São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No tempo das vacas magras

Para historiadora, tripas, nabos e batatas formavam o tripé da alimentação do povo francês até o século 19, quando a burguesia deixou de distribuir suas sobras e passou a reaproveitar os alimentos

FRANÇOIS-GUILLAUME LORRAIN

A historiadora Madeleine Ferrières, pesquisadora da Casa Mediterrânea de Ciências Humanas de Aix-en-Provence, já havia traçado um panorama histórico de nossos medos alimentares.
Ela volta ao tema com "Nourritures Canailles" (numa tradução livre, Comidas do Populacho, ed. Seuil, 474 págs., 24 euros, R$ 65), uma obra cheia de sal sobre a cozinha popular na qual estão as raízes da alimentação francesa. É uma história em que o nabo, as tripas e as batatas são os heróis.

 

PERGUNTA - Por que associou a palavra "populacho" a essa alimentação de cuja história faz o relato?
MADELEINE FERRIÈRES
- Escrever uma história a partir dos livros de receita antigos é algo que outras pessoas já fizeram antes de mim. Eu pesquisei o homem popular que come e que não lê livros de culinária.
Aliás, o mais frequente é que ele nem saiba ler. Ele não respeita os códigos culinários, aquilo que é difundido pela culinária oficial a partir de 1650. Ele não é gastronomicamente correto, o que não significa que não tenha gosto, mas, sim, que seu gosto é diferente do gosto das elites.
E, é claro, os próprios alimentos são diferentes: não há chances de ele comer ervilhas frescas -que são reservadas para a mesa do rei- rodovalho ou capões assados.
PERGUNTA - Existe, porém, alguma circulação entre a comida popular e as mais distintas. A sra. fala das tripas, um caso típico de alimento consumido por todas as classes na época de Rabelais, mas posteriormente rejeitado pela elite.
FERRIÈRES
- Na época do Renascimento, o comensal distinto serve-se mais do seu senso de odor do que da visão. Ele ainda é "zoófago": ele sabe muito bem traçar a ligação entre o pedaço de cadáver que tem sobre seu prato e o animal vivo.
No alto da escala social ainda se consomem coração, pulmão, baço, rins e tripas.
Depois essa elite evolui, torna-se "sarcófaga" (comedora de carnes) e passa a sentir dificuldade em "olhar a cabeça de vitela nos olhos". Mas o povão continua a regalar-se com tripas.
Hoje as tripas estão descrevendo nova ascensão social, chegando aos cardápios dos chefs estrelados.
PERGUNTA - Imaginamos um povo que morria de fome. Na verdade, porém, ele frequentemente fazia uma refeição a mais que nós.
FERRIÈRES
- Digamos que ele consumia alimentos com frequência. O ritmo se aproximava da tendência atual para uma jornada desestruturada.
Hoje se fala na "mcdonaldização" de nossos hábitos, mas poderíamos igualmente bem falar de uma volta ao passado.
A jornada de trabalho frequentemente era entrecortada por pausas, durante as quais se comia. Isso valia também para o trabalhador que, às 11h, ia buscar tripas na esquina.
Nas cidades do Antigo Regime [que cairia em 1789, com a Revolução Francesa] havia uma oferta extraordinária de comida pronta para comer.
Reafirmo a importância dessa cozinha pública, dos cabarés e das tabernas, que inventa. Ela sabe adaptar-se ao gosto do cliente. Devemos a ela a cozinha com vinho, a dos guisados e dos peixes marinados.
A cozinha das ruas também se baseia no "regrat", a circulação dos restos de comida do alto para o baixo da escala social. Entre os ricos, o número de pratos sobre a mesa é grande, mas não se trata da grande comida, como nos deleitamos em imaginar.
As pessoas comem um pouco disso ou daquilo, segundo seu desejo ou seu temperamento. O que sobra é distribuído. Essa redistribuição se interrompe no século 19, quando a burguesia começa a contabilizar e reciclar suas sobras.
O camponês também come fora de casa; ele leva legumes cozidos para seu trabalho no campo, acompanhando-os com um pouco de vinagre e de queijo magro, que é desprezado pelos ricos, além de pão.
PERGUNTA - Falando em pão, de acordo com seu livro, é por causa dele que não vemos ninguém sorrir nos quadros da época.
FERRIÈRES
- A França do século 17 tinha 55 mil moinhos, mas as pedras de moinho estavam longe de serem todas adaptadas à moagem de grãos.
O dono do moinho ia buscá-las na pedreira mais próxima, de onde trazia hulha.
Essas pedras se gastam muito rapidamente, e, ao girar, deixam cair grãos de areia na farinha.
São pedras que pesam entre uma e duas toneladas e que só são trocadas a cada cinco a dez anos. Onde vai parar essa areia? No pão amanhecido com silício, que estraga os dentes.
PERGUNTA - Nada a ver, então, com a qualidade da farinha?
FERRIÈRES
- Não, embora a França, no século 18, tenha se convertido ao uso do trigo candial, que ganha precedência sobre o centeio e resulta na produção do pão branco, e não mais integral.
Comer pão branco é o sinal mais certeiro da integração nas cidades. Aqui, o gosto evolui e dita a produção.
Mas, no que diz respeito ao pão, tudo muda, e não apenas a qualidade da farinha. O fermento é substituído pela levedura de cerveja, a crosta se torna crocante e o miolo, macio, leve e aerado. A massa tendo ficado mais mole, a forma se alonga e evolui até chegar à baguete.
PERGUNTA - Antes de ler seu livro, ainda acreditávamos no frango na panela do bom Henri 4ø (rei que teria dito que, "se Deus quiser, cada trabalhador em meu reino terá um frango em sua panela, pelo menos aos domingos!"). Mas a sra. torce o pescoço desse frango.
FERRIÈRES
- Para começo de conversa, essa é uma frase que o rei, sem dúvida, nunca pronunciou.
É uma promessa que teria sido inventada por volta de 1650 por Hardouin, preceptor do jovem Luis 14, para instaurar uma imagem paternalista e bondosa do poder real.
Mais tarde, Stendhal [escritor, 1783-1842], em "Racine e Shakespeare", evocaria uma galinha na panela consumida "a cada domingo".
Mas você conhece a célebre réplica de "O Homem Que Matou o Facínora" [filme de John Ford]: "Se a lenda é mais bonita que os fatos, imprima-se a lenda". Por isso eu conservo a lenda, mas a desconstruo.
Em termos históricos, essa é uma promessa que nunca foi feita nem cumprida.
PERGUNTA - Essa foi a única vez em que o poder interveio na alimentação do povão?
FERRIÈRES
- A propaganda real procurava mostrar, com a comida, que os reis estavam próximos do povo. Vem daí a anedota recorrente e muito maleável -ela é aplicada a Charles 9ø e a Henri 4ø- sobre o rei incógnito que é convidado a entrar num casebre. Ele come nabos e, enquanto ouve os anfitriões conversarem, aprende como vivem os franceses do povo.
Mas essa imagem se desfaz e é substituída pela do rei alimentador, cercado de especialistas em nutrição, que, solícitos, estudam os hábitos alimentares populares para incentivar a adoção de alimentos novos, como foi o caso de Luis 16.
PERGUNTA - Com relação à batata, a sra. recoloca algumas coisas em seus devidos lugares.
FERRIÈRES
- Sempre se escreveu a partir do ponto de vista das elites, que desprezavam o populacho. Citarei o artigo "Batata" da "Enciclopédia" [do Iluminismo]: "É um alimento cujo consumo provoca gases, mas o que são os gases para os órgãos vigorosos dos camponeses?".
Parmentier [agrônomo e nutricionista francês, 1737-1813] pede ao povo que coma batatas, mas ele próprio não as consome, exceto em suas refeições pedagógicas. A partir do século 16, o povo passa a rejeitar as batatas, mas por quê?
Ele não é imbecil; sabe adaptar-se, por exemplo ao feijão americano, que vem substituir o feijão indígena, a fava do legionário romano. Quando as coisas são "boas de comer, boas de pensar", segundo a fórmula de Lévi-Strauss, o povo não precisa de conselheiro.
Não devemos reescrever a história da batata à moda dos especialistas que criam confusão em torno de hábitos e preconceitos.
PERGUNTA - No fundo, a sra. transforma a história dos alimentos numa espécie de jogo de Ludo, em que alguns peões avançam e outros recuam. Quem sai ganhando nesse jogo é o nabo.
FERRIÈRES
- Sim, mas um jogo silencioso, que procuro observar acontecer nas hortas domésticas, locais de todas os experimentos e as misturas genéticas.
Ao longo das gerações, a cenoura, antes pálida e fibrosa, se torna tenra, fina; sua cor vai do amarelo ao laranja e até o vermelho, e substitui a pastinaga.
À custa de cruzamentos, do uso de esterco e regas, os fornecedores das feiras parisienses conseguiram transformar um nabo pequeno num rabanete "da espessura de um dedo, terno, quebradiço e vermelho".
PERGUNTA - É também por uma questão de gosto que os franceses começam a comer carne de cavalo, a partir de 1860?
FERRIÈRES
- Um decreto de 1866 autorizou o consumo dessa carne, proibido havia cerca de mil anos. Mas não é pela lei que se rege um consumo. A carne de cavalo era reservada aos cães; ela não era boa de comer, pois apenas os animais velhos eram abatidos para essa finalidade.
Além disso, é uma carne magra, coisa que não correspondia ao gosto popular no século 19. A chegada da carne de cavalo foi contemporânea à substituição dos cavalos pelos automóveis.
PERGUNTA - Entre as comidas populares que evoca, quais são as que ainda são encontradas hoje?
FERRIÈRES
- Entre os pratos que perdemos e que não precisam ser lamentados estão o "arlequim", feito com sobras de comida vendido nas esquinas, as favas ao toucinho e o golfinho grelhado. Mas muitos outros enriqueceram nosso patrimônio: o "gibelotte" (guisado de carnes de caça ao vinho branco), a sopa com vermicelli, a batata frita, o guisado de cogumelos ou de rãs.

ONDE ENCOMENDAR - Livros em francês podem ser encomendados no site www.alapage.com
Esta entevista saiu no "Le Point".Tradução de Clara Allain.



Texto Anterior: + Arte: Exílios perpétuos
Próximo Texto: MC2
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.