São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

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Ponto de fuga

A inteligência dos olhos

Os retratos de Poussin e Cézanne, um junto ao outro, vibravam, intensos; o de Picasso, ao lado deles, de tão diferente, Parecia dizer: "Que diabos estou fazendo aqui?"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A exposição mais estrondosa desta virada de ano, em Paris, relacionava Picasso com outros grandes artistas do passado. Foi um sucesso imenso: instalada nas salas do Grand Palais, contou os visitantes por centenas de milhares. As filas serpenteavam, intermináveis. Com tanto entusiasmo, a mostra não apenas foi prolongada como nos três últimos dias ficou aberta ininterruptamente, varando noite. Terminou não faz muito tempo ["Picasso e os Mestres", encerrada em 2/2]. Os críticos e historiadores da arte, no entanto, contrariaram o interesse do público. Condenaram a falta de rigor, a associação abusiva de Picasso com obras que só muito remotamente se relacionavam com ele. A "Burlington Magazine", venerada e veneranda publicação, grande referência de todos os historiadores da arte no mundo inteiro, desceu a lenha. Escreveu, entre outras coisas, que a concepção dos curadores só conseguiu demonstrar que Picasso, como uma infinidade de pintores de todos os tempos, executava nus, naturezas-mortas e retratos... Tudo isso é verdade. Houve raras comparações convincentes e a interrogação intelectual da exibição foi precária. Contudo, para além da condenação dos especialistas, ela trouxe, mesmo se involuntariamente, algumas questões importantes. Porque, com um orçamento sem dúvida gigantesco, ela pôde reunir um conjunto fenomenal das mais variadas obras-primas, que, conversando entre si, muitas vezes ignoravam Picasso.

Cogeminar
O princípio da mostra "Picasso" no Grand Palais justificava-se, porque o grande artista vampirizou invenções alheias como ninguém, para nutrir-se delas e transformá-las de modo genial. Mas a falta de rigor nas escolhas sabotou o projeto, e a maioria das relações propostas não convencia. O autorretrato de Poussin e o de Cézanne, um junto ao outro, vibravam, intensos, graças a enérgicas, poderosas convergências. O de Picasso, ao lado deles, de tão diferente, parecia dizer: "Que diabos estou fazendo aqui?". A sala dos nus era prodigiosa: onde mais se poderá ver uma soberba "Vênus" de Ticiano ao lado da "Maja Desnuda", de Goya; da "Olímpia", de Manet; da "Grande Odalisca", de Ingres? Entre elas, Picasso, com quadros em tom cinza e gelo, sumia.

Discernir
Porém as pessoas olhavam fascinadas. Fixavam um quadro, outro, voltavam ao primeiro. Descobriam que um Goya, um Manet, um Ingres, um Ticiano, artistas tão diferentes, tinham muito em comum. Com os seus defeitos, a mostra "Picasso" obrigava a ver. Ora, ver é muito difícil. Toda a formação escolar está voltada para a escrita. Aprende-se a ler. Não se aprende a olhar. Muitos pensam que para "entender" uma obra de arte é preciso devorar uma carrada de livros. De nada adianta sem o olhar que medita, analisa e busca compreender por si só. Mania ruim de vários curadores: muitas exposições trazem longos textos nas paredes. Uma roda grande se forma diante deles, com gente passando bem mais tempo para deglutir aqueles dados do que tentando ver, apenas ver, as obras.

Entre
Não é uma tautologia: só se aprende a ver vendo. A exposição "Picasso", destinada ao grande público, trouxe um excelente exercício para os olhos: o da comparação. Mesmo quando imperfeita, ela intriga: o que tal e tal quadro têm em comum, ou de diferente? Propôs também uma interrogação: como organizar mostras em que as obras interpelem o público, solicitando e estimulando o olhar? Que, em suma, ensinem a ver?


jorgecoli@uol.com.br


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