São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

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O globo quadrado

EM REAÇÃO À CRISE ECONÔMICA, GOVERNOS REVEEM LIBERALISMO E ENDURECEM FRONTEIRAS NACIONAIS

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

Barack Obama, todo mundo sabe, é filho de africano, conviveu com muçulmanos, cresceu na Indonésia e aparece como o mais viajado dos presidentes americanos. Timothy Geithner, seu secretário do Tesouro (ministro da Fazenda), passou parte de sua vida na África e na Ásia, fala mandarim e japonês e trabalhou na diretoria do Fundo Monetário Internacional, pregando aos países em crise, inclusive ao Brasil, as virtudes do livre comércio.

Apesar do cosmopolitismo da dupla, coube a Geithner dar voz à primeira advertência protecionista formulada pelo presidente Obama: não podemos aceitar que a China desvalorize o yuan para dopar suas exportações. O aviso soou como um aval às teses de congressistas que propugnam um aumento de tarifas sobre as importações chinesas nos EUA.
Por enquanto, Pequim se ateve ao protesto verbal. O primeiro-ministro, Wen Jiabao, responsabilizou Washington pela crise, apontando "o fiasco da supervisão financeira" exercida pelas autoridades americanas, incluindo Tim Geithner, presidente do Federal Reserve, na unidade de Nova York, nos últimos anos.
Pouco depois, o pacote de estímulo à economia da Câmara dos Representantes incorporou cláusulas "buy american" [compre produtos norte-americanos], vetando o uso de aço e ferro estrangeiros nas obras de infraestrutura nos EUA.
A iniciativa foi atribuída ao lobby da AFL-CIO, maior organização sindical americana e aliada histórica do Partido Democrata. No Senado, o princípio "buy american" foi praticamente suprimido, graças a vários senadores, entre os quais se destacou John McCain.
Para muitos analistas, o presidente Obama hesitou, e uma colunista do "Washington Post" o chamou de "imaturo", fórmula usada para classificar incompetentes que têm menos de 45 anos.
Observadores pessimistas viram nesses incidentes a confirmação de uma velha tendência americana: a saída dos republicanos, abertos ao livre comércio, traz de volta o protecionismo à Casa Branca, pela mão dos democratas, mais sensíveis à pressão dos sindicatos.
Reservado até agora aos presidentes latino-americanos, o epíteto "populista" foi colado pelos republicanos nas costas de Obama durante a campanha eleitoral e continua pautando comentários sobre sua política assistencialista e seu viés alegadamente protecionista. No outro lado do Atlântico, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, ao anunciar o pacote de 5,5 bilhões em favor da indústria automobilística francesa, exigiu "contrapartidas" para manter os empregos no país. Num ataque à Peugeot, criticou as montadoras francesas que abrem fábricas na República Tcheca para exportar carros para a França. Dias antes, a ministra da Fazenda do país, Christine Lagarde, havia declarado: "O protecionismo pode ser um mal necessário". Depois a ministra se retratou, mas a frase ressoou longe.
Procurando acalmar os outros países europeus, o primeiro-ministro, François Fillon, garantiu à Comissão Europeia (órgão diretor da União Europeia) que Paris não faria pressão para as fábricas francesas se reinstalarem na França.
Mas a República Tcheca protestou, e espoucaram manifestações em Valladolid, na Espanha, onde há boatos de que a produção da fábrica local da Renault será transferida para a França. Aproveitando a derrapada da França, Alistair Dairling, ministro da Economia britânico, declarou que "é preciso ser muito duro contra o protecionismo", propondo-se a defender essa política na reunião dos ministros de finanças do G7, neste fim de semana em Roma.
Apesar dessas proclamações, o Reino Unido também joga suas cartas protecionistas no setor bancário, onde, segundo a "Economist", as manobras para proteger o mercado nacional são mais fortes do que no setor industrial.
Nacionalizados pelo governo do primeiro-ministro Gordon Brown, os bancos RBS e Lloyds TSB obedecem a diretivas para aumentar seus empréstimos na Inglaterra, retirando-se, se for preciso, dos mercados estrangeiros. Um aspecto mais maligno do protecionismo surgiu na refinaria de petróleo de Lindsey, no leste do país. Furiosos contra uma empreiteira italiana que -dentro de toda legalidade e de acordo com a legislação europeia- trouxe seus operários especializados italianos e portugueses para ampliar a refinaria, os operários ingleses entraram em greve.
No meio da nevasca, dezenas deles desfilaram na frente da refinaria carregando cartazes onde estava escrito: "Emprego britânico para trabalhadores britânicos".
Caos bancário, estagnação econômica, tensões sociais, protecionismo, xenofobia. Em escala desigual, estas etapas reproduzem os primeiros desdobramentos da crise de 1929. Mas há ainda uma chance de consertar os estragos: todo mundo sabe que esse encadeamento fatal explodiu numa grande conflagração mundial.


LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris 4. É autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras) e escreve na seção "Autores", do Mais! .


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