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Morrisey, o pária
O EX-VOCALISTA DOS SMITHS REJEITA A VOLTA DO GRUPO, CRITICA ESTRELAS POP,
COMO MADONNA, FALA
DE SUA VIDA RECLUSA E MAMBEMBE E DIZ SE SENTIR ORGULHOSO POR SER ÍDOLO
DA COMUNIDADE LATINA NOS EUA
BENOÎT SABATIER
Julho de 1972. Manchester, cidade industrial do
norte da Inglaterra. Steven Morrissey acaba de
completar sofridos 13
anos. Ele, que se sente mal consigo mesmo, mal na escola, mal
em sua família, pode nessa noite sair de seu cotidiano infeliz:
seu pai, carregador de macas
no hospital, leva-o para assistir
a seu primeiro concerto.
O T. Rex está se apresentando no Belle Vue. Na cabeça de
Steven, é uma explosão atômica que se produz. Ele vê um outro mundo possível, enxerga a
vida ampliada. No microfone,
um deus, Marc Bolan, vestindo
calça de lamê dourado, paletó
de smoking enfeitado com
strass brilhante.
É esse glam rock que faz Steven sentir-se vivo: os discos
que ouve religiosamente em
seu quarto em Hulme, bairro
proletário da cidade, e os visuais que o fazem sonhar. Ou
Roxy Music, com suas fotos
cheias de glamour e seus figurinos tão extravagantes.
Socialmente deficiente, recusando-se a beber muito com
seus amigos, Steven passa seu
tempo lendo, assistindo a filmes, ouvindo música e escrevendo. Lê Virginia Woolf e Oscar Wilde e encontra ídolos
ainda mais loucos. E os New
York Dolls.
Quando encontra o jovem
guitarrista Johnny Marr, finalmente as coisas começam a rolar. The Smiths lançam seu primeiro single em 1983. A ideia
dos Smiths é voltar às guitarras, inventar o futuro evocando
Elvis e The Kinks. Os maiores
sucessos da época (Spandau
Ballet, Duran Duran, Paul
Young...) se fundem no pop
sintético, veiculam o yuppismo
e defendem a diversão. The
Smiths partem diretamente
para cima de seu alvo -a miséria humana.
Morrissey, que fará 50 anos
em maio, acaba de lançar seu
novo álbum, "Years of Refusal"
(Anos de Recusa, gravadora
Decca/Polydor).
"Tenho horror a drogas. Tenho horror a cigarros. Sou celibatário e tenho um modo de vida muito saudável", diz. E proclama: "Somos reacionários".
Mais tarde: "Os Smiths estavam em ruptura com tudo o
que sua época veiculava".
A "smithsmania" alcança um
paroxismo angustiante quando
um adolescente armado invade
uma rádio de Denver [EUA],
em 1987, e ordena que a estação transmita apenas canções
de seu grupo adorado.
O rapaz só se rende depois de
quatro horas. Já os Smiths se
rendem depois de cinco anos.
Nick Kent: "A notícia da separação deles provocou mais suicídios que os anúncios da morte de Elvis, da separação dos
Beatles ou da divisão dos Stones, todos juntos".
Fãs chicanos
Sem seu grupo, sai seu primeiro álbum solo, "Viva Hate",
que entra diretamente no primeiro lugar das paradas. Bate o
recorde dos Beatles, ao vender
em 23 minutos todos os ingressos para seu show no Hollywood Bowl.
Morrissey muda-se para Los
Angeles, para o Sunset Boulevard, na mansão que Clark Gable ofereceu a Carole Lombart
-uma casa na qual já moraram
Francis Scott Fitzgerad e John
Schlesinger. Não atende ao telefone; comunica-se por fax.
Seus novos fãs montam
acampamento diante de sua casa. São multidões de jovens chicanos com atitude que se unem
em torno do canto atormentado de Moz.
Musicalmente, não cede a
nenhuma moda, mantendo-se
fiel a seus amores, o glam e o
pop. Contrata um bando de
músicos de rockabilly, cantando canções compostas por nomes secundários.
O importante, na era dos
downloads, é fazer apresentações ao vivo instigantes.
"Na realidade o mundo não
quer ouvir apenas Brócoli
[Britney] Spears. Também
existem ouvintes esclarecidos."
Ofereceram a ele US$ 75 milhões para que reformasse os
Smiths. "Eu preferiria comer
meus próprios testículos, o que
seria uma façanha e tanto para
um vegetariano como eu." Recusa. Pose. Leia mais na entrevista abaixo, cara a cara, numa
mansão londrina.
PERGUNTA - Você parece permanecer mais no plano da recusa do que
no da aceitação. Vem daí o o título
de seu novo álbum?
MORRISSEY - É assim que vejo
minha posição artística no
meio musical. Desde o começo,
vejo-me obrigado a recusar todo tipo de pressão.
Para juntar à sua volta a grande família das celebridades da
cultura pop, você precisa aceitar certas concessões. Não faço
parte desse mundo.
Isso não é a cultura pop, é a
cultura puta.
PERGUNTA - Essa é uma postura
moral ou estética?
MORRISSEY - É o caminho para
continuar a fazer arte.
Hoje
o indie virou
um "look",
mas no início dos anos 1980 era uma profissão de fé
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Não sou uma celebridade; meu status
não tem
nada a ver com essa palavra
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Sou um antissocial; mal sou tolerado pela indústria e nunca fui convidado pela MTV
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O sucesso no pop é um processo de sermos postos à prova
-doce e feliz para alguns, horrível para mim, já que o sucesso
nos distancia da arte propriamente dita.
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PERGUNTA - Nos anos 1980, a recusa do nivelamento vinha dos selos
pós-punk: na realidade, você se
manteve fiel a essa ética, a ética da
música indie.
MORRISSEY - Bem... Ao espírito
da independência, OK.
PERGUNTA - É isso que significa "indie"? Independência?
MORRISSEY - Originalmente,
sim, mas o indie virou um gênero musical, do qual minha música não faz parte. Hoje o indie
virou um "look", uma postura,
mas, no início dos anos 1980,
era uma profissão de fé e também a promessa de alcançar
um público muito reduzido.
Naquela época era muito difícil os independentes chegarem a um público grande. Os
Smiths conseguiram, mas éramos casos isolados.
PERGUNTA - O fato de o indie ter virado mainstream quer dizer que a
luta que você travou com os Smiths
foi vitoriosa?
MORRISSEY - Uma vitória, sim,
mas cujo resultado foi pela metade. Por um lado, podemos
nos parabenizar porque alguns
grupos indies fazem sucesso
hoje, mas eu nunca recebi crédito por essa vitória. Ninguém
se encarregará disso.
PERGUNTA - Você usa sua celebridade para obrigar as pessoas a deixá-lo em paz...
MORRISSEY - Não sou uma celebridade. Meu status não tem
nada a ver com essa palavra.
PERGUNTA - Quando era adolescente, o glam rock foi a música que
fez você finalmente se sentir vivo?
MORRISSEY - Exatamente. Eu tinha só dez anos quando o T.
Rex, mas também Bowie, com
"The Man Who Sold the
World", mudaram tudo. Além
do rótulo glam rock, havia uma
visão bombástica. Você não pode imaginar o efeito que exercia, na época, ver aqueles artistas todos usando maquiagem.
Hoje em dia isso passa despercebido, é até mesmo um
pouco ridículo e, em todo caso,
não faz mais sentido. Mas em
1971-72! Era tão estranho! Mais
que ousado -era perigoso.
PERGUNTA - Você gravou este novo
álbum em Los Angeles...
MORRISSEY - Sim.
PERGUNTA - É um lugar onde você
se sente bem?
MORRISSEY - É uma cidade que
ainda me fascina. É um bom lugar para minha música, para a
inspiração, para minha tranquilidade.
PERGUNTA - Parece incrível que você, popstar tão inglês, tenha se instalado na cidade de 50 Cent e Axl
Rose. Mas, quando a gente ouve
uma canção como "When I Last Spoke to Carol", isso passa a parecer
quase natural.
MORRISSEY - Verdade? É por
causa do lado latino de Los Angeles. Eu tinha ouvido música
com som de trompete, inspirei-me nisso.
PERGUNTA - Acha estranho ser idolatrado pela comunidade latina?
MORRISSEY - Sinto-me sobretudo lisonjeado. Quando vejo as
tatuagens de "Morrissey"...
Acho comovente. O fato de
queimarem meu nome na pele... Me sinto devotado a eles,
também.
PERGUNTA - São os párias do sonho
americano.
MORRISSEY - Sim, de certo modo. Tenho muito orgulho desse
título: "O cantor dos párias".
PERGUNTA - Esse título sempre o
agradou?
MORRISSEY - Oh, sim.
PERGUNTA - Por quê?
MORRISSEY - Porque é o que eu
sou. Eu me sinto antissocial. É a
verdade, eu sou um antissocial.
Ao mesmo tempo em que tenho milhares de fãs, mal sou tolerado pela indústria, nunca fui
convidado pela MTV, continuo
a ser um artista à margem. Não
é como se eu tivesse sentado e
decidido "vou ser um marginal". Eu sou marginal no meu
eu mais profundo.
Portanto, não tenho escolha.
PERGUNTA - Apesar disso, você se
integrou à sociedade.
MORRISSEY - Não, de jeito nenhum. Os valores que a sociedade favorece não são os meus.
Não quero formar um casal
bonito, não quero me integrar
aos clichês de uma vida doce,
feliz e perfeita. Já há gente suficiente comprometida com isso
-não é preciso que eu também
o faça.
PERGUNTA - Isso é recusa ou é incapacidade?
MORRISSEY - As duas coisas. Sou
tremendamente individualista.
Nego-me a ser capaz de pensar
como meus vizinhos. Venho sobrevivendo assim há anos; controlo meu corpo e tenho poucas
razões para andar na companhia daqueles que chamam de
meus semelhantes.
PERGUNTA - Mas você vai a algumas festas de vez em quando, não?
MORRISSEY - Festas? Não, não.
É entediante demais, de verdade. A presença das pessoas me
desequilibra. A necessidade de
falar... é difícil demais.
PERGUNTA - Com os Smiths, você
cantava como é difícil viver no mundo. Esse ainda é um de seus temas
mais importantes?
MORRISSEY - Sim. Não é um assunto que varie conforme mudam as tendências.
Em todo caso, não vejo como
eu poderia deixar de escrever
sobre isso: escrever sobre a
condição humana, não existe
nisso nada de superado. É algo
que será sempre atual.
PERGUNTA - "Life Is a Pigsty", um
dos títulos de seu álbum anterior...
MORRISSEY - Sim, a vida é mesmo um chiqueiro, não é? Uma
tortura. O calvário só termina
quando se morre. É tão sádico
assim.
PERGUNTA - É esse o tema da nova
canção "That's How People Grow
Up"?
MORRISSEY - Falo do fato de que,
para começar, a gente precisa
tentar encontrar seu próprio
lugar no mundo, que tudo nos
parece impossível, que é preciso ser forte, e então, quando a
gente finalmente dá certo, se dá
conta de uma coisa: está sozinho. Para o resto da vida.
PERGUNTA - Há a música, os filmes,
os livros.
MORRISSEY - É só disso que precisamos.
PERGUNTA - A música pop foi durante muito tempo vista como uma
arte menor. Você infundiu nela uma
dimensão letrada...
MORRISSEY - Isso me parece importantíssimo. Mas, quando
você se engaja nessa via, arrisca
muito. Porque a crítica será
ainda mais virulenta.
PERGUNTA - A cultura continua a
apaixoná-lo? Você ainda descobre
novos filmes, ainda lê muito, ainda
ouve música?
MORRISSEY - Os livros, os romances novos, alguns me parecem atraentes, mas pressinto a
decepção... Quanto ao resto,
sim, sem parar.
PERGUNTA - O quê?
MORRISSEY - Tenho visto muitos filmes ultimamente... mas
nada de bom. Não, nada que seja inesquecível.
Vivo na esperança.
PERGUNTA - Você não vive mais em
Roma?
MORRISSEY - Não. Eu estou por
aqui, mas não tenho casa.
Vou de cidade em cidade,
sem me fixar.
PERGUNTA - Você carrega todos os
seus livros, discos, DVDs?
MORRISSEY - Na verdade, a
maior parte de minhas coisas
estão num guarda-móveis.
PERGUNTA - Você é uma espécie de
mito vivo. Ainda tem alguma coisa a
provar?
MORRISSEY - É claro que sim.
Para começar, não devo decepcionar aqueles que me acompanham há tanto tempo e que vão
continuar a ouvir minhas canções novas. Depois, sempre há
novas pessoas a convencer.
E há também os artistas à minha volta. Tenho que provar
para mim mesmo que continuo
a ser essencial a eles.
PERGUNTA - Você ainda pensa que
"todos os dias são silenciosos e cinza" ou há dias em que se diverte?
MORRISSEY - Hoje sou mais tolerante comigo mesmo. Quando
você é jovem, é mais intransigente, quer a toda hora provar
alguma coisa. E então você chega aos 23 anos, sua mãe morre,
e você aprende a tolerância.
PERGUNTA - Se você ficasse feliz,
teria menos a dizer?
MORRISSEY - Estou disposto a
correr esse risco.
PERGUNTA - Você tem o status de
ícone pop, e isso recusando-se a fazer como Madonna ou Mick Jagger,
que difundem a imagem de feras do
sexo. Esse é um desafio adicional?
MORRISSEY - Um desafio para
mim? Em quê?
PERGUNTA - Por recusar-se a se divulgar como hiperssexuado.
MORRISSEY - Bem, sim, de certo
modo. Esse tema fascina, especialmente quando se trata de
alguém como eu, que, de fato,
não tem o mesmo discurso das
pessoas que você acaba de citar.
Será que tenho que explicar
minha vida, me justificar em
relação a isso? Não é mais físico, para mim -é metafísico.
Mas é preciso que eu dê uma
resposta -e, é claro, uma resposta inteligente. Isso às vezes
é cansativo, exagerado.
PERGUNTA - Você é uma anomalia,
porque, para ser popstar, convém
proclamar que se é alguém sedento
de sexo.
MORRISSEY - A atitude de Madonna é apenas marketing, nada mais. Saber até que ponto
ela se vestiu escandalosamente
não tem importância nenhuma. Ela age assim, e, concretamente, isso não tem nada de sexual -é um clichê. Ela ou todos
os outros. É bastante assustador pensar que se possa vender
milhões e milhões de discos jogando com clichês.
Será que realmente não têm
consciência de que cada um está jogando um jogo hipócrita?
PERGUNTA - Com você, é "no sex" e
"no drugs"?
MORRISSEY - De certo modo, a
contracultura virou uma mentira: findo o lado espontâneo,
os artistas do rock agem da maneira que se espera deles, ou
melhor, como pensam que se
espera deles... Isso virou uma
camisa-de-força que é preciso
vestir para passar uma impressão de descontraído.
Mas, se você olhar os artistas
da geração da contracultura,
hoje eles se comportam da maneira mais sadia possível. Há
uma inversão de gerações, um
retorno.
PERGUNTA - As pessoas perguntam
a McCartney há 40 anos quando os
Beatles vão voltar juntos. E você,
nunca vai aceitar as somas colossais
que lhe são oferecidas para voltar a
tocar com Johnny Marr ou não tem
tanta certeza assim?
MORRISSEY - Nunca me acontece de não ter certeza quanto a
isso. Ou de me sentir tentado
pelo que chamo de concessão.
The Smiths foi algo que aconteceu, que teve um começo e um
fim e que foi quase perfeito.
Não devemos mudar isso.
A íntegra desta entrevista saiu na "Technikart".
Tradução de Clara Allain .
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