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+ Sociedade
Memórias caninas
Percorrido por considerações filosóficas, livro narra a relação existencial de um poeta com seus cães
HARRY EYRES
Existem duas maneiras
de ler "Dog Years"
[Idade do Cachorro,
ed. Jonathan Cape,
216 págs., 11,99, R$
38], de Mark Doty.
A primeira: como um livro de
memórias caninas, que trata do
amor de um homem por seus
amigos cães. A segunda: como
reflexão poética sobre questões
não caninas evocadas pela convivência com cães -especialmente, mas não exclusivamente, a dor e a perda.
Em qual das duas maneiras
se lê "Idade do Cachorro" pode
depender de até que ponto você é amante de cachorros ou,
então, de como você reage a
trechos como o seguinte: "Sua
testa está um pouco enrugada,
com um pouco de preocupação. Então ela se volta para
mim, faz contato ocular e dá
um sorriso repentino, cativante, do tipo que desarma e que
pode tão bem significar "quem
é você?" quanto "oi!"."
Passando dos limites
Na condição de alguém que
gosta moderadamente de cachorros, mas não é dono de nenhum, devo confessar que acho
esse tipo de coisa ligeiramente
sentimentalóide, até mesmo
embaraçosa.
Sinto que uma linha foi infringida, inserindo os cães demasiadamente no reino humano. Embora sejam criaturas
fantásticas, não são exatamente pessoas. Ou, como disse certa vez aquele sábio padre-detetive criado por G.K. Chesterton, o Padre Brown, não se deve
escrever "cão" de trás para
diante [o que, em inglês, resulta
em "deus"].
Mas pode-se ter certeza de
que Doty já refletiu sobre isso
assim como sobre praticamente qualquer reserva possível
que alguém possa ter em relação a um livro que exprime com
candura corajosa seu amor orgulhosamente imoderado por
dois cães -um cão de caça dourado e um negro.
Se você ler esse livro como
outra coisa além de um volume
de memórias caninas, encontrará um livro belamente escrito sobre a maneira como o tempo passa, carregando com ele
tudo o que amamos e nos desafiando a encontrar alguma razão para querermos viver, a
despeito dos ataques implacáveis das perdas.
Doty reconhece que, como
poeta elegíaco e gay cercado pela epidemia de Aids, ele pode
ter se apegado ao tema da perda. Lemos sobre o adoecimento
e a morte do parceiro, descritos
por meio do filtro delicado do
amor comum dos dois pelos
cães, da doença mortal do cão
de caça dourado e, em seguida,
do ataque às Torres Gêmeas.
Ponto zero
Perto do final do livro, o próprio Doty se deixa abater por
uma espécie de desespero existencial, seu próprio ponto zero.
Tendo perdido a vontade de viver, ele é salvo não por qualquer contato humano, mas pela
confiança absoluta que seu cão
moribundo manifesta nele.
Curtos e cronológicos, os parágrafos são pontuados por seções às quais o autor chama de
entreatos, contendo reflexões
filosóficas e poéticas, em muitos casos dotadas de densidade
e beleza lírica consideráveis.
Os espíritos que as presidem
são Heráclito, o filósofo que insistia que tudo flui e passa, e
Emily Dickinson, a poeta que
escreveu sobre o desespero
inexprimível e a esperança inabalável. Os entreatos representam uma expressão da aceitação da perda e da tristeza.
Nas páginas finais, quando
descreve a velhice e a morte pacífica do cão preto, Arden, Doty
arrancou lágrimas deste leitor
-que, por acaso, é amante de
gatos.
Este texto foi publicado no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.
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