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POESIA
Há cem anos morria o autor de "Broquéis",
um dos maiores poetas negros da literatura
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Tristeza do infinito
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
Em 19 de março de 1898, dia seguinte ao de sua chegada à Estação
de Sítio, Minas Gerais, para onde
seguira em busca de tratamento
para a doença que se declarara três
meses antes, o poeta catarinense
João da Cruz Sousa morreu de tuberculose. Filho de um escravo alforriado quando seu senhor, o
marechal-de-campo Guilherme
Xavier de Sousa, partira para a
Guerra do Paraguai, o poeta, nascido em 24 de novembro de 1861,
foi educado pela família do senhor
e é dela também que tomou seu
nome. Sua educação, para os padrões da época, pode ser chamada
de aristocrática e os amigos lembram-se dele como um verdadeiro
dândi. Ele estudou os clássicos,
línguas estrangeiras e teve como
professor um naturalista alemão
que se correspondia com Darwin:
Fritz Müller. Nos anos seguintes, a
cor revelou-se grande empecilho
para sua vida profissional, mas
ajudou de certa forma a chamar a
atenção da crítica e dos leitores para sua carreira literária -que começou oficialmente com a dupla
publicação, em 1893, dos poemas
de "Broquéis" e da prosa poética
de "Missal". Devido a esses dois livros, 1893 é consensualmente considerado o ano inaugural do simbolismo no Brasil. Outros pontos
em que há certo consenso são os
traços gerais que definem o movimento e a avaliação da obra do catarinense como um de seus ápices
neste país.
Embora, em meados do século
19, Baudelaire (ou Nerval etc.) não
estivesse pensando exatamente
em criar um movimento, as discussões posteriores em torno de
seus poemas, de sua estética e da
obra dos continuadores tornaram
o que viria a se chamar simbolismo um movimento dotado de
uma doutrina tão ou mais influente no curto prazo do que sua própria poesia e, por isso mesmo,
muito mais semelhante nesse aspecto aos "ismos" do século seguinte do que a tudo que surgira
antes. Define-se geralmente o simbolismo como uma revolta contra
o racionalismo progressista, otimista e cientificista do século passado, uma revolta cujo objetivo,
dando continuidade aos extremos
do romantismo, era tornar a linguagem menos precisa e lógica,
mais sugestiva e musical por meio
do ciframento, da ambiguidade e
de associações inesperadas ou
inexplicáveis, para que ela pudesse
aproximar-se daquilo que a razão
seria incapaz de perceber, atingindo assim algum tipo de transcendência. Associa-se a tudo isto a
atração pelo esotérico e o culto da
"arte pela arte" que transformaria
poesia, pintura e música numa religião e seus praticantes em sacerdotes (o acréscimo brasileiro estava no combate aos ditames do parnasianismo).
O único problema é que essa definição está longe de circunscrever
a obras dos seis representantes
máximos do simbolismo francês:
Baudelaire, Verlaine, Rimbaud,
Laforgue, Corbière e Mallarmé.
Pode parecer estranho, mas
Cruz e Sousa está mais próximo
deste ideário do que os seis poetas
acima, se bem que seus poemas
tampouco se limitem a isso. Ele
começou a escrever numa veia entre parnasiana e condoreira e é
nessa combinação estilística que,
no começo de sua carreira, compôs poemas abolicionistas, ou melhor, antiescravagistas. Um exemplo notável, diferente em tudo do
lirismo que o tornaria célebre, leva
o título de "Escravocratas":
"Oh! Trânsfugas do bem que sob
o manto régio
manhosos, agachados -bem
como um crocodilo,
viveis sensualmente à luz dum
privilégio
na pose bestial dum cágado tranquilo.
Eu rio-me de vós e cravo-vos as
setas
ardentes do
olhar -formando uma
vergasta
dos raios mil
do sol, das iras
dos poetas,
e vibro-vos à
espinha -enquanto o grande basta
O basta gigantesco,
imenso, extraordinário
da branca
consciência-
o rútilo sacrário
no tímpano
do ouvido
-audaz me
não soar.
Eu quero em
rude verso altivo adamastórico,
vermelho,
colossal, d'estrépito, gongórico,
castrar-vos
como um touro -ouvindo-vos urrar!".
Quem esteja
familiarizado
com o Cruz e
Sousa de "Antífona", o poema-manifesto
que encabeça
"Broquéis",
mal reconhecerá o autor
num soneto
como este (não
datado em sua
"Obra Completa", mas
possivelmente
escrito poucos
anos antes da
Abolição). Alguns elementos que mais
tarde se tornariam centrais
aparecem
aqui, mas não
passam de detalhes secundários: uma
expressão como "rútilo sacrário"
ou a sequência de adjetivos na última estrofe. Ainda assim, sua poesia oficialmente simbolista é vaga,
etérea, abstrata, delicada, enquanto este poema é objetivo, direto,
rude e contundente. Aquela é quase sempre despida de humor; a sátira deste beira o grotesco. A sintaxe ali é simples, singela e composta de frases curtas; aqui, se bem
que não chegue ao "gongórico",
ela é rebuscada, complexa e turva,
com a enunciação da segunda
quadra invadindo brutalmente o
primeiro terceto. Não conheço juízo de valor ou critério de julgamento segundo o qual "Escravocratas" não pudesse ser considerado um de nossos mais enérgicos
poemas políticos. E, no entanto,
não figura, que eu saiba, em nenhuma antologia posterior à sua
redescoberta.
É sobretudo ao próprio autor
que isto se deve, pois, como se vê
nos volumes de 1893, ele acabou
optando por um estilo, ou melhor,
uma poética tão diferente quanto
possível daquela do soneto em
questão. É difícil dizer o que o teria
movido mais: a leitura da poesia
simbolista francesa ou sua doutrina. Em todo caso, ele deixou de lado o que já sabia fazer bem em
prol de algo que lhe cabia aprender. Não raro parece que o que
Cruz e Sousa adotou foi menos
uma estética do que um mecanismo que lhe permitia escrever poema após poema num fluxo surpreendente. Este fluxo tem, sem
dúvida, qualidades: sua escolha lexical, normalmente estreita, é
sempre apropriada, suas imagens
são coerentes e, dentro de seu sistema, bem construídas, seu fraseado é elegante e equilibrado, sua
dicção é a de um mestre, a versificação límpida e musical combina
com suas rimas corretas.
Em seus bons momentos, o poeta pode competir tranquilamente
com Cesário Verde: "A peregrina
carnação das formas/ -o sensual
e límpido contorno,/ tinham esse
quê de avérnico e de morno,/ davam a Zola as mais corretas normas!..." ("Dormindo"), ou "E tens
as nuances raras/ dos bons prazeres servidos/ nos rostos enlourecidos/ das parisienses preclaras"
("Lirial"); com Augusto dos Anjos: "Aplica o ouvido à correnteza
fria/ dos golfões da matéria/ e recorda de que lama sombria/ é
composta a miséria" ("Recorda"),
ou "...e viva essência/ dos fantasmas noctívagos da cova" ("Flores
da Lua"), ou "Vala comum de corpos que apodrecem,/ esverdeada
gangrena, cobrindo vastidões que
fosforecem/ sobre a esfera terrena" ("Tédio", em que, mais adiante, "sinistras sereias" é superior ao
poeta de "Eu"), ou "Riso de ateu e
riso de budista/ gelado no Nirvana
impenitente" ("Rebelado"); com o
Manuel Bandeira de "Carnaval": "De
ironias o momo picaresco/
abre-lhe a boca
e uns dentes de
ferrugem,/
verdes gengivas de ácida
salsugem/
mostra e parece um Sátiro
dantesco"
("Majestade
Caída"), ou
"Canção do
Bêbado"; com
o Vinicius de
Morais de "Receita de Mulher": "Para
haver mais requinte e haver
mais viva,/ doce beleza e original carícia,/
deu-lhe uns toques ligeiros de
ave esquiva/ e
uma auréola
secreta de malícia" ("A Flor
do Diabo", em
que o poeta
chega a imagens como
"nas lagoas letíficas, sidéreas,/ o cadáver da lua vai
boiando").
E, de quando
em quando,
Cruz e Sousa
alcança apogeus exemplares: "Jamais há
de ela Ter a cor
saudável/ para
que a carne do
seu corpo goze,/ que o que
tinha esse corpo de inefável/
cristalizou-se
na tuberculose" ("Tuberculosa"); "Ó carnes que eu
amei sangrentamente" ("Dilacerações");
"Rio do esquecimento tenebroso,/ amargamente frio,/ amargamente sepulcral, lutuoso/ amargamente
rio!" ("Esquecimento"); "Certo
neblinamento de saudade" ("Ressurreição"); "Um luar de perdões
desabotoa" ("Enlevo"); "És velada, quebradiça/ como teu nome é
velado./ Certa flor curiosa viça/ no
teu corpo edenizado" ("Inês");
"Tristeza de não sei donde/ de não
sei quando nem como.../ flor mortal, que dentro esconde/ sementes
de um mago pomo" ("Tristeza do
Infinito").
Não há, porém, como deixar de
observar que essas condensações
de inspiração e de engenho estão
espalhadas em poemas cujo restante é substancialmente menos
realizado. Grande parte de sua
produção compõe-se de sonetos
decassilábicos, mas estes tendem a
se confundir uns com os outros
em decorrência da repetição insistente de imagens, de palavras, de
fórmulas mesmo. A falta de foco e
a irresolução programática de seus
poemas transforma-os frequentemente num todo indiferenciado
em que a descoberta de pontos luminosos é a recompensa da persistência paciente do leitor.
Deste modo, são os poemas longos que servem ao poeta como
uma espécie de rede para capturar
o que ele podia oferecer de melhor
e, dentre estes, destacam-se as litanias escritas em versos mais curtos
como as redondilhas. Talvez, ao
abandonar seu estilo juvenil por
uma idéia daquilo que seria o simbolismo, Cruz e Sousa não tenha
afinal chegado ao simbolismo propriamente dito (se são os seis poetas franceses mencionados que
melhor o representam), mas a algo
diferente, e um poeta cujos paralelos com o autor de "Broquéis" mereceriam ser analisados é o inglês
Dante Gabriel Rossetti, fundador,
em 1848, do pré-rafaelismo, um
movimento poético e pictórico
tardo-romântico que está para o
romantismo original de Blake,
Wordsworth ou Keats assim como
o rococó está para o barroco.
Pouquíssimos poetas brasileiros
foram tão bem estudados quanto
o catarinense. Desde seus partidários e defensores, como Nestor Vítor, Sílvio Romero, Andrade Muricy ou Roger Bastide, até nossos
principais historiadores literários,
como Manuel Bandeira, Péricles
Eugênio da Silva Ramos, Otto Maria Carpeaux, Massaud Moisés,
Alfredo Bosi e Luciana Stegagno
Picchio, passando por opositores
que mudaram depois de idéia, como José Veríssimo, os críticos dedicaram-lhe uma atenção sincera e
o analisaram com sensibilidade,
nem por isso deixando de expor
seus senões. Nada mais justo, porque, além de ter seu lugar garantido entre os melhores do Brasil oitocentista não só com sua poesia,
mas também com sua prosa poética, Cruz e Sousa foi sem dúvida (se
descontarmos as origens remotas,
quase lendárias, de Aleksandr Serguêievitch Púchkin) o mais importante poeta negro a escrever
fora da África antes dos caribenhos Aimée Cesaire, Kamau
Brathwaite, Derek Walcott e do
americano LeRoi Jones.
Obras de Cruz e Sousa
"Obra Completa de Cruz e Sousa" - Ed.
Nova Aguilar (r. Dona Mariana, 205, casa
1, CEP 22280-020, RJ, tel. 021/537-8275).
900 págs. R$ 59,00.
"Missal" e "Broquéis" - Ed. Martins Fontes
(r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP
01325-000, SP, tel. 011/239-3677). 204
págs. R$ 12,50.
"Dispersos - Poesia e Prosa" - Ed. da
Unesp (av. Rio Branco, 1.210, CEP
01206-904, SP, tel. 011/223-7088). 160
págs. R$ 16,00.
"Poesia Completa" - FFC Edições e Fundação Banco do Brasil (Fundação Catarinense de Cultura, av. Rio Branco, 387, 6º andar, CEP 88015-201, Florianópolis, SC).
432 págs.
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