São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008

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Imagem não é tudo

Dois estudos fundamentais sobre a arte da memória abordam suas técnicas desde a Antigüidade e discutem seu sentido atual

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um vínculo profundo entre faculdades mentais como a memória e a constituição moderna da noção de "si mesmo".
Dificilmente conseguimos pensar um sujeito sem a capacidade reflexiva de recuperar aquilo que se experimentou no passado. Para nós, sujeito é aquilo que tem necessariamente a força de construir uma espécie de "teatro interno" onde seria possível ver, com os olhos da consciência, o desfile de representações mentais do que se dispersou no tempo.
Tanto é assim que o esquecimento é, para a modernidade, um dos sintomas mais fortes da alienação.
Nesse sentido, Freud é um dos exemplos mais claros devido a sua maneira de compreender patologias como marcas de capítulos recalcados da história do sujeito, expulsos da memória disponível à consciência.
E o que dizer da maneira com que uma certa tradição do idealismo alemão reconhecia na rememoração ("Erinnerung") e na história as bases para a vida autoconsciente do espírito?
O leitor brasileiro interessado em problemas desta natureza tem enfim ao seu dispor uma coleção de textos maiores sobre estudo da memória.
"Espaços da Memória", coleção lançada pela Editora da Unicamp, traz, como seus primeiros lançamentos, duas traduções de extrema relevância: "A Arte da Memória", da historiadora britânica Frances Yates, e "A Memória, a História, o Esquecimento", do filósofo francês Paul Ricoeur.
Os dois livros partem de problemas simétricos. O próprio trabalho de Yates chega a ser analisado por Ricoeur em seu livro. O filósofo se interessa pela maneira como a historiadora reconstrói essa "ars memoriae" tão importante até a Idade Média e baseada nos princípios gerais da mnemônica.

Sistemas arquitetônicos
Yates insiste particularmente no fato de o artifício fundamental das técnicas antigas de recordação estar vinculado à capacidade de associar mentalmente imagens de coisas a lugares organizados em sistemas arquitetônicos rigorosos, como uma casa ou uma praça pública.
Assim, bom orador antigo seria aquele capaz de mover-se em imaginação, durante seu discurso, através de uma edificação construída mentalmente, extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de objetos, argumentos e personagens.
Tal artifício demonstra como a memória parece nascer como um processo de espacialização, como constituição de um verdadeiro espaço mental no qual arquivamos imagens.
Yates faz uma leitura cuidadosa de textos gregos e latinos, passando por textos medievais até chegar a Leibniz, a fim de mostrar a hegemonia e as nuanças desse modo de vincular a memória à capacidade de constituir séries espaciais por meio de imagens.
Hegemonia que chega, no caso de Giordano Bruno, que ocupa o cerne do livro, a fornecer as bases para a constituição de uma vasta arquitetônica, em que o saber da totalidade seria acessível graças à capacidade de armazenamento sistemático em lugares da memória e de construção de esquemas de relações. Como se a memória pudesse, assim, se transformar em espelho da totalidade do mundo.
Espelho porque não se trata de uma elaboração, mas de uma reflexão no sentido de fazer da memória o reflexo do mundo exterior, com suas forças e leis.
De uma certa forma, é nesse ponto que começa o livro de Paul Ricoeur. Trata-se de compreender o que está em jogo nessa relação tensa entre a memória e a imagem, que será tão problemática para a consciência moderna de si mesmo.
Para nós, modernos, a redução da memória à condição de arquivamento de imagens, mera lembrança de impressões das coisas que deixaram traços mentais, soa como equívoco fundamental por ignorar sua dimensão temporal. Pois ela não é uma questão de arquivamento, mas de representação do passado, de apreensão de uma experiência temporal ou, ainda, de reflexão sobre a presença de algo ausente.

Esquecimento metódico
Ricoeur lembra, por exemplo, como a constituição do sujeito moderno, ao menos desde Descartes [1596-1650], é solidária de um certo "esquecimento metódico" baseado no esvaziamento do conhecimento fornecido pela imaginação e na crítica da confiança nas imagens mentais que temos depositadas na memória.
Ricoeur admite que esse impulso teve sua importância na recondução da memória ao problema do acesso àquilo que não se dá como presença plena das coisas no espaço, embora essa não fosse exatamente uma questão que podemos encontrar em Descartes.
No entanto é esse problema que leva Ricoeur a insistir na memória como modo de acesso à realidade ontológica de um ser que é fundamentalmente "condição histórica".
Tal estratégia nos coloca diante de um dos aspectos mais significativos de seu livro: sua maneira de articular fenomenologia da memória, epistemologia da história e hermenêutica da condição humana a fim de constituir o campo de reflexão sobre a natureza constitutiva da representação do passado, da relação ao ausente, enquanto fundamento para a determinação da experiência moderna do "si mesmo".
No entanto o livro de Ricoeur tem como pano de fundo uma outra questão, de ordem claramente política. Ela está ligada à constituição não apenas do sujeito da memória individual mas da "memória coletiva".
Trata-se de um sujeito capaz de pensar as condições para o advento de uma "política da memória justa" que não se deixe fascinar nem pela fixação traumática, que impeça todo trabalho de memória, nem pela anistia expeditiva, que desconheça a função social da elaboração e da convivência social com o ausente.
Por isso, seu livro acaba apresentando o conceito de perdão como operador político que absorve, ao mesmo tempo, o dever de memória e de esquecimento. Esse perdão, diga-se, nós brasileiros desconhecemos, já que ele é o exato avesso da "crença de que devemos tratar os crimes cometidos como se não tivessem ocorridos, a fim de manter intacto o caráter indivisível da República".
"Esse preconceito relativo ao caráter indivisível da soberania faz com que só possamos defendê-la por meio daquilo que os psicanalistas chamam de "denegação". Algo válido do ponto de vista terapêutico, mas suspeito do ponto de vista da verdade e da justiça."


VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "Lacan" (Publifolha) e "A Paixão do Negativo - Lacan e a Psicanálise" (Unesp).

A ARTE DA MEMÓRIA
Autora: Frances A. Yates
Tradução: Flavia Bancher
Editora: Unicamp (tel. 0/xx/19/ 3521-7728)
Quanto:R$ 72 (504 págs.)

A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
Autor: Paul Ricoeur
Tradução: Alain François
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 82 (536 págs.)


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