São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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Ponto de fuga

O rinoceronte dos outros

Em "300", Rodrigo Santoro é o rei dos outros cheio de piercings, de maquiagem e de langores; na sua corte, todo mundo transa com todo mundo; já os espartanos são maridos machões, cumpridores e não dão bobeira

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Aqueles espartanos do filme não são nada simpáticos. Dizem que lutam pela liberdade, mas, na batata, defendem uma sociedade de brutamontes. Todos "body-builders" bonitões, porque, quando os bebês nasciam feiosos, raquíticos, disformes, eram espatifados num buraco. Só sobravam os que virariam bons e fortões. Fora um, horroroso e nojento, que escapou. Ele vira justamente o traidor da pátria e vai lamber os pés do rei dos outros. Prova dos nove: se tivessem arrebentado com ele quando era bebê, Leônidas teria ganhado a guerra.
Os outros ameaçam esses espartanos brancos e poderosos de todos os lados. São negros, orientais, esquisitos, gente estranha. O Rodrigo Santoro é o rei dos outros, cheio de piercings, de maquiagem e de langores. Na sua corte, todo mundo transa com todo mundo, de qualquer jeito. Os espartanos são maridos machões, cumpridores e não dão bobeira.
É verdade, cá entre nós, que o modelito das sunguinhas deles, francamente; mas, enfim, detestam os filósofos atenienses porque esses filósofos, sabem como é, não é, e eles não são disso. As mulheres são barra pesada, usam umas espadas grandonas para matar quem é sem-vergonha e mentiroso. Os parlamentares são corruptos, vendidos aos inimigos; os sacerdotes (nojentos eles também, e podres) são piores. O que os espartanos deveriam ter feito desde o início era dar plenos poderes ditatoriais a Leônidas, e pronto.
Tom
A ironia é fácil, e o filme não tem jeito, é fascista mesmo. Mas é um esplendor. Suas cores são reduzidas a um azul noturno, fora o vermelho das capas. Tons de emblema. Os cenários, trazidos dos quadrinhos de Frank Miller, fazem pensar na pintura romântica mais alucinada: abismos, montes escarpados, gargantas estreitas. Os bichos, sobretudo o rinoceronte, são magníficos.
Ritmo
O andamento do filme é vagaroso, reforçado pela câmera lenta. Exige do público uma entrega hipnótica, como as que ocorriam nas paradas de Hitler ou nos discursos dos grandes líderes, os de Fidel, por exemplo, que duram cinco horas ou mais. Apesar disso, "300", dirigido por Zack Snyder, tornou-se um sucesso surpreendente.
Num tempo em que a precipitação, a velocidade da montagem e da ação parecem ser os únicos meios de prender a atenção de espectadores cada vez mais distraídos, "300" é extático como uma ópera de Wagner, como o "Crepúsculo dos Deuses".
Ele se termina, por sinal, da mesma maneira suicida.
Outra coisa
Alguns leitores perceberam na coluna da semana passada um "elogio da criminalidade". Não era isso. Era medo, diante do sentimento de igualdade que pode existir entre justiça e vingança. O crime, que é uma disfunção, individual e social, vem tratado desde a noite dos tempos pelo revide. A pena de morte configura, no extremo, esse princípio de retaliação. É a punição máxima, a renúncia a uma justiça cuja função primeira deveria ser a de sanar as patologias da sociedade.
O tema da crônica passada era o ódio aninhado em cada um de nós, difícil de arrancar, impulsivo, carniceiro, capaz de atacar cadáveres. Antigamente, o boneco de Judas, no sábado de aleluia, era malhado pelas crianças: velha pedagogia do ódio puro, pois o que é um boneco?
Ao invés de cuidar: prender, punir, matar. Com isso, nos tornamos desumanos, no sentido mais fundo da palavra, que é perder o sentimento de humanidade. Tal como o bandido assassino já o havia perdido.

jorgecoli@uol.com.br


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