São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

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POESIA

Há cem anos morria o autor de "Broquéis", um dos maiores poetas negros da literatura


Tristeza do infinito

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Em 19 de março de 1898, dia seguinte ao de sua chegada à Estação de Sítio, Minas Gerais, para onde seguira em busca de tratamento para a doença que se declarara três meses antes, o poeta catarinense João da Cruz Sousa morreu de tuberculose. Filho de um escravo alforriado quando seu senhor, o marechal-de-campo Guilherme Xavier de Sousa, partira para a Guerra do Paraguai, o poeta, nascido em 24 de novembro de 1861, foi educado pela família do senhor e é dela também que tomou seu nome. Sua educação, para os padrões da época, pode ser chamada de aristocrática e os amigos lembram-se dele como um verdadeiro dândi. Ele estudou os clássicos, línguas estrangeiras e teve como professor um naturalista alemão que se correspondia com Darwin: Fritz Müller. Nos anos seguintes, a cor revelou-se grande empecilho para sua vida profissional, mas ajudou de certa forma a chamar a atenção da crítica e dos leitores para sua carreira literária -que começou oficialmente com a dupla publicação, em 1893, dos poemas de "Broquéis" e da prosa poética de "Missal". Devido a esses dois livros, 1893 é consensualmente considerado o ano inaugural do simbolismo no Brasil. Outros pontos em que há certo consenso são os traços gerais que definem o movimento e a avaliação da obra do catarinense como um de seus ápices neste país.
Embora, em meados do século 19, Baudelaire (ou Nerval etc.) não estivesse pensando exatamente em criar um movimento, as discussões posteriores em torno de seus poemas, de sua estética e da obra dos continuadores tornaram o que viria a se chamar simbolismo um movimento dotado de uma doutrina tão ou mais influente no curto prazo do que sua própria poesia e, por isso mesmo, muito mais semelhante nesse aspecto aos "ismos" do século seguinte do que a tudo que surgira antes. Define-se geralmente o simbolismo como uma revolta contra o racionalismo progressista, otimista e cientificista do século passado, uma revolta cujo objetivo, dando continuidade aos extremos do romantismo, era tornar a linguagem menos precisa e lógica, mais sugestiva e musical por meio do ciframento, da ambiguidade e de associações inesperadas ou inexplicáveis, para que ela pudesse aproximar-se daquilo que a razão seria incapaz de perceber, atingindo assim algum tipo de transcendência. Associa-se a tudo isto a atração pelo esotérico e o culto da "arte pela arte" que transformaria poesia, pintura e música numa religião e seus praticantes em sacerdotes (o acréscimo brasileiro estava no combate aos ditames do parnasianismo).
O único problema é que essa definição está longe de circunscrever a obras dos seis representantes máximos do simbolismo francês: Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Laforgue, Corbière e Mallarmé.
Pode parecer estranho, mas Cruz e Sousa está mais próximo deste ideário do que os seis poetas acima, se bem que seus poemas tampouco se limitem a isso. Ele começou a escrever numa veia entre parnasiana e condoreira e é nessa combinação estilística que, no começo de sua carreira, compôs poemas abolicionistas, ou melhor, antiescravagistas. Um exemplo notável, diferente em tudo do lirismo que o tornaria célebre, leva o título de "Escravocratas":

"Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
manhosos, agachados -bem como um crocodilo,
viveis sensualmente à luz dum privilégio
na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
ardentes do olhar -formando uma vergasta
dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
e vibro-vos à espinha -enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário
da branca consciência- o rútilo sacrário
no tímpano do ouvido -audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
castrar-vos como um touro -ouvindo-vos urrar!".

Quem esteja familiarizado com o Cruz e Sousa de "Antífona", o poema-manifesto que encabeça "Broquéis", mal reconhecerá o autor num soneto como este (não datado em sua "Obra Completa", mas possivelmente escrito poucos anos antes da Abolição). Alguns elementos que mais tarde se tornariam centrais aparecem aqui, mas não passam de detalhes secundários: uma expressão como "rútilo sacrário" ou a sequência de adjetivos na última estrofe. Ainda assim, sua poesia oficialmente simbolista é vaga, etérea, abstrata, delicada, enquanto este poema é objetivo, direto, rude e contundente. Aquela é quase sempre despida de humor; a sátira deste beira o grotesco. A sintaxe ali é simples, singela e composta de frases curtas; aqui, se bem que não chegue ao "gongórico", ela é rebuscada, complexa e turva, com a enunciação da segunda quadra invadindo brutalmente o primeiro terceto. Não conheço juízo de valor ou critério de julgamento segundo o qual "Escravocratas" não pudesse ser considerado um de nossos mais enérgicos poemas políticos. E, no entanto, não figura, que eu saiba, em nenhuma antologia posterior à sua redescoberta.
É sobretudo ao próprio autor que isto se deve, pois, como se vê nos volumes de 1893, ele acabou optando por um estilo, ou melhor, uma poética tão diferente quanto possível daquela do soneto em questão. É difícil dizer o que o teria movido mais: a leitura da poesia simbolista francesa ou sua doutrina. Em todo caso, ele deixou de lado o que já sabia fazer bem em prol de algo que lhe cabia aprender. Não raro parece que o que Cruz e Sousa adotou foi menos uma estética do que um mecanismo que lhe permitia escrever poema após poema num fluxo surpreendente. Este fluxo tem, sem dúvida, qualidades: sua escolha lexical, normalmente estreita, é sempre apropriada, suas imagens são coerentes e, dentro de seu sistema, bem construídas, seu fraseado é elegante e equilibrado, sua dicção é a de um mestre, a versificação límpida e musical combina com suas rimas corretas.
Em seus bons momentos, o poeta pode competir tranquilamente com Cesário Verde: "A peregrina carnação das formas/ -o sensual e límpido contorno,/ tinham esse quê de avérnico e de morno,/ davam a Zola as mais corretas normas!..." ("Dormindo"), ou "E tens as nuances raras/ dos bons prazeres servidos/ nos rostos enlourecidos/ das parisienses preclaras" ("Lirial"); com Augusto dos Anjos: "Aplica o ouvido à correnteza fria/ dos golfões da matéria/ e recorda de que lama sombria/ é composta a miséria" ("Recorda"), ou "...e viva essência/ dos fantasmas noctívagos da cova" ("Flores da Lua"), ou "Vala comum de corpos que apodrecem,/ esverdeada gangrena, cobrindo vastidões que fosforecem/ sobre a esfera terrena" ("Tédio", em que, mais adiante, "sinistras sereias" é superior ao poeta de "Eu"), ou "Riso de ateu e riso de budista/ gelado no Nirvana impenitente" ("Rebelado"); com o Manuel Bandeira de "Carnaval": "De ironias o momo picaresco/ abre-lhe a boca e uns dentes de ferrugem,/ verdes gengivas de ácida salsugem/ mostra e parece um Sátiro dantesco" ("Majestade Caída"), ou "Canção do Bêbado"; com o Vinicius de Morais de "Receita de Mulher": "Para haver mais requinte e haver mais viva,/ doce beleza e original carícia,/ deu-lhe uns toques ligeiros de ave esquiva/ e uma auréola secreta de malícia" ("A Flor do Diabo", em que o poeta chega a imagens como "nas lagoas letíficas, sidéreas,/ o cadáver da lua vai boiando").
E, de quando em quando, Cruz e Sousa alcança apogeus exemplares: "Jamais há de ela Ter a cor saudável/ para que a carne do seu corpo goze,/ que o que tinha esse corpo de inefável/ cristalizou-se na tuberculose" ("Tuberculosa"); "Ó carnes que eu amei sangrentamente" ("Dilacerações"); "Rio do esquecimento tenebroso,/ amargamente frio,/ amargamente sepulcral, lutuoso/ amargamente rio!" ("Esquecimento"); "Certo neblinamento de saudade" ("Ressurreição"); "Um luar de perdões desabotoa" ("Enlevo"); "És velada, quebradiça/ como teu nome é velado./ Certa flor curiosa viça/ no teu corpo edenizado" ("Inês"); "Tristeza de não sei donde/ de não sei quando nem como.../ flor mortal, que dentro esconde/ sementes de um mago pomo" ("Tristeza do Infinito").
Não há, porém, como deixar de observar que essas condensações de inspiração e de engenho estão espalhadas em poemas cujo restante é substancialmente menos realizado. Grande parte de sua produção compõe-se de sonetos decassilábicos, mas estes tendem a se confundir uns com os outros em decorrência da repetição insistente de imagens, de palavras, de fórmulas mesmo. A falta de foco e a irresolução programática de seus poemas transforma-os frequentemente num todo indiferenciado em que a descoberta de pontos luminosos é a recompensa da persistência paciente do leitor.
Deste modo, são os poemas longos que servem ao poeta como uma espécie de rede para capturar o que ele podia oferecer de melhor e, dentre estes, destacam-se as litanias escritas em versos mais curtos como as redondilhas. Talvez, ao abandonar seu estilo juvenil por uma idéia daquilo que seria o simbolismo, Cruz e Sousa não tenha afinal chegado ao simbolismo propriamente dito (se são os seis poetas franceses mencionados que melhor o representam), mas a algo diferente, e um poeta cujos paralelos com o autor de "Broquéis" mereceriam ser analisados é o inglês Dante Gabriel Rossetti, fundador, em 1848, do pré-rafaelismo, um movimento poético e pictórico tardo-romântico que está para o romantismo original de Blake, Wordsworth ou Keats assim como o rococó está para o barroco.
Pouquíssimos poetas brasileiros foram tão bem estudados quanto o catarinense. Desde seus partidários e defensores, como Nestor Vítor, Sílvio Romero, Andrade Muricy ou Roger Bastide, até nossos principais historiadores literários, como Manuel Bandeira, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Otto Maria Carpeaux, Massaud Moisés, Alfredo Bosi e Luciana Stegagno Picchio, passando por opositores que mudaram depois de idéia, como José Veríssimo, os críticos dedicaram-lhe uma atenção sincera e o analisaram com sensibilidade, nem por isso deixando de expor seus senões. Nada mais justo, porque, além de ter seu lugar garantido entre os melhores do Brasil oitocentista não só com sua poesia, mas também com sua prosa poética, Cruz e Sousa foi sem dúvida (se descontarmos as origens remotas, quase lendárias, de Aleksandr Serguêievitch Púchkin) o mais importante poeta negro a escrever fora da África antes dos caribenhos Aimée Cesaire, Kamau Brathwaite, Derek Walcott e do americano LeRoi Jones.

Obras de Cruz e Sousa
"Obra Completa de Cruz e Sousa" - Ed. Nova Aguilar (r. Dona Mariana, 205, casa 1, CEP 22280-020, RJ, tel. 021/537-8275). 900 págs. R$ 59,00.
"Missal" e "Broquéis" - Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, SP, tel. 011/239-3677). 204 págs. R$ 12,50.
"Dispersos - Poesia e Prosa" - Ed. da Unesp (av. Rio Branco, 1.210, CEP 01206-904, SP, tel. 011/223-7088). 160 págs. R$ 16,00.

"Poesia Completa" - FFC Edições e Fundação Banco do Brasil (Fundação Catarinense de Cultura, av. Rio Branco, 387, 6º andar, CEP 88015-201, Florianópolis, SC). 432 págs.



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