São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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"O Ditador e a Rede" faz uma viagem imaginativa e documental pelo Brasil

Perdas de identidade

ANA MIRANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos mais importantes autores franceses da nova geração, Daniel Pennac tem seu romance "O Ditador e a Rede" editado no Brasil. Pennac morou no Ceará entre 1978 e 1980, viajando pelo Brasil a registrar suas impressões. Andava por uma rua em Fortaleza, alguns dias antes da visita de João Paulo 2º, quando viu um sósia do papa diante de uma loja, vestido de papa, atraindo fregueses. Em outra ocasião, Pennac viu dois lavradores assistindo a um velho aparelho de TV que projetava "Em Busca do Ouro", de Chaplin, e, embora não tivessem muitas referências sobre o que ali se passava, riam nos mesmos trechos do filme. Isso funcionou como uma espécie de "madeleine" de Proust.
"Ora, essa visão ou, mais precisamente, a lembrança que eu tenho dela -aquele lampião perdido na noite de Teresina, aqueles dois homens vistos por trás, o riso silencioso de seus ombros, a bicicleta na qual se apoiavam e aquele clarão dançante que tirava seus pés de minha visão é a razão de ser deste livro, o seu ponto de partida."
Com essa linguagem bonita e, de certa forma, clássica, "O Ditador e a Rede" começa no Brasil e tem o Brasil como tema. É a história de um ditador piauiense, na iminência de ser assassinado, que encontra um sósia, que por sua vez se faz substituir por outro sósia e parte numa longa viagem até a meca do cinema norte-americano, levando um cinematógrafo. O sósia passa a viver como projecionista ambulante de cinema chapliniano e vai se tornando cada vez mais um sósia de Carlitos.
Vestido e caracterizado como esse personagem, embarca num navio rumo aos EUA, mas é confundido com Rodolfo Valentino. Na chegada nos EUA, Chaplin e Valentino o aguardam no cais. O sósia passa a trabalhar como um dos sósias de Valentino e durante 30 anos vive à sombra do ator. A trama, muito mais bizarra e complicada do que isso, pois aparecem outros sósias de sósias e gêmeos de sósias, é contada de forma fragmentada e recheada de devaneios sobre o filme "O Grande Ditador", sobre a vida de Valentino, sobre a própria experiência da narrativa e da memória combinada com pesquisa.
Ficamos sabendo de coisas interessantes: por exemplo, que o cineasta Alexander Korda era do serviço de inteligência britânico e registrava as locações no Mediterrâneo para um arquivo de possíveis desembarques, no caso de uma guerra. Toda essa parte nada tem a ver com o Brasil.
Mas há um fluxo memorialístico, em que Pennac é o próprio narrador, que fala do Brasil. Embora sem a intenção de se aprofundar nos costumes locais, sem se afastar muito da visão comum dos estrangeiros e sem criar uma atmosfera brasileira, ele consegue compreender um Brasil mais profundo. É um outro Brasil, cruel e, ao mesmo tempo, lírico.
Suas memórias incluem uma viagem a Brasília, andanças pelas fazendas e aldeias do interior nordestino, citações ao recém-eleito presidente Lula, a dom Hélder Câmara, a Carlos Drummond etc. e às inevitáveis caipirinha e feijoada. Há momentos de grande força, como suas observações sobre a ficção arquitetônica de Brasília ou seu encontro com um jesuíta, em Canindé (CE).
De qualquer forma, é a visão apaixonada de um viajante, com a fantasia de que fora de si há uma resposta para as inquietações. Pennac escreve uma literatura muito atual, desenraizada, imaginativa, documental e com uma preocupação oposta à nossa: ele tenta se desvencilhar de sua identidade. De sósia em sósia, ele se pergunta: quem sou eu? Quem somos nós? Como se ainda estivesse no navio em Casablanca, levanta âncoras e sai a rondar o mistério dos limites das culturas humanas. Nascido numa família de militares da Córsega, cresceu nas colônias francesas.
Trabalhou como gravador em madeira, ilustrador, motorista de táxi e, durante 25 anos, foi professor de crianças carentes. Teve dificuldades para publicar seu primeiro livro, mas acabou tornando-se famoso internacionalmente com a série "Bellevue Quintet", que tem um grande personagem: monsieur Malaussène. Pennac trocou o Quartier Latin por um subúrbio parisiense e mora ao lado do cemitério Père Lachaise. Tem outros seis romances publicados no Brasil. É um ótimo escritor -e muito bem-vindo.


Ana Miranda é escritora, autora de "Prece a uma Aldeia Perdida" (Record).


O Ditador e a Rede
244 págs., R$ 32 de Daniel Pennac. Trad. Bernardo Ajzenberg. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/ 21/2584-3536).


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