São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cidades espelhadas

Marcado pelo narcotráfico, pela violência e a probreza, o romance "Rosario Tijeras", do colombiano Jorge Franco, evoca um paralelo com o Rio de hoje ao retratar a Medellin dos anos 80

LUÍS BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A leitura, no Brasil, de um romance como "Rosario Tijeras", do escritor colombiano Jorge Franco, leva a pensar em várias formas de proximidades e distanciamentos -entre pessoas, entre classes, entre países.
Esse problema está no centro da trama, articulada em torno da difícil aproximação, por meio de um desequilibrado triângulo amoroso, entre o mundo dos jovens de boa família Emilio e Antonio e o da menina criada nas favelas da cidade de Medellín Rosario Tijeras ("tijeras" são "tesouras" em espanhol).
O que chama a atenção logo de cara é o quanto o desenho urbano e social da Medellín que aparece nesse romance e, digamos, o do Rio que vemos nos jornais estão próximos.
Lá como cá, para falar como os velhos sambistas, no morro está a pobreza, a presença ostensiva da violência, a beleza noturna das luzes que piscam sem revelar a paisagem social.
No asfalto, os edifícios altos, os apartamentos luxuosos, o metrô moderno que corta a cidade e "faz pensar que vencemos o subdesenvolvimento".
Isso sem falar nas casas noturnas badaladas. É numa delas que a personagem-título encontrará os garotos ricos.

Diferenças radicais
Mas como ela chegou até lá? Pelas fraturas de uma sociedade que convive com o caos das diferenças radicais num espaço único. Nascida na favela, violentada aos oito anos, tendo castrado um homem aos 13 (com as tesouras que se incorporaram ao seu nome) e tornando-se assassina logo depois disso, quem a leva ao asfalto é o crime organizado -ou seja, o dinheiro e os chefes do narcotráfico de Medellín, para quem ela executa vários trabalhos.
São eles que lhe dão um apartamento em um bairro rico e lhe abrem as portas da Aquarius, "um desses muitos lugares que aproximaram os de baixo que começavam a subir e os de cima que começavam a descer". Sua vida é contada pelo menino rico, que rememora as histórias e a convivência numa sala de espera de hospital, depois de Rosario ter sido ferida a tiros na rua.
Como livro de amor e aventura, temperado com o cenário de trepidante violência daquela que foi a capital do narcotráfico nos anos 1980, "Rosario Tijeras" funciona bem -seja para os brasileiros, que podem se sentir um pouco próximos de seu universo, seja para o europeu (o livro ganhou prêmios importantes), que pode encontrar ali a experiência excitante que tem, por exemplo, ao deixar seu hotel na zona sul carioca para fazer um "tour" seguro pelas favelas.
No entanto, como representação do embate entre dois mundos, o das periferias dos grandes centros e o do centro dos grandes centros dos países periféricos, o livro fica no episódico, quase no folclórico.
Rosario acaba se transformando numa espécie de Gabriela, de Jorge Amado (aparecendo mais com a cor do que com o cheiro do cravo), atualizada e assassina -com o que há de bom e de mau nisso.

Sem conflitos de classe
Por um lado, o fascínio "exótico" da beleza extrema nascida de forma imprevista num lugar "distante" faz dela uma dessas personagens que logo se convertem em mito -e o próprio Franco já declarou várias vezes que ele não é famoso, mas Rosario é.
Por outro, na concretude do texto, é uma criatura sem voz, agonizante numa sala de cirurgia, vista com os olhos de um adolescente que, ao mesmo tempo distante e apaixonado, não é capaz de ir além de clichês como este: "Seu jogo sujo me fez descobrir o auge do amor por alguém, o ponto crítico no qual já não me importava morrer, desde que fosse por ela".
Por que ela joga sujo e por que ele fica fascinado por esse jogo não importam. Aqui não há conflitos de classe que não a velha preocupação dos pais pela vida desregrada dos filhos que vivem em má companhia.
O livro não enfrenta a complexidade daquilo que leva as pessoas a se aproximarem, apesar das distâncias sociais aparentemente intransponíveis -se é que essa proximidade de fato pode ser de alguma forma pacífica em sociedades atravessadas por diferenças históricas tão profundas como as que existem em todos os países da América Latina. Próximos de nós ou não.


ROSARIO TIJERAS
Autor: Jorge Franco
Tradução: Fabiana Camargo
Editora: Alfaguara
(tel. 0/xx/21/2199-7824)
Quanto: R$ 28,90 (160 págs.)

LUÍS BUENO leciona literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná, autor de "Uma História do Romance de 30" (Edusp/Unicamp).



Texto Anterior: + Livros: O espião oficial
Próximo Texto: + Livros: Hannah e sua biógrafa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.