São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008

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Dentro do compasso

TRÊS OBRAS SE DEBRUÇAM SOBRE A MÚSICA BRASILEIRA DESDE SUAS ORIGENS ATÉ O SÉCULO 21

CARLOS SANDRONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

José Ramos Tinhorão é um verdadeiro "caso" nos estudos sobre música popular brasileira e, de certa forma, personagem dela, mais significativo que muitos compositores e intérpretes. Disse dele Caetano Veloso, em 1965: "Infelizmente, o único a colocar o assunto música popular brasileira em discussão".
Desde então, felizmente ou infelizmente, muitos outros o fizeram -e poucos com embasamento documental comparável. Fiz para o "Jornal do Brasil" uma resenha da primeira edição de "Os Sons dos Negros no Brasil", em 1988.
Nesse meio tempo devo tê-lo relido pelo menos duas vezes, nos primeiros dez anos para minhas pesquisas sobre samba e, nos dez anos seguintes, ao preparar aulas sobre MPB.
Afirmava ali: "Não precisamos ter vergonha de ler o Tinhorão". Naquele tempo, então, ainda podia parecer aos menos informados que a xenofobia era o ponto alto da sua obra. Hoje, citado à farta por todos os autores acadêmicos que se debruçam sobre os mesmos temas e, de quebra, portador de um mestrado em história pela USP, a riqueza de suas pesquisas é valorizada até por desafetos.
O que não significa que os mesmos desafetos, ou outros afetos, adiram por isso ao simplismo sociologizante de muitas de suas interpretações, nem muito menos à sua incompreensão da bossa nova e de muito do que se passou depois.
Em 1988, "Os Sons dos Negros no Brasil" era uma novidade quase completa e, hoje, continua sendo uma leitura saborosa e informativa, sem equivalente em língua portuguesa.
A lamentar apenas que o autor não tenha procurado incorporar a esta nova edição parte dos dados provenientes dos últimos 20 anos de pesquisas universitárias sobre o escravismo no Atlântico Sul (particularmente ricas em informações sobre cultura, sobretudo em comparação com os 20 anos anteriores).
Embora tais pesquisas ainda não tenham dado à música todo o lugar que mereceria, elas trazem com freqüência, dispersas entre capítulos e entre linhas, informações sobre o tema (daquelas que Tinhorão tão bem sabe garimpar).

Comparação instrutiva
"Uma História da Música Popular Brasileira - Das Origens à Modernidade", de Jairo Severiano, teve como principal predecessor no ramo (embora de menor tamanho) justamente a "Pequena História da Música Popular", de Tinhorão (primeira edição em 1974), e a comparação é instrutiva.
Esta última era organizada em capítulos, por gênero ("Modinha", "Choro", "Samba" etc.), e dava bastante espaço para as interpretações e juízos críticos do autor. Severiano, ao contrário, faz um esforço (bem-sucedido) para ater-se ao estritamente factual (embora não consiga esconder alguma antipatia por certos aspectos do tropicalismo e, num dos raros arroubos do livro, chame o pagode romântico, de grupos como Só para Contrariar, de "contrafação").
Os 55 pequenos capítulos, organizados sobretudo em torno das biografias dos protagonistas, são agrupados em quatro grandes "tempos".
O primeiro ("A Formação -1770-1928") começa nos marcos clássicos constituídos pela modinha e pelo lundu e vai até o último ano de vigência do sistema de gravação dito "mecânico". O segundo ("A Consolidação - 1929-1945") é o mais rico do livro e trata da chamada "época de ouro" da MPB. O terceiro tempo, o mais curto dos quatro, trata de "A Transição -1946-1957", período geralmente considerado como mera ponte entre a geração de Noel Rosa/Ary Barroso e a de Tom Jobim/João Gilberto e que recebe aqui tratamento mais equânime (apesar do título).
O quarto e último tempo ("A Modernização - 1958-") procura tratar de tudo o que aconteceu desde a eclosão da bossa nova, incluindo as tendências mais recentes, já no século 21.
Mesmo contando uma história cujas linhas gerais são bastante conhecidas, o livro é riquíssimo em detalhes inéditos.
Numa prosa de leitura agradável (embora algumas repetições pudessem ter sido evitadas), Severiano reúne e sintetiza também informações dispersas em diversas fontes. Justamente por isso, teria sido desejável indicar essas fontes de maneira mais precisa.
Com isso, ganhariam os outros pesquisadores (que desde já têm aqui um verdadeiro manancial de novos dados e sugestões), mas sobretudo ganhariam os leitores comuns e sua capacidade de situar e avaliar criticamente as informações apresentadas.
Já o livro de Vasco Mariz ("A Música no Rio de Janeiro no Tempo de D. João 6º") trata da música erudita no Rio de Janeiro, com foco entre 1808 e 1821, período da presença da corte portuguesa na cidade.
Foi uma época muito especial (também) para a música, tanto no que se refere a seu uso nas cerimônias religiosas (onde se sobressai a figura do compositor e, durante alguns anos, mestre-de-capela José Maurício Nunes Garcia) quanto no que se refere à ópera, com a construção do Real Teatro de São João e a presença de muitos cantores excelentes, atraídos pelo momento propício.

Idioma clássico
Quanto aos compositores estrangeiros então presentes no Rio, Mariz dedica capítulos ao português Marcos Portugal e ao austríaco Sigismund Neukomm -aluno de Joseph Haydn e o primeiro a usar música afro-brasileira (no caso, um lundu) como inspiração de uma peça em idioma "clássico" para piano.
O livro "A Música no Rio de Janeiro no Tempo de D. João 6º" disponibiliza informações preciosas sobre aspectos e personagens da história da música brasileira menos conhecidos do grande público, em comparação com os temas de Severiano e Tinhorão.

Imprecisões
Por isso também é uma pena que deixe escapar muitas imprecisões, como atribuir lundus a Antonio José da Silva ou afirmar que Francisco Manuel da Silva seria hoje mais conhecido que Sigismund Neukomm (a autoria do hino nacional pelo primeiro não é um argumento convincente).
Outros erros factuais estão nas "orelhas" dos livros de Mariz e Tinhorão. A primeira atribui a Joaquim Manoel da Câmara, modinheiro e instrumentista do século 19, a invenção do cavaquinho.
A segunda confunde um "berimbau" quinhentista (tocado, numa crônica jesuíta, por certo irmão Barnabé) -que certamente seria o idiofone de lâmina única, também conhecido como "berimbau-de-boca" ou "guimbarda"- com o arco musical de proveniência africana hoje usado na capoeira.


CARLOS SANDRONI é professor no núcleo de etnomusicologia da Universidade Federal de Pernambuco.

OS SONS DOS NEGROS NO BRASIL - CANTOS, DANÇAS, FOLGUEDOS - ORIGENS
Autor: José Ramos Tinhorão
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/ 3032-7106)
Quanto: R$ 30 (152 págs.)

UMA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - DAS ORIGENS À MODERNIDADE
Autor: Jairo Severiano
Editora: 34
Quanto: R$ 64 (504 págs.)

A MÚSICA NO RIO DE JANEIRO NO TEMPO DE D. JOÃO 6º
Autor: Vasco Mariz
Editora: Casa da Palavra (tel. 0/xx/ 21/ 2222-3167)
Quanto: R$ 31 (112 págs.)


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