São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

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AUTORES
Cultura degradada


O totalitarismo de mercado destrói seus próprios fundamentos intelectuais


ROBERT KURZ
especial para a Folha

Hoje, para a maioria, uma crítica fundamental da economia moderna parece tão insensata quanto a tentativa de passar pela parede, e não pela porta. Essa própria economia, contemplada à distância, revela todos os traços da loucura, considerados porém como normais, já que os critérios da máquina capitalista estão universalmente internalizados. Quando os loucos estão em maioria, a loucura é dever do cidadão. Sob tal pressão, a crítica social retira-se do campo da economia e sai em busca de evasivas. A esquerda, em especial, não vê com bons olhos quando se põe o dedo na ferida das relações econômicas reinantes: é penoso relembrar a própria capitulação incondicional. Desarmada teoricamente, a esquerda prefere denunciar toda crítica séria do mercado, do dinheiro e do fetichismo da mercadoria como economismo antiquado e infrutífero, há muito ultrapassado.
E com o que se ocupa uma crítica social já indigna desse nome? Antes, o grande refúgio era a política. Pretendia-se que todas as questões do sistema produtor de mercadorias (e portanto também a economia) fossem reguladas pelo "discurso racional" dos membros sociais, no interior das instituições políticas. Pouco resta dessa esperança. A política há tempos foi degradada a uma esfera secundária da economia totalitária. Hoje, o objetivo em si mesmo do capitalismo devorou a suposta "autonomia relativa" da política. Por isso, na pós-modernidade, a crítica social refugia-se na cultura, abandonando a política, assim como antes buscara refúgio na política, abandonando a economia. A esquerda pós-moderna tornou-se, sob todos os aspectos, "culturalista" e imagina-se, com toda seriedade, capaz de atuar "subversivamente" no âmbito da arte, da cultura de massas, da mídia e da teoria da comunicação, enquanto deixa praticamente de lado a economia capitalista e a menciona somente de passagem, com evidente enfado.
Mas sejam quais forem as esferas sociais em que se refugia uma esquerda de pouca voz, a economia capitalista está sempre presente e lhe acena com um sorriso irônico. É verdade que essa "economia divorciou-se da sociedade", como escreve a crítica social francesa Viviane Forrester em seu livro sobre o "terror da economia". Mas o capitalismo só esqueceu a sociedade no sentido social, sem contudo deixar que lhe escapasse das garras. Ao contrário, a economia totalitária vela zelosamente para que nada aconteça sob o sol que não sirva diretamente ao objetivo tautológico da maximização dos lucros. E isso hoje vale também para a cultura.
A economia moderna surgiu à medida que a esfera capitalista da produção industrial se desvinculou das demais esferas da vida. A cultura, no sentido amplo, parecia ser uma atividade "supra-econômica", que, como simples subproduto da vida, foi banida para o campo do chamado "tempo livre". Essa foi a primeira degradação da cultura na modernidade: ela se transformou num assunto pouco sério, num simples "momento de descanso". Mas tão logo o capitalismo dominou integralmente a reprodução material, seu apetite insaciável estendeu-se também às configurações imateriais da vida e, na medida do possível, começou a recolher peça por peça as esferas cindidas e submetê-las à sua peculiar racionalidade empresarial. Essa foi a segunda degradação da cultura: ela própria foi industrializada.
Repetiu-se, com isso, o que Marx dissera sobre as mudanças da produção material, pois a cultura também passou pela transição do estágio "formal" para o estágio "real" de submissão ao capital: se, num primeiro instante, os bens culturais eram compreendidos apenas superficialmente e "après coup" como objetos de compra e venda pela lógica do dinheiro, no decorrer do século 20 a sua própria produção passou a depender cada vez mais, de forma a priori, de critérios capitalistas. O capital não queria mais ser apenas o agente da circulação de bens culturais, mas dominar todo o processo de reprodução. Arte e cultura de massas, ciência e esporte, religião e erotismo cresceram de produção como carros, geladeiras ou sabões em pó. Com isso, os produtores culturais também perderam sua "autonomia relativa". A produção de canções e romances, de descobertas científicas e reflexões teóricas, de filmes, quadros e sinfonias, de eventos esportivos e espirituais só podia ocorrer como produção de capital (mais-valia). Essa foi a terceira degradação do capital.
Contudo, na época de prosperidade após a Segunda Guerra Mundial, formou-se ainda um pára-choques social que, em muitos países, protegeu parte da cultura contra o impacto devastador da economia. Falo do mecanismo da distribuição keynesiana. O "deficit spending" alimentava não apenas a produção de armamentos militares e o Estado Social, mas também certas esferas da cultura. Não há dúvida que a subvenção estatal impôs limites estritos à autonomia da cultura. Mas o controle do Estado era aberto à discussão pública, e não tirânico: em caso de um conflito, pode-se negociar com funcionários e políticos, mas não com as "leis do mercado". Por meio da "cultura do keynesianismo" uma parte da produção cultural dependeu apenas indiretamente da lógica do dinheiro. Enquanto emissoras de rádio e televisão, universidades e galerias, projetos artísticos e teóricos eram subsidiados ou dirigidos pelo Estado, não era preciso submeter-se diretamente aos critérios empresariais; havia um certo campo de ação para a reflexão crítica, os experimentos e as "artes improdutivas" minoritárias, sem que os ameaçasse as sanções materiais.
Essa situação modificou-se essencialmente a partir do início da nova crise mundial e com a respectiva campanha neoliberal. O fim do socialismo e do keynesianismo abalou fortemente a cultura, pois ela se viu privada de seus meios. Os Estados não se desarmaram militarmente, mas culturalmente. Numa pequena parcela do espectro cultural, os investimentos privados tomaram o lugar dos incentivos estatais. Não há mais direitos sociais e civis, mas apenas o arbítrio caritativo dos ganhadores do mercado. Os produtores culturais vêem-se expostos aos humores pessoais dos rajás do capital e dos mandarins da administração, para cujas esposas eles devem servir de hobby e passatempo. Como os bobos da corte e os serviçais da Idade Média, eles são obrigados a portar os emblemas de seus senhores, a fim de serem úteis ao marketing. Essa é a quarta degradação da cultura.
Para a maioria esmagadora das artes, ciências e atividades culturais de todo tipo, porém, a questão do humilhante e arbitrário investimento privado não é nem sequer aventada. Hoje elas se encontram, numa proporção inaudita, expostas diretamente, sem filtro algum, aos mecanismos do mercado. Institutos científicos e associações esportivas têm de recorrer à Bolsa, universidades e teatros têm de render lucros, literatura e filosofia têm de resistir aos critérios da produção de massas. Nos grandes veículos de distribuição, só logra êxito o que se presta como oferta ao lazer dos escravos do mercado. Daí as distorções grotescas na gratificação das produções culturais: no futebol e no tênis, os jogadores recebem milhões, ao passo que os produtores de crítica, reflexão, representação e interpretação do mundo são rebaixados ao nível de limpadores de sanitários. Com a racionalização capitalista da mídia, são transpostos para a esfera cultural os salários de fome, o "outsourcing" e a escravidão empresarial.
O resultado só pode ser a destruição do conteúdo qualitativo da cultura. Miseravelmente pagos, socialmente degradados e difamados, os trabalhadores da cultura e da mídia produzem, é óbvio, bens igualmente miseráveis; isso vale tanto para esse campo quanto para todos os outros. E com isso a redução brutal ao horizonte de tempo abreviado e à distribuição de massa do mercado elimina tudo o que pretende ser mais do que um produto descartável. Nas livrarias, em breve, só encontraremos livros pornográficos, esotéricos e de receitas, para a classe média depravada. Mas também nas ciências a lógica do mercado deixa um rastro de destruição. Como, por sua essência, não podem assumir a forma mercantil, as ciências sociais e do espírito são arrancadas da empresa acadêmica como ervas daninhas. Sobretudo os institutos históricos padecem com o corte nas suas dotações, pois o mercado não precisa mais de passado; a ciência natural substitui-se em definitivo à filosofia e à teoria social. Na ciência natural, contudo, a pesquisa "sem objetivo" é depreciada e estrangulada em proveito da pesquisa de encomenda, mais rentável ao capital.
Essas tendências, assim como já haviam degradado a subjetividade religiosa ou política, levam necessariamente ao colapso da subjetividade cultural na sociedade burguesa, sem substituí-la por algo novo. Hoje, nem mesmo um conservador ainda "é" conservador, mas somente alguém que compra o conservadorismo como se fosse molho de tomate ou cadarços. Mesmo o atual papa, por ortodoxo que seja, revela-se um especialista de marketing para eventos religiosos; em breve, as religiões e as seitas lançarão títulos nas Bolsas e se pautarão pelos princípios do "shareholder value". Os artistas e cientistas submetem-se ao mesmo aviltamento de sua personalidade. Quando pensam e produzem, com pressurosa obediência, segundo as categorias a priori da venalidade, já perderam o pé de seu objeto e podem somente ratificar a sua tarefa, como o célebre pintor Baselitz, ao voltar seus quadros para a parede, num lampejo de lucidez.
O "economismo" não é uma idéia equivocada e unilateral de marxistas incorrigíveis, mas a tendência real da ordem social reinante ao totalitarismo econômico, que adquire na crise atual o seu maior e derradeiro surto. Mas o capitalismo não pode firmar-se sobre as suas próprias bases. Do mesmo modo que a indústria farmacêutica perderá sua grande fonte de saber e de material se as florestas tropicais forem devastadas, assim também a indústria da cultura se esgotará quando não puder mais sangrar as subculturas, uma vez que a atividade não-comercial das massas acha-se definitivamente morta. Uma sociedade que consta apenas de vendedores futriqueiros e insistentes e que já é incapaz de refletir sobre si mesma tornou-se insustentável também em termos sociais e econômicos.
Para os produtores da cultura, da arte e do pensamento reflexivo não há mais motivo para servir de legitimação a um capitalismo autoritário, que remunera mal, e sair à busca de elogios no deserto pós-moderno do mercado. Se possuem algum vestígio de amor-próprio, eles acabarão por encerrar-se em si mesmos e, pelo menos em seu íntimo, confessar sua animosidade irreconciliável em relação aos críticos do mercado. Essa postura não deve ser passiva, mas ativa. Os produtores culturais talvez devessem associar-se em grupos, sindicatos, guildas, clubes e ligas anti-mercado, preocupados não em vender, mas salvar os recursos culturais da barbárie do mercado. Tal postura será diversa do conservadorismo cultural -sempre acorde com o poder-, sobretudo pelo fato de ligar-se aos humilhados e ofendidos e dar expressão cultural aos sofrimentos sociais, ao invés de harmonizar-se com o jovial positivismo dos oportunistas pós-modernos.


Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Vozes). Ele escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.



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