São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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+ cultura

O crítico literário, autor de "Ao Vencedor as Batatas" e "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", repassa a trajetória de um dos mais contundentes artistas e arquitetos brasileiros, radicado na França desde 1971

Saudação a Sérgio Ferro

Por Roberto Schwarz

Caro Sérgio, caros amigos. (1)
Como todos aqui, estou feliz de participar desta inesperada homenagem oficial. Quero cumprimentar o nosso ex-vereador Nabil Bonduki pela iniciativa e pela idéia generosa e heterodoxa que ele tem do que seja merecer a gratidão da cidade. Graças a essa idéia, faz pouco tempo [o sociólogo] Francisco de Oliveira, aqui presente, recifense e radical, também foi acolhido na galeria dos paulistanos ilustres, para satisfação da nossa intelectualidade não-conformista.
Se não me engano, as intervenções mais salientes de Sérgio Ferro -aquelas que puseram a cidade em dívida com ele- foram quatro: 1ª) muito cedo, antes ainda de 1964, ele e seus amigos Flávio Império e Rodrigo Lefèvre ensinavam que o teste verdadeiro da modernidade para o arquiteto estava no problema da habitação popular. 2ª) Pouco depois de 1964 ele observou e logo escreveu que o golpe vitorioso da direita bem como a derrota da esquerda haviam mudado o sentido geral da modernização, inclusive da modernização em arquitetura. 3ª) Diante dessa mudança, Sérgio entrou para a luta armada contra a ditadura e pelo socialismo, o que lhe valeu uma temporada de cadeia.
E, quarta intervenção, unindo a análise do modernismo arquitetônico ao estudo econômico-social do canteiro de obras, ele concluiu, quanto ao primeiro, que se tratava de uma ideologia conformista, que recobria realidades de classe nada glamourosas ou adiantadas, muito distantes daquelas que a idéia de modernidade sugeria.
Convenhamos que as quatro intervenções são notavelmente críticas, para não dizer estraga-festas. Qual a idéia então de festejá-las e dá-las em exemplo? Seria o desejo de completar a reconciliação com as travessuras antigas de um respeitável sessentão cassado pela ditadura? Passado o tempo, que agora é outro, seria a vontade de reconhecer o valor histórico daquelas intervenções, para fazer delas uma parte assumida e legítima de nosso presente, apesar do incômodo causado em seu momento? Seria o sentimento de que as questões levantadas por Sérgio naquele tempo mal ou bem continuam vivas? Ou terá sido um cochilo do establishment, que Nabil aproveitou para fazer justiça com as próprias mãos? Suponho que de tudo isso haja um pouco, mas a resposta cabe à geração de vocês.

Passo surpreendente
Em 1964, Sérgio estava com 25 ou 26 anos. Isso quer dizer que ele pertence à última geração que ainda carregou as baterias nos anos do desenvolvimentismo populista, em particular na fase radicalizada do final, quando durante um curto período pareceu que modernização, emancipação popular e emancipação nacional andavam de mãos dadas, sob o signo da industrialização. O entusiasmo causado por essa convergência, ilusória ou não, em que a presença da luta popular e dos sindicatos tornava substantivas as idéias de progresso e de democracia, foi grande. As aspirações daquele momento, de legitimidade quase irrecusável, deram substância crítica e subversiva à vida cultural brasileira durante decênios, muito depois de desmanchada aquela convergência.


A casa em abóbada adquiria estatuto metafórico para uma nova aliança de classe

Pois bem, é nessa atmosfera de confiança no futuro e na força racionalizadora e saneadora da industrialização que Sérgio, Rodrigo e Flávio dão um passo surpreendente: como a industrialização e as suas bênçãos iriam tardar, eles buscaram uma solução para a casa popular que fosse para já, barata, fácil e pré-industrial.
As suas pesquisas sobre a construção em abóbada, apoiada em materiais correntes e baratos e em princípios construtivos simples, fáceis de aprender e de ensinar, ligam-se a esse quadro. Tratava-se de democratizar a técnica ou, também, de racionalizar a técnica popular por meio dos conhecimentos especiais do arquiteto. Encarada assim, a casa em abóbada -um abrigo, uma oca, um invento modernista- adquiria estatuto metafórico de protótipo para uma nova aliança de classe, para a aliança produtiva entre a intelectualidade e a vida popular, à procura de uma redefinição não-burguesa da cultura. Pedro Arantes, que historiou bem esse percurso, observa que se tratou de uma primeira crítica à industrialização da construção, a ser retomada depois, e de uma primeira hipótese, ligada a circunstâncias sociais brasileiras, sobre a construção fora do âmbito das relações de produção capitalistas (2).
Outro aspecto importante, também historiado por Pedro, é a ligação dessa "poética da economia", tão diferente do modernismo aparatoso de Brasília, com o experimentalismo vanguardista das cenografias de Flávio Império. Flávio trabalhava com estopa, papel de jornal, palitos, roupa velha etc., materiais que são quase nada, se nada for o que está aquém do preço e não circula no mercado.
Por aí, há um parentesco também com a "estética da fome" de Glauber Rocha e com o clima geral do cinema novo. São relações importantes, em que a pobreza brasileira suscitava respostas intelectuais e artísticas ousadas, de vanguarda, que reatualizavam o espírito antiburguês e revolucionário das grandes vanguardas do primeiro decênio do século 20.
Seja como for, em 1964 houve a inversão da corrente, inversão aprofundada em 1968. As perspectivas da esquerda estavam cortadas. No que dizia respeito aos intelectuais, um conjunto amplo de apostas no futuro e alianças de classe efetivas, de convicções políticas, sociais, artísticas e outras, além de possibilidades profissionais e garantias materiais, foi posto em xeque, passando a se modificar em razão das circunstâncias. Sérgio foi rápido para assinalar, num grande artigo, que a promessa de modernização, tão importante para o prestígio político dos arquitetos, mudava de horizonte ao separar-se, ou ao ser separada, do combate pelo progresso social (3).
A aura moderna da profissão não ia desaparecer, mas perdia o vôo e trocava o rumo. Na mão dos mais fiéis, ou mais frustrados, o padrão estético moderno passava a funcionar como uma objeção cheia de quinas, moralista e simbólica, além de impotente, ao curso das coisas. O funcionalismo deixava de ser funcional, pois "o equilíbrio dinâmico entre ser e dever-ser", em palavras de Sérgio, se havia rompido. Para outros, a parafernália moderna era sobretudo a justificação da autoridade social dos que sabem, ou seja, dos tecnocratas em que eles mesmos se transformavam.

Triunfo dentro do fracasso
Para outros, enfim, ela conferia o cachê do requinte a quem pudesse pagar. Diante do que considerava o esvaziamento da sua profissão, Sérgio concluiu que a luta não se podia confinar aos limites dela e acompanhou a parte da esquerda que se empenhou na luta armada. A facilidade com que esta foi derrotada, apesar da conseqüência pessoal dos que se engajaram, é um dado importante para a reflexão.
Não há tempo nem eu teria os conhecimentos para recapitular a luta contra a ditadura e para especificar as causas do recuo desta. O fato é que ao longo da resistência e do processo da abertura um bom número de figuras destacadas da esquerda se qualificou socialmente para a liderança em vários planos, inclusive o plano político. Assim, em pouco tempo e sem que o país no essencial tivesse virado à esquerda, tivemos um presidente da República de boa formação marxista, outro de boa formação sindical, para não falar de ministros, senadores e deputados ex-comunistas e ex-guerrilheiros.
Não custa lembrar também a origem esquerdista de um grande batalhão de professores titulares, entre os quais eu mesmo. O fenômeno é notável e não foi suficientemente discutido. Contudo o grande sucesso social-político da geração da resistência teve o seu preço. Conforme esta ocupava as novas posições, deixava cair as convicções intelectuais anteriores -por realismo, por considerar que estavam obsoletas, por achar que não se aplicavam no momento, por concluir que sempre estiveram erradas ou também por oportunismo. De modo que o êxito da esquerda foi pessoal e geracional, mas não o de suas idéias, das quais ela se foi separando, configurando algo como um fracasso dentro do triunfo, ou melhor, um triunfo dentro do fracasso. Talvez se pudesse dizer também que parte do ideário de esquerda se mostrou surpreendentemente adequado às necessidades do capital. O respeito marxista pela objetividade das leis econômicas não deixava de ser uma boa escola.
Seja como for, a tendência é tão numerosa -e aliás espalhada pelo mundo- que uma crítica de tipo moral não alcança o problema. Vou tocando pela rama essas vastas questões porque elas formam as coordenadas para situar a originalidade do percurso de Sérgio, que tomou a direção oposta. Diante da derrota, ele aprofundou a sua matriz intelectual marxista, o que lhe permitiu inovar e chegar à linha de frente da atualidade, é claro que noutro plano, sem abrir mão da crítica. Mas também ele pagou um preço.
Quando, a partir de 64, o racionalismo arquitetônico mostrou ser compatível com as necessidades da ditadura e da modernização capitalista do país, Sérgio resolveu examinar mais de perto as suas razões. Reatando com intuições anteriores a 64, que não viam como idênticas a causa da habitação popular e a causa da industrialização e portanto não acatavam o etapismo ritual dos Partidos Comunistas, ele passou a estudar o canteiro de obras na sua realidade, fazendo dele uma pedra de toque (4). A inspiração era claramente marxista: o segredo e a verdade da sociedade moderna estão no processo produtivo e na sua articulação de classe.

Ironia a Marx
Repetia o caminho expositivo de Marx, que estabelecia a esfera da circulação de mercadorias como "o Éden dos Direitos Humanos", mas para ironizá-la e em seguida descer à esfera da esfola propriamente dita, que é o processo produtivo, onde a fachada civilizada e igualitária sofre um rude desmentido. É nesse espírito materialista e desmistificador que Sérgio arrisca um lance agudo, fazendo da situação da força de trabalho na construção civil, ou da realidade tosca e autoritária do canteiro de obras, os testes do racionalismo arquitetônico e de suas pretensões.
A discrepância é grande entre o discurso dos arquitetos, claro, arejado, livre, enxuto, transparente, humanista, desalienador etc., e, do outro lado, os fatos da exploração, do ambiente atrasado, segregado e insalubre no próprio canteiro. Encarada com o distanciamento devido, a diferença se presta à comicidade brechtiana. Os resultados teóricos são de primeira linha, muito inovadores e penetrantes -até onde vê um leigo-, próximos dos achados decisivos da crítica de 68, que descobria e transformava em problema histórico-mundial o conteúdo político da divisão técnica do trabalho.
Em versão heterodoxa, vinham à frente Marx, a análise de classe e do fetichismo da mercadoria, o estudo social e relevante da forma artística, além de articulações muito sugestivas entre os aspectos bárbaros do processo produtivo e funcionamentos e patologias descritas pela psicanálise. No ponto de fuga, o questionamento das certezas acríticas quanto ao progresso, que animavam de modo razoavelmente semelhante os marxistas, os nacionalistas e os liberais. O alcance teórico e crítico dessas perspectivas, que estão apenas esboçadas, vai se mostrar no futuro, à medida que forem retomadas e reatualizadas pelos estudantes.
O efeito imediato delas, entretanto, foi o encerramento da atividade de arquiteto de Sérgio, que ficou sem campo prático de trabalho e se recolheu ao ensino e à pintura. Foi o custo a pagar pela conseqüência, ou também o prêmio que ela lhe proporcionou.
Tomando recuo, digamos que há complementaridade entre os preços pagos por uns e outros, e também entre os prêmios obtidos. Em contato com as novas realidades do capital e diante da derrota das teses de esquerda no mundo, uma parte grande dos portadores do movimento crítico gestado à volta do 1964 brasileiro pôs de parte as questões e os termos, a experiência histórica verdadeiramente rica em que se havia formado. Renunciava a dinamizá-los e a reinventá-los em razão do presente, no qual acabava se inserindo nos termos do processo vencedor, que inesperadamente a qualificava para participar em posição saliente do curso normal da sociedade contemporânea.
Mesmo quando os motivos foram razoáveis, a quebra existiu. No campo bem mais restrito dos que insistiram na perspectiva crítica, a recusa da ruptura não evitou por sua vez que esta reaparecesse noutro lugar, também cobrando o preço da derrota. É certo que a visão negativa da atualidade tinha e tem pertinência e algumas vantagens teóricas evidentes: os lados aberrantes da sociedade contemporânea não desaparecem por não serem designados teoricamente e não se explicam sem a crítica ao capital. Mas o nexo com formas decisivas de prática deixou de estar à mão.
Para concluir, quero dizer que esta cerimônia, o interesse de grupinhos da nova geração pelo trabalho de Sérgio, a constituição de campos sociais em certa medida à margem do capitalismo, por força da dinâmica excludente deste último, tudo isso são indicadores de que o esmiuçamento social das realidades do capital deveria estar na ordem do dia. Pode estar fora de moda, mas entra em matéria e revela o que não quer e não vai calar.

Notas
1.Sérgio Ferro foi distinguido pela Câmara Municipal com a medalha Anchieta e o diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, em 19/4/2005. Na ocasião houve um seminário na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP sobre a sua trajetória.
2.Pedro Fiori Arantes, "Arquitetura Nova", ed. 34, 2002.
3.Sérgio Ferro, "Arquitetura Nova" (1967), "Teoria e Prática" nº 1, SP, sem data.
4.Sérgio Ferro, "A Forma da Arquitetura e o Desenho da Mercadoria", "Almanaque" nº 2, SP, Brasiliense, 1976.


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