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Madonna de ferro
A DISCRIMINAÇÃO PELA ORIGEM ITALIANA,
O PASSADO SINDICALISTA DO AVÔ OPERÁRIO,
A ÉTICA
DO TRABALHO
DURO
DA CIDADE
EM QUE VIVEU
MOLDARAM
A VIDA
E A ARTE
DA CANTORA,
DIZ A
BIÓGRAFA
LUCY O'BRIEN
Madonna
e Iggy Pop têm
a ética do
trabalho duro
no showbusiness,
que vem da formação
em Detroit
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Spencer Platt - 20.nov.08/Getty Images/ France Presse
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Pedestre passa por rua do centro empobrecido de Detroit, sede das maiores montadoras de automóveis dos EUA
EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Talvez o maior ícone da
música pop atual, Madonna Louise Ciccone -que inicia hoje,
no Brasil, shows da
sua badalada turnê "Sticky &
Sweet"- teve um passado menos glamouroso antes de atingir o estrelato.
Ela cresceu em Detroit, cidade-símbolo do capitalismo industrial por ser a sede da indústria automobilística dos
EUA, mas que hoje enfrenta a
pior crise econômica de sua
história.
Foi lá, em meio a uma fervilhante vida cultural, em que
conviviam gêneros como rock,
disco e punk e o ambiente industrial e sindical, que Madonna se formou na música e na
dança. Essa faceta pouco conhecida da trajetória da artista
é revelada no livro "Madonna
-A Biografia do Maior Ídolo da
Música Pop" (Ed. Nova Fronteira, 512 págs., R$ 59,90), que
saiu no Brasil neste ano. A obra
é o resultado de 20 anos de pesquisas.
Na entrevista abaixo, a autora, Lucy O'Brien, fala da formação de Madonna, desde a infância em Pontiac à adolescência
em Rochester Hills -ambos
subúrbios de Detroit-, entre
1958 e 1976.
Madonna viveu em Detroit
no período em que emergiram
as raízes do punk e do tecno,
sons que ecoavam das fábricas
da cidade. Filha de Tony Ciccone e Madonna Fortin, ela nasceu em 16 de agosto de 1958 em
Bay City -uma pequena cidade
do Estado de Michigan à beira
do lago Huron, perto da fronteira com o Canadá-, onde os
pais estavam de férias.
Seu pai era engenheiro na
General Dynamics, empresa de
equipamento militar. A mãe,
católica influenciada pelo jansenismo -que prevê um estilo
de vida cristão moralmente rigoroso-, teve seis filhos e morreu em 1963, aos 30 anos, vítima de câncer de mama.
Desde a adolescência, Madonna interessou-se pela dança -fez aulas de jazz, sapateado, balé e era animadora de torcida nos jogos escolares. Ainda
em Detroit, descobriu o entusiasmo pela música disco.
Em 1976, conseguiu uma
bolsa para estudar dança na
Universidade de Michigan, em
Ann Arbor -quando deixou
Detroit definitivamente.
Mas as influências da cidade
industrial de inverno rigoroso,
que viu nascer o punk e o tecno, não a abandonaram.
Segundo O'Brien -que leciona no departamento de mídia e
comunicação do Goldsmiths
College, na Universidade de
Londres-, foi lá que Madonna,
impregnada da visão do trabalho como uma virtude, delineou sua "obsessão" pela carreira profissional.
FOLHA - Como eram Pontiac e Rochester Hills à época que Madonna
passou lá a infância e a adolescência, respectivamente?
LUCY O'BRIEN - Pontiac era uma
cidade voltada para a indústria
automobilística que prosperou
nos anos 1950, mas, com seu
declínio, ela também definhou.
Rochester é muito mais classe média. Quando a família de
Madonna se mudou para lá, era
um novo subúrbio, cercado de
florestas e campos -um lugar
agradável para crescer.
FOLHA - Que influência a formação
familiar católica teve sobre ela?
O'BRIEN - Enorme. Seu pai é um
católico devoto, e assim era sua
mãe [que morreu quando ela tinha 5 anos]. Madonna trouxe
temas religiosos para o centro
do seu trabalho, como no álbum "Like a Prayer" [1989] e na
turnê "Blond Ambition"
[1990], em que realmente explorou a tensão entre sexualidade e espiritualidade.
FOLHA - Qual era o ambiente cultural em Detroit nos anos 1970? Como
ele foi influenciado pela vida industrial, operária e sindical da cidade?
O'BRIEN - Detroit era uma cidade voltada para a indústria automobilística que atraiu muitos
trabalhadores migrantes e
apresentava uma mistura cultural vibrante.
Isso se refletiu nas estações
de rádio, em que havia uma real
mistura de rhythm and blues,
soul, pop e rock.
Nos anos 1970, entretanto,
como em boa parte dos EUA,
ainda havia muita segregação,
com trabalhadores negros vivendo na cidade e brancos vivendo nos subúrbios mais
prósperos.
FOLHA - Como o punk e o tecno
surgiram em Detroit? Que bandas
emergiram desses movimentos e
qual a relação da cidade com eles?
O'BRIEN - O punk emergiu por
meio de bandas barulhentas,
ruidosas e dinâmicas como
MC5 e The Stooges. O punk refletia a ética comum nonsense
da cidade. Como alguém me
disse certa vez, as pessoas em
Detroit gostam de "trabalhar
firme e jogar duro".
O tecno veio das discotecas
negras underground. Ele era
uma mistura dos estilos soul/
rhythm and blues e mestres europeus dos sintetizadores, como [o pioneiro grupo alemão]
Kraftwerk.
O tecno ecoou a ética pura da
linha de produção da Ford em
Detroit. Penso que DJs como
Kevin Saunderson [pioneiro do
tecno] gostavam de Kraftwerk
porque era, de alguma forma, a
trilha sonora da sua cidade: todas as linhas limpas e espaçosas, mas também nitidamente
definidas.
FOLHA - Madonna participou, de
alguma forma, dos movimentos
punk e tecno em Detroit?
O'BRIEN - Ela regularmente ia a
clubes gays, como Menjo's,
mas, no final dos anos 1970, a
música que ela estava predominantemente dançando era disco. Ela não absorveu realmente
o punk até se mudar para Nova
York e tornar-se ativa na cena
urbana.
E o tecno a conquistou depois que ela deixou Detroit.
FOLHA - Ela foi influenciada por
bandas como The Stooges e MC5?
Ela conhecia os integrantes dessas
bandas? Ela ouvia Iggy Pop?
O'BRIEN - Penso que ela os conhecia, mas nos anos 1970 Madonna ouvia mais música disco.
Não acho que tenha realmente
conhecido Iggy Pop, a não ser
muito depois. Ela e Iggy são
muito diferentes, provêm de
diferentes gêneros.
Mas foi muito terno eles acabarem compartilhando o palco
na turnê "Re-Invention"
[2004], durante show na Irlanda. E, neste ano [10/3, em Nova
York], ele cantou a canção "Ray
of Light" na cerimônia de inauguração do Rock and Roll Hall
of Fame. Eles têm conexão porque ambos são de Detroit e têm
essa ética do trabalho duro no
showbusiness.
FOLHA - O que a jovem Madonna
fazia em Detroit para se divertir?
Que locais freqüentava e quais bandas gostava de ouvir?
O'BRIEN - Ela ia a festas. Um velho amigo de escola disse que
eles alugavam um quarto de
motel para dar festas e beber
cerveja. Havia bailes na escola.
Madonna assistia a artistas locais como Mitch Ryder e Bob
Seger tocando.
Ela também foi a grandes
shows no estádio Silverdome,
como o de David Bowie, para o
qual foi escondida (seu pai não
queria que fosse!).
FOLHA - Madonna cresceu durante
a eclosão do feminismo, do punk e
da liberação sexual. Como ela lidou
com todas essas influências na juventude?
O'BRIEN - Quando estudava na
Universidade de Michigan, teve
como professora a coreógrafa e
feminista Gay Delanghe e,
quando se mudou para Nova
York, já tinha familiaridade
com as idéias feministas.
Entusiasmou-se pelo punk e
pela ética "do it yourself" [faça
você mesmo] da cena artística
urbana. Inspirou-se nisso.
E, naqueles tempos pré-Aids,
a experimentação sexual era
moda.
FOLHA - Como filha de uma segunda geração de imigrantes italianos,
ela tinha consciência do preconceito
racial que segregava Detroit e seus
subúrbios? Ela ouvia música negra?
O'BRIEN - Seu avô paterno
[Gaetano Ciccone] foi discriminado porque era um trabalhador de origem italiana, e, crescendo em Detroit, Madonna tomou consciência da segregação
racial que dividia a cidade.
Ela sempre foi instintivamente igualitária e [apóia o
Partido] Democrata. Seu avô
foi um sindicalista. Ela sempre
considerou importante envolver-se politicamente.
Muitos dos seus amigos de
infância de Pontiac eram negros. Ela cresceu dançando
[música da gravadora] Motown
e, mais tarde, disco. Todas essas
vertentes influenciaram sua
música.
FOLHA - De que maneira o fato de
ter crescido numa cidade industrial,
que via o trabalho como uma grande virtude, definiu a "obsessão" de
Madonna pela carreira profissional?
O'BRIEN - Quando pesquisava
esse tema, achei fascinante o
quanto Madonna era um produto do ambiente onde cresceu. O trabalho duro e a energia
com que se dedicou a ele é algo
que muitos habitantes de Detroit compartilham.
O compositor Gardner Cole
(que escreveu para ela a canção
"Open Your Heart") também
cresceu em Michigan e disse
que era preciso fazer algo com
os invernos rudes.
Chamava isso de passatempo
individual, estar dentro de algum lugar durante os longos invernos lendo e escrevendo canções, porque não havia nada
mais a fazer.
FOLHA - Madonna era muito dedicada à dança. Que influências tiveram sobre ela artistas como a dançarina e coreógrafa Martha Graham?
O'BRIEN - Madonna foi muito
influenciada por ela, a "Picasso
da dança moderna". Graham tinha um estilo muito centrado
na mulher -e algumas das suas
técnicas apareceram em shows
ao vivo de Madonna.
Ela também adorava o coreógrafo negro Alvin Ailey, que
misturou ritmos do jazz a movimentos africanos.
FOLHA - Qual foi a importância que
teve a banda punk anarquista inglesa "The Slits" para Madonna
O'BRIEN - Madonna ia às apresentações da banda em Nova
York aparentemente para dar
uma olhada e copiar seu estilo
anárquico fashion.
FOLHA - No seu livro, você escreve
que Madonna "combinou elementos do punk, da dança underground
e da música disco europop para, assim, inventar um conceito próprio
-o conceito Madonna". Como ela
absorveu essas influências ainda em
Detroit?
O'BRIEN - Ela absorveu a energia independente "faça você
mesmo" do punk - e disso saiu
muito do seu estilo brechó. Ela
foi levada para a dança underground em suas incursões em
boates gays em Detroit. O europop disco veio um pouco mais
tarde, quando dançou com Patrick Hernandez em Paris.
FOLHA - Madonna transformou o
modo como o artista pop deve lidar
com as mais diversas mídias?
O'BRIEN - Completamente. Ela
não aparece como uma cantora
"politicamente correta" com o
clube do Mickey Mouse -era
parte de uma subcultura. Também teve preparo intelectual,
com formação em dança contemporânea.
Tudo isso tem influenciado o
seu trabalho. Possui uma estética realmente forte, e é por isso
que tem se mantido no topo por
tanto tempo. O desafio para ela,
agora aos 50 anos, é superar a
imagem de "garota sexy" e nos
provocar de uma maneira diferente. Estou certa que ela o fará. E, mesmo que não o faça, será uma tentativa divertida.
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