São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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+ sociedade

Por Timothy Garton Ash

Historiador aponta a proibição do uso do véu em escolas como uma das razões de um atentado fictício na capital francesa em 2009

A bomba que abalou Paris

Finalmente temos a investigação de que precisávamos: um inquérito completo e independente sobre o atentado em Paris em 2009. Como todos sabemos, naquele terrível ataque uma grande área entre o bulevar Montparnasse e o rio Sena foi devastada por uma pequena bomba nuclear, detonada por suicidas ligados ao Grupo Islâmico Armado (GIA), com base na Argélia. Cerca de 100 mil pessoas foram mortas ou feridas. O coração cultural de uma das mais belas cidades do mundo foi reduzido a ruínas fumegantes. Ninguém jamais esquecerá a foto da estátua de Balzac feita por Rodin pairando num sofrimento torturante sobre os cadáveres desmembrados, mas ainda reconhecíveis, de um jovem casal no bulevar Raspail.
O inquérito da Comissão Annan deve ser rigoroso, imparcial e internacional. Deve ter a total cooperação de todos os serviços de inteligência envolvidos, especialmente porque o fracasso destes em cooperar parece ter sido o motivo pelo qual não se evitou o ataque. A presidente Hillary Clinton, dos Estados Unidos, e o presidente Nicolas Sarkozy, da França, estavam certos ao dizer, em sua declaração conjunta, que a história não nos perdoará se deixarmos qualquer pedra sem ser revirada. É claro que devemos esperar os resultados da Comissão Annan, mas está na hora de sugerir alguns lugares onde ela deveria procurar.
O ex-secretário-geral da ONU e seus colegas não deveriam se limitar aos fatos recentes. Examinando mais minuciosamente, certamente descobriremos que as raízes da catástrofe de 2009 podem ser encontradas nos erros cometidos entre 2002 e 2004. Para começar, já parece claro que as irmãs Belhadj, que detonaram a bomba no Jardin du Luxembourg, se tornaram radicais ao serem expulsas da escola por usar sobre a cabeça o véu muçulmano, de acordo com a lei aprovada pelo governo Chirac em 2004. Havia certamente bons motivos, assim como dúbios, para a proibição do véu.
Os motivos dúbios tinham a ver com o oportunismo político tão característico do presidente Chirac, que acertadamente calculou que, introduzindo essa lei, poderia captar votos tanto da esquerda secular quanto da direita antiislâmica. Os bons motivos tinham a ver com a emancipação feminina, desejada por muitas das próprias muçulmanas, e com a tentativa dos professores de defender o espírito de livre investigação e instrução, que sofria ataques acirrados de grupos de pressão islâmicos na França.
No entanto, com o benefício da visão retrospectiva, a proibição do véu pode ser considerada um erro predestinado. A expulsão das portadoras de véu das escolas provocou grandes manifestações. Em uma mensagem previamente gravada que enviaram à mídia, as irmãs Belhadj compararam seu ato ao de Wafa Idris, a primeira mulher-bomba suicida palestina. Isso era objetivamente absurdo. A posição dos muçulmanos na sociedade francesa não era de modo algum comparável à dos palestinos antes da divisão entre Israel e Palestina -finalmente imposta pelo governo Clinton (H.), dois meses antes do bombardeio de Paris.
Mas as irmãs foram levadas a acreditar nisso durante intensas sessões de doutrinamento em apartamentos da chamada "Cidade dos 4.000" -um conjunto habitacional miserável no subúrbio parisiense de La Courneuve, cujo índice de desemprego era de cerca de 30%.
Nessas reuniões de lavagem cerebral, elas ouviram repetidamente que os "judeus ateus" do Quartier Latin eram responsáveis por sua miséria. No entanto a tragédia de 17 de agosto de 2009 não pode ser simplesmente atribuída à elite política francesa e seu fracasso em enfrentar de maneira adequada um problema extraordinariamente difícil, que desafiava todas as sociedades da Europa.
A outra metade da história tem a ver com erros dos serviços de informação e o uso político dessas informações. A prática do terror já era conhecida do grupo da "Cidade dos 4.000" por suas conexões na Argélia; mas a chave de seu "sucesso" foi conseguir uma arma de destruição em massa pequena e portátil. A Comissão Annan vai investigar exatamente como eles fizeram isso.
Mas parece, pelas reportagens na imprensa, que peças altamente relevantes do quebra-cabeça da inteligência já estavam nas mãos de três agências: um grupo especial liderado pelo Pentágono que acompanhava a proliferação de armas de destruição em massa; o MI6, da Grã-Bretanha; e o serviço de inteligência internacional da própria França. O problema decorre do fato de eles não terem juntado as peças e de políticos não terem agido com base no que lhes informaram. Por quê?
Mais uma vez devemos remontar aos anos de 2002 a 2004 para encontrar as respostas. Os órgãos de inteligência britânicos e americanos sempre desconfiaram de seus colegas franceses -"eles vazam como uma peneira", disse um conhecido espião inglês-, mas a desconfiança foi exacerbada pelas polêmicas sobre o Iraque. Segundo uma nota que vazou de uma reunião internacional, o chefe neoconservador do Gabinete de Planos Especiais do Pentágono teria comentado que o Pentágono só compartilharia informações com "aqueles macacos entreguistas comedores de queijo" se fosse por cima de seu cadáver. Os britânicos e os americanos ainda trabalhavam em ligação muito estreita, mas a credibilidade da inteligência britânica fora prejudicada pelo que se considerou a divulgação de afirmações inconfiáveis sobre as armas de Saddam Hussein.
A Casa Branca não havia esquecido a experiência danosa de 2003, quando o presidente Bush afirmou redondamente em seu discurso sobre o Estado da União que "o governo britânico soube que Saddam Hussein recentemente tentou obter quantidades significativas de urânio na África". Fontes americanas mais tarde concluíram que essa informação de alto nível se baseou em documentos forjados.
Em conseqüência, embora o MI6 realmente tivesse obtido no início de 2009 uma pista crucial sobre a preparação de um dispositivo nuclear por um grupo do Oriente Médio, que, como se soube depois, trabalhava com a célula islâmica de La Courneuve, a informação não foi levada a sério em Washington nem compartilhada com Paris. Mas a culpa era apenas em parte dos serviços de inteligência. Como a recém-eleita primeira-ministra britânica, Sally Jones, admitiu com ressalvas numa entrevista à BBC em setembro de 2009, os principais governos ocidentais haviam sido prejudicados pelos relatórios do inquérito Butler na Grã-Bretanha e da Comissão Silberman em Washington.
Como sabemos, suas conclusões, embora revestidas de cautelosos termos diplomáticos, levaram a maioria das pessoas a concluir que o presidente Bush e o primeiro-ministro Tony Blair haviam feito montanhas dos montículos de terra levantados pela inteligência sobre o suposto programa de armas de destruição em massa de Saddam Hussein, tal como existia -ou não- nas vésperas da guerra do Iraque, em 2003.
A apresentação, pelo secretário de Estado Colin Powell ao Conselho de Segurança da ONU, de amplas evidências da inteligência, incluindo fotos aéreas, se tornou sinônimo do que todo líder político queria evitar. "Não farei um Powell", eles diziam a seus oficiais. Em conseqüência, em vez de valorizar as evidências da inteligência, como haviam feito em 2003, os líderes políticos de todas as capitais ocidentais tendiam a lhes dar desconto.
Assim, em meio ao constante fluxo de relatórios alarmantes, mas não-confiáveis, que chegavam por todos os canais de inteligência, a advertência que poderia ter salvo a vida de mais de 60 mil pessoas e poupado outras 40 mil de ferimentos não foi levada a sério. De maneira bastante previsível, a figura familiar do encalvecido sir Tony Blair, o ex-primeiro-ministro, se levantou de seu lugar habitual, ao lado do primeiro corredor da Câmara dos Comuns, para dizer: "Eu não disse?". Bem, é o que se esperava dele, não? A tarefa da comissão agora é determinar, rigorosa e imparcialmente, até onde ele estava certo.


Timothy Garton Ash é historiador inglês e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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