São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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+ Cinema

Mal secreto

André Téchiné e Michel Blanc, diretor e protagonista de "As Testemunhas", que dramatiza o surgimento da Aids nos anos 80, dizem que a doença ainda é um tabu

PASCAL MÉRIGEAU

Ano: 1984, aquele em que a Aids abalou as relações entre as pessoas.
O filme do cineasta francês André Téchiné (1943) descreve esse abalo por meio do destino de vários personagens: o que morre, Manu (Johan Libéreau), um jovem marcado por seu amor à vida, e os que restam, Adrien (Michel Blanc), Mehdi (Sami Bouajila) e Sarah (Émmanuelle Béart), para os quais a tragédia leva a amar a vida mais plenamente.
O filme é magnífico -exaltação luminosa de um desejo de felicidade tornado mais forte e livre pela descoberta do abismo que se abriu repentinamente, engolindo tantas vidas.
As testemunhas são em primeiro lugar os sobreviventes que escaparam do que poderia ter sido seu destino, talvez por milagre. Blanc (1952) e Téchiné atravessaram essa época.
O ator interpreta no filme o personagem que sem dúvida é o mais próximo do cineasta -seu porta-voz, de certa maneira.

 

ANDRÉ TÉCHINÉ - A tragédia da Aids foi uma grande virada em minha vida. Perdi muitos amigos nessa época. Me sinto um sobrevivente, como se eu tivesse escapado de meu destino. Esse filme foi um dever de memória. Ele me tomou tempo.
Era preciso que o trabalho de luto fosse feito, e, sobretudo, eu queria encontrar a maneira certa: eu não queria fazer um filme dramático sobre um grande tema.
Pensei em fazer um filme de ação, um filme fantástico, um filme de ficção científica, um filme B, a melhor maneira de impedir que o espectador fosse feito refém, fugindo da chantagem sentimental para conservar um prazer cinematográfico para não se comprazer na infelicidade.
É preciso lembrar que não foi fácil encontrar uma produção: o tema assusta, não é comercial.
Essa é uma das grandes diferenças entre Hollywood e a França: lá, os grandes traumas alimentam o cinema, enquanto aqui a tendência é isolá-los. É por isso, por exemplo, que nunca consegui montar meu filme sobre a Argélia.
MICHEL BLANC
- Aqui, buscamos o rigor do documento histórico, por isso não encontramos produção, enquanto lá existe a vontade de atrair o espectador para o cinema.
Fazer um filme que as pessoas não têm vontade de ver é como produzir um medicamento que não cura. Quando dá certo, fala-se em sedução; quando fracassa, em aliciamento.
Além disso, a Aids continua a ser um tabu real. Basta comparar o montante das doações feitas ao Sidaction [associação de combate à Aids -"Sida", em francês] e o dinheiro doado para outras grandes causas.
A Aids suscita duas reações, ambas equivocadas e terríveis: existem tratamentos, portanto vamos falar de outra coisa, e, além disso, ela é uma doença de drogados e homossexuais.
Recordo-me, no início da epidemia, de ter ficado estarrecido pela reação de uma mulher de 45 anos que fazia a faxina numa academia que eu frequentava.
Essa mulher, que passava seu tempo lavando banheiros em meio a rapazes nus, me dizia que estava doente, que teria que ser operada e que a Aids, afinal de contas, era bem feito para quem sofria dela.
As vítimas da sociedade condenando outras vítimas -é uma coisa lamentável.
TÉCHINÉ - É verdade, havia um lado de castigo. A Aids provocou uma confusão entre moral e medicina, e isso foi uma ruptura real.
Dito isso, a idéia de mergulhar o filme na sociologia me assustava, e ainda hoje eu temo que a discussão sociológica leve a dianteira.
O tema me toca profundamente, mas eu me fixei na vitalidade dos personagens, em seu desejo de felicidade.
Transformar o trauma histórico em ficção me parece algo salutar -é apenas assim que podemos formular as perguntas certas.
A primeira parte descreve situações comuns, e depois há o piquenique, a sesta, o mergulho, o afogamento, a salvação e, enfim, o desejo e o amor, que, nessas condições, são extraordinários.
A segunda parte marca a intrusão de um elemento ainda mais extraordinário: o vírus ataca como atacam os marcianos, e eu o tratei assim, para criar um espaço de prazer. E o personagem de Adrien, representado por Blanc, é um pouco o cientista dos filmes fantásticos mas é também outra coisa.
Quando ele compreende que não pode fazer nada pelo rapaz, ele se transforma, vira maquilador.
BLANC
- Um pouco como Frankenstein! Mesmo o desaparecimento de Manu é fantástico: você o filmou como a cena do disco voador em "O Dia em Que a Terra Parou" [de Robert Wise].
Ele não morre -ele embarca num disco voador com os marcianos. (A Aids) é uma doença muito perturbadora, as pessoas não sabem de onde ela vem; o organismo deixa de comportar-se como normalmente fazia, os antivírus se tornam inoperantes, tudo parece algo vindo de outro planeta.
Eu me recordo muito bem de que, quando li o primeiro artigo sobre o assunto, falando do "câncer dos homossexuais", me recusei a acreditar -pensei que fosse mais um truque dos moralistas americanos para instalar a noção de pecado e o fantasma de uma vingança divina.
Sobretudo porque aquilo chegou pouco após a liberalização dos costumes homossexuais e a abertura de estabelecimentos onde algumas pessoas encontravam 15 parceiros diferentes em um dia.
Esse período durou talvez dez anos nos EUA, ou seja, nada.
TÉCHINÉ - Por isso, me apeguei ao personagem do jovem americano que chega no final e que me surgiu de alguém que viera a Paris para conhecer os pais de seu amigo, que se negaram a conhecê-lo.
Nessa época, os pais rejeitavam seus filhos doentes, os doentes enganavam seus pais; toda uma filosofia da vergonha voltou à tona.
Até mesmo [o filósofo] Michel Foucault, que se debateu dentro dessa moral, mesmo se inscrevendo numa perspectiva oposta.
Foi um grande momento histórico, na medida em que a medicina deixou de decidir qual era o bem e qual era o mal: hoje é a Justiça e seu braço armado, a polícia, que decidem.
É por isso que, sem saber por que num primeiro momento, escolhi como personagens um médico e um policial.
BLANC
- Quando você primeiro me falou do projeto, me disse apenas: "Estou pensando em fazer alguma coisa, isso interessa a você?". E eu respondi: "É claro, faz tanto tempo que falamos em trabalhar juntos!".
Você acrescentou apenas que haveria um pouco de você mesmo no personagem.
TÉCHINÉ - Eu não podia dizer mais que isso, porque, enquanto não tivesse escrito, não teria nada a dizer. Adrien é mais enérgico que eu, mas é verdade que certos elementos biográficos vêm de mim.
BLANC
- Quando você o fez dizer "sou capaz de matar", enxerguei seu olhar em certas circunstâncias. Sempre acreditei que você seria capaz de dizer isso.
TÉCHINÉ - Sem dúvida alguma. Sou tolerante para não ser assassino. Você preparou muito o papel. Tive medo de que o fixasse demais de antemão.
BLANC
- Percebi que você chegou a ficar em pânico! Disse a mim mesmo que você estava pensando que eu estava criando um personagem que eu seria incapaz de modificar.
Na realidade, trabalho as palavras sem profundidade, sem acréscimo afetivo nenhum, nada, do mesmo modo que se começa a trabalhar uma composição ao piano.
Em seguida, posso dizê-las com mais velocidade ou com menos, posso fazer cortes -tudo se torna possível, pois já decorei as palavras e não tenho mais razão para temer coisa nenhuma.
TÉCHINÉ - Quando o personagem é demasiado enquadrado para o ator, não acontece nada na filmagem -a matéria viva desaparece. Eu sempre peço aos atores que tirem férias de seu personagem. Se a construção do papel se torna uma obsessão, não se respira mais.
BLANC
- Não vejo como se pode construir um personagem sem o diretor e seus parceiros. Alguém como Emmanuelle Béart nos envia o tempo todo algo de inesperado e forte; você é obrigado a reagir como ser humano diante de outro ser humano.
Foi assim que me senti quando descobri o filme: a surpresa foi total. Você o montou com rapidez extraordinária, eu estava sempre atrasado em relação à sua direção, exceto no caso das cenas das quais não participo e que fui descobrindo.
Chegava a me perguntar se as pessoas compreendiam o que eu dizia!
É bom deixar claro que não tinha dúvidas quanto à qualidade -tinha 100% de certeza sobre o filme. Se me perguntarem como o encarei, responderei: "Atirei-me nele de corpo e alma".
TÉCHINÉ - Quis fazer um filme luminoso. Com raios de luz que se derramam na escuridão, clarões que rasgam a noite.
Não queria uma espécie de repetição da infelicidade, da exaustão, de uma inflação mórbida. A estética do cemitério era o oposto de minha intenção. O que me interessava acima de tudo era o milagre de estar vivo.
Os personagens são testemunhas do destino de Manu e não saem ilesos disso. Sarah aprende a amar seu próprio filho, Adrien aprende a apreciar o prazer de um encontro efêmero.
Antes, Adrien reivindicava um pouco demais sua condição homossexual e se tornava cansativo.
BLANC
- Ele aprendeu a saborear a vida, não apenas a refletir sobre ela e a consertá-la. Todas as testemunhas encontram no destino de Manu uma nova vontade de viver a vida.
Na cena em que Adrien está prestes a fazer uma cena de ciúmes com Manu e se depara com os estigmas de sua doença, você cortou a réplica de Manu que, falando das reprovações, da suposta traição, das mentiras, diz: "Tudo isso são bobagens". Você fez bem -ela era inútil. Essa réplica é a cena, é o filme.



Esta entrevista saiu na "Nouvel Observateur". Tradução de Clara Allain.



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