durante a eclosão do feminismo, do punk e da liberação sexual. Como ela lidou com todas essas influências na juventude?
O'BRIEN
- Quando estudava na Universidade de Michigan, teve como professora a coreógrafa e feminista Gay Delanghe e, quando se mudou para Nova York, já tinha familiaridade com as idéias feministas.
Entusiasmou-se pelo punk e pela ética "do it yourself" [faça você mesmo] da cena artística urbana. Inspirou-se nisso.
E, naqueles tempos pré-Aids, a experimentação sexual era moda.

FOLHA - Como filha de uma segunda geração de imigrantes italianos, ela tinha consciência do preconceito racial que segregava Detroit e seus subúrbios? Ela ouvia música negra?
O'BRIEN
- Seu avô paterno [Gaetano Ciccone] foi discriminado porque era um trabalhador de origem italiana, e, crescendo em Detroit, Madonna tomou consciência da segregação racial que dividia a cidade.
Ela sempre foi instintivamente igualitária e [apóia o Partido] Democrata. Seu avô foi um sindicalista. Ela sempre considerou importante envolver-se politicamente.
Muitos dos seus amigos de infância de Pontiac eram negros. Ela cresceu dançando [música da gravadora] Motown e, mais tarde, disco. Todas essas vertentes influenciaram sua música.

FOLHA - De que maneira o fato de ter crescido numa cidade industrial, que via o trabalho como uma grande virtude, definiu a "obsessão" de Madonna pela carreira profissional?
O'BRIEN
- Quando pesquisava esse tema, achei fascinante o quanto Madonna era um produto do ambiente onde cresceu. O trabalho duro e a energia com que se dedicou a ele é algo que muitos habitantes de Detroit compartilham.
O compositor Gardner Cole (que escreveu para ela a canção "Open Your Heart") também cresceu em Michigan e disse que era preciso fazer algo com os invernos rudes.
Chamava isso de passatempo individual, estar dentro de algum lugar durante os longos invernos lendo e escrevendo canções, porque não havia nada mais a fazer.

FOLHA - Madonna era muito dedicada à dança. Que influências tiveram sobre ela artistas como a dançarina e coreógrafa Martha Graham?
O'BRIEN
- Madonna foi muito influenciada por ela, a "Picasso da dança moderna". Graham tinha um estilo muito centrado na mulher -e algumas das suas técnicas apareceram em shows ao vivo de Madonna.
Ela também adorava o coreógrafo negro Alvin Ailey, que misturou ritmos do jazz a movimentos africanos.

FOLHA - Qual foi a importância que teve a banda punk anarquista inglesa "The Slits" para Madonna
O'BRIEN
- Madonna ia às apresentações da banda em Nova York aparentemente para dar uma olhada e copiar seu estilo anárquico fashion.

FOLHA - No seu livro, você escreve que Madonna "combinou elementos do punk, da dança underground e da música disco europop para, assim, inventar um conceito próprio -o conceito Madonna". Como ela absorveu essas influências ainda em Detroit?
O'BRIEN
- Ela absorveu a energia independente "faça você mesmo" do punk - e disso saiu muito do seu estilo brechó. Ela foi levada para a dança underground em suas incursões em boates gays em Detroit. O europop disco veio um pouco mais tarde, quando dançou com Patrick Hernandez em Paris.

FOLHA - Madonna transformou o modo como o artista pop deve lidar com as mais diversas mídias?
O'BRIEN
- Completamente. Ela não aparece como uma cantora "politicamente correta" com o clube do Mickey Mouse -era parte de uma subcultura. Também teve preparo intelectual, com formação em dança contemporânea.
Tudo isso tem influenciado o seu trabalho. Possui uma estética realmente forte, e é por isso que tem se mantido no topo por tanto tempo. O desafio para ela, agora aos 50 anos, é superar a imagem de "garota sexy" e nos provocar de uma maneira diferente. Estou certa que ela o fará. E, mesmo que não o faça, será uma tentativa divertida.


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