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O globo quadrado
EM REAÇÃO À CRISE ECONÔMICA, GOVERNOS REVEEM LIBERALISMO E ENDURECEM FRONTEIRAS NACIONAIS
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
Barack Obama, todo
mundo sabe, é filho
de africano, conviveu com muçulmanos, cresceu na Indonésia e aparece como o mais
viajado dos presidentes americanos. Timothy Geithner, seu
secretário do Tesouro (ministro da Fazenda), passou parte
de sua vida na África e na Ásia,
fala mandarim e japonês e trabalhou na diretoria do Fundo
Monetário Internacional, pregando aos países em crise, inclusive ao Brasil, as virtudes do
livre comércio.
Apesar do cosmopolitismo
da dupla, coube a Geithner dar
voz à primeira advertência protecionista formulada pelo presidente Obama: não podemos
aceitar que a China desvalorize
o yuan para dopar suas exportações. O aviso soou como um
aval às teses de congressistas
que propugnam um aumento
de tarifas sobre as importações
chinesas nos EUA.
Por enquanto, Pequim se
ateve ao protesto verbal. O primeiro-ministro, Wen Jiabao,
responsabilizou Washington
pela crise, apontando "o fiasco
da supervisão financeira" exercida pelas autoridades americanas, incluindo Tim Geithner,
presidente do Federal Reserve,
na unidade de Nova York, nos
últimos anos.
Pouco depois, o pacote de estímulo à economia da Câmara
dos Representantes incorporou cláusulas "buy american"
[compre produtos norte-americanos], vetando o uso de aço e
ferro estrangeiros nas obras de
infraestrutura nos EUA.
A iniciativa foi atribuída ao
lobby da AFL-CIO, maior organização sindical americana e
aliada histórica do Partido Democrata. No Senado, o princípio "buy american" foi praticamente suprimido, graças a vários senadores, entre os quais
se destacou John McCain.
Para muitos analistas, o presidente Obama hesitou, e uma
colunista do "Washington
Post" o chamou de "imaturo",
fórmula usada para classificar
incompetentes que têm menos
de 45 anos.
Observadores pessimistas viram nesses incidentes a confirmação de uma velha tendência
americana: a saída dos republicanos, abertos ao livre comércio, traz de volta o protecionismo à Casa Branca, pela mão
dos democratas, mais sensíveis
à pressão dos sindicatos.
Reservado até agora aos presidentes latino-americanos, o
epíteto "populista" foi colado
pelos republicanos nas costas
de Obama durante a campanha
eleitoral e continua pautando
comentários sobre sua política
assistencialista e seu viés alegadamente protecionista.
No outro lado do Atlântico, o
presidente francês, Nicolas
Sarkozy, ao anunciar o pacote
de 5,5 bilhões em favor da indústria automobilística francesa, exigiu "contrapartidas" para manter os empregos no país.
Num ataque à Peugeot, criticou as montadoras francesas
que abrem fábricas na República Tcheca para exportar carros
para a França. Dias antes, a ministra da Fazenda do país,
Christine Lagarde, havia declarado: "O protecionismo pode
ser um mal necessário". Depois
a ministra se retratou, mas a
frase ressoou longe.
Procurando acalmar os outros países europeus, o primeiro-ministro, François Fillon,
garantiu à Comissão Europeia
(órgão diretor da União Europeia) que Paris não faria pressão para as fábricas francesas
se reinstalarem na França.
Mas a República Tcheca protestou, e espoucaram manifestações em Valladolid, na Espanha, onde há boatos de que a
produção da fábrica local da
Renault será transferida para a
França.
Aproveitando a derrapada da
França, Alistair Dairling, ministro da Economia britânico,
declarou que "é preciso ser
muito duro contra o protecionismo", propondo-se a defender essa política na reunião dos
ministros de finanças do G7,
neste fim de semana em Roma.
Apesar dessas proclamações,
o Reino Unido também joga
suas cartas protecionistas no
setor bancário, onde, segundo
a "Economist", as manobras
para proteger o mercado nacional são mais fortes do que no
setor industrial.
Nacionalizados pelo governo
do primeiro-ministro Gordon
Brown, os bancos RBS e Lloyds
TSB obedecem a diretivas para
aumentar seus empréstimos
na Inglaterra, retirando-se, se
for preciso, dos mercados estrangeiros.
Um aspecto mais maligno do
protecionismo surgiu na refinaria de petróleo de Lindsey,
no leste do país. Furiosos contra uma empreiteira italiana
que -dentro de toda legalidade
e de acordo com a legislação
europeia- trouxe seus operários especializados italianos e
portugueses para ampliar a refinaria, os operários ingleses
entraram em greve.
No meio da nevasca, dezenas
deles desfilaram na frente da
refinaria carregando cartazes
onde estava escrito: "Emprego
britânico para trabalhadores
britânicos".
Caos bancário, estagnação
econômica, tensões sociais,
protecionismo, xenofobia. Em
escala desigual, estas etapas reproduzem os primeiros desdobramentos da crise de 1929.
Mas há ainda uma chance de
consertar os estragos: todo
mundo sabe que esse encadeamento fatal explodiu numa
grande conflagração mundial.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e
professor na Universidade de Paris 4. É autor de
"O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras) e escreve na seção "Autores", do Mais! .
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