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+(L)ivros
O novo regime social
Obra fundadora, "Historia do Brazil", de frei Vicente do Salvador, identificava a mestiçagem como central à formação do país, em 1630
JOÃO FRAGOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Acaba de chegar às livrarias a mais nova
edição da "Historia
do Brazil", de frei
Vicente do Salvador, um dos clássicos da crônica colonial.
Desta vez, a obra foi preparada por Maria Lêda Oliveira,
historiadora pernambucana e
investigadora da Universidade
Nova de Lisboa, que nos brinda
com um cuidadoso estudo sobre o homem frei Vicente, sua
época, os códigos letrados de
então e as edições anteriores,
inclusive a de Capistrano de
Abreu [1853-1927].
Esta nova publicação veio a
calhar, pois ocorre em um momento em que a historiografia
nacional começa a se desprender das chamadas "teorias da
dependência", modelos que
por décadas prevaleceram na
explicação da economia brasileira dos séculos 16 e 17.
Assim, a reedição é uma ótima oportunidade para olharmos de maneira mais crítica
para a formação da sociedade
brasileira.
Concluída, provavelmente,
em 1630, a "Historia do Brazil"
nos traz depoimentos de um
homem a um só tempo jesuíta
e filho de uma nobreza da terra
baiana em gestação sobre as
feições de uma sociedade que
logo seria centro do império ultramarino luso. Vejamos isso
com mais atenção.
Em 1656, menos de 30 anos
depois de concluída a "Historia
do Brazil", o Conselho da Fazenda da monarquia lusa expunha a situação de seu império.
O outrora florescente Estado
da Índia estava reduzido a seis
praças, "sem proveito religioso
e econômico".
Em contrapartida, o Brasil
tornara-se a "substância principal" da monarquia e "Angola
o nervo das fábricas do Brasil".
Portanto, conforme o egrégio
conselho, o sistema atlântico
luso já estava constituído naquele momento.
Economia da escravidão
Os engenhos de açúcar espalhavam-se pelo litoral de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Da mesma forma, as produções de alimentos, encravadas
ou não nas áreas agroexportadoras, abasteciam as gentes
desta América.
Completando o cenário, os
escravos, cada vez mais, vinham de Angola, substituindo
os chamados negros da terra
(índios).
Esse sistema atlântico e escravista ampliou-se com a mineração e permaneceu como
base da Monarquia lusa até
1822.
Diante desse panorama, uma
pergunta parece inevitável.
Como isso ocorreu? Afinal,
em 1591, a estimativa do número de engenhos no Brasil era de
apenas 63. Menos de 50 anos
depois, em 1637, passava para
350. Segundo as toscas informações sobre o tráfico de africanos para o Brasil, entre 1580
e 1600, por ano, entraram
2.000 cativos e, na década de
1620, tais entradas já eram
mais de 6.500 almas.
Por conseguinte, em menos
de 50 anos, os números de engenhos e de escravos africanos
triplicaram, pelo menos.
Assim voltamos ao nosso frade, contemporâneo dessa
transformação do "Brazil". Por
meio de uma leitura atenta de
seu texto, podemos ter indícios
da lógica social que presidiu
aquela formação econômica e,
consequentemente, as opções
de seus agentes.
Em diversos capítulos ele
nos relata, por exemplo, a ação
dos Coelho, Albuquerque e dos
Sá. Parentelas que, "à custa de
suas fazendas e vidas", conquistaram partes daquela
América, estendendo o domínio da monarquia de Pernambuco ao Maranhão e da Bahia
ao Rio de Janeiro.
Em seguida, cuidaram do
"bem comum" das gentes, com
o estabelecimento da Justiça,
do mercado público e da defesa. Desse modo, começavam a
funcionar as "repúblicas" ou
municípios, sob a tutela do rei,
porém dirigidos por Câmaras
votadas pelos homens bons da
terra, garantindo, tal como no
reino, o autogoverno das comunidades.
O relato dessas ações ocupa
boa parte do livro e expressa
práticas sociais conhecidas há
tempos no Antigo Regime luso.
Daí não nos causa espanto
que Duarte Coelho, donatário
de Pernambuco, e seu cunhado, Jerônimo de Albuquerque
(os dois vindos da Índia), tenham recorrido a essas práticas. Sendo a mesma receita utilizada por Mem de Sá, governador geral do Brasil (1504-72), e
cuja autoridade teve como um
dos alicerces sua parentela e
clientela, e não apenas os parcos recursos da coroa.
Índios e fidalgos
Com certeza, esses e outros
conquistadores, ainda dentro
das normas do Antigo Regime,
foram remunerados por sua
majestade.
Ou melhor, receberam mercês na forma de vastas terras,
foros de fidalgo, privilégios
mercantis e cargos régios que
lhes davam acesso aos recursos
da jovem sociedade. Mais ainda, ganharam do rei o mando
político das gentes. Porém, esse
mando só foi possível por meio
de outro expediente: as alianças com segmentos das populações indígenas.
Aqui surgem, na crônica de
nosso frei Vicente sobre a formação do "Brazil", outros atores, com menos recursos, porém, ainda, agentes: os índios.
O filho de Jerônimo de Albuquerque, seu homônimo e conquistador do Maranhão (1548-1618), tratava os índios de suas
terras como "sobrinhos", talvez
por ele próprio ser mestiço, neto materno de um chefe indígena. Ou seja, ele era produto da
aliança com frações indígenas.
Aliados e aparentados a índios flecheiros, Jerônimo, os
descendentes de Diogo Álvares
Correia (Caramuru) e outros
conquistaram terras e índios
escravos. Conforme se sabe hoje, a "decolagem" dos engenhos
de açúcar fora possível pela escravidão indígena.
Aqui a evangelização, seja
dos índios aliados ou conquistados, como sugere Vicente Salvador e sublinha Maria Lêda
Oliveira, era essencial para o
sucesso do "Brazil".
Principalmente se lembrarmos que não se contava com o
crédito de capitais ingleses e
holandeses, como ocorreu no
Caribe seiscentista, dispostos a
comprar avalanches de africanos para as "plantations".
Os mecanismos de Antigo
Regime permitiriam à América
lusa, no século 17, inundar o
mercado internacional de açúcar e comprar cerca de 40% do
total dos escravos que cruzaram o Atlântico.
Mecanismos que se traduziram em um sistema atlântico
diferente do comandado por
Londres e Amsterdã, este último mais afinado com o capitalismo ou algo que o valha.
A "Historia do Brazil" fornece indícios das origens do sistema Atlântico luso de tipo antigo e mais de uma sociedade que
conseguiu, a um só tempo,
combinar a mestiçagem e uma
forte ascensão social, e isso nos
quadros de uma hierarquia social com traços estamentais.
JOÃO FRAGOSO é professor do departamento
de história da Universidade Federal do RJ e coorganizador de "Conquistadores e Negociantes"
(ed. Civilização Brasileira).
HISTORIA DO BRAZIL
Autores: Frei Vicente do Salvador (vol.1) e Maria Lêda Oliveira A. da Silva (vol. 2)
Editora: Versal (0/xx/21/2239-4023)
Quanto: R$ 212 (592 págs.)
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