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Imagem não é tudo
Dois estudos fundamentais sobre a arte da memória abordam suas técnicas desde a Antigüidade e discutem
seu sentido atual
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há um vínculo profundo entre faculdades mentais como a memória e a
constituição moderna da noção de "si mesmo".
Dificilmente conseguimos
pensar um sujeito sem a capacidade reflexiva de recuperar
aquilo que se experimentou no
passado. Para nós, sujeito é
aquilo que tem necessariamente a força de construir uma espécie de "teatro interno" onde
seria possível ver, com os olhos
da consciência, o desfile de representações mentais do que
se dispersou no tempo.
Tanto é assim que o esquecimento é, para a modernidade,
um dos sintomas mais fortes da
alienação.
Nesse sentido, Freud é um
dos exemplos mais claros devido a sua maneira de compreender patologias como marcas de
capítulos recalcados da história do sujeito, expulsos da memória disponível à consciência.
E o que dizer da maneira
com que uma certa tradição do
idealismo alemão reconhecia
na rememoração ("Erinnerung") e na história as bases
para a vida autoconsciente do
espírito?
O leitor brasileiro interessado em problemas desta natureza tem enfim ao seu dispor
uma coleção de textos maiores
sobre estudo da memória.
"Espaços da Memória", coleção lançada pela Editora da
Unicamp, traz, como seus primeiros lançamentos, duas traduções de extrema relevância:
"A Arte da Memória", da historiadora britânica Frances Yates, e "A Memória, a História, o
Esquecimento", do filósofo
francês Paul Ricoeur.
Os dois livros partem de problemas simétricos. O próprio
trabalho de Yates chega a ser
analisado por Ricoeur em seu
livro. O filósofo se interessa pela maneira como a historiadora
reconstrói essa "ars memoriae"
tão importante até a Idade Média e baseada nos princípios gerais da mnemônica.
Sistemas arquitetônicos
Yates insiste particularmente no fato de o artifício fundamental das técnicas antigas de
recordação estar vinculado à
capacidade de associar mentalmente imagens de coisas a lugares organizados em sistemas
arquitetônicos rigorosos, como
uma casa ou uma praça pública.
Assim, bom orador antigo seria aquele capaz de mover-se
em imaginação, durante seu
discurso, através de uma edificação construída mentalmente, extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de objetos, argumentos e
personagens.
Tal artifício demonstra como
a memória parece nascer como
um processo de espacialização,
como constituição de um verdadeiro espaço mental no qual
arquivamos imagens.
Yates faz uma leitura cuidadosa de textos gregos e latinos,
passando por textos medievais
até chegar a Leibniz, a fim de
mostrar a hegemonia e as
nuanças desse modo de vincular a memória à capacidade de
constituir séries espaciais por
meio de imagens.
Hegemonia que chega, no caso de Giordano Bruno, que ocupa o cerne do livro, a fornecer
as bases para a constituição de
uma vasta arquitetônica, em
que o saber da totalidade seria
acessível graças à capacidade
de armazenamento sistemático em lugares da memória e de
construção de esquemas de relações. Como se a memória pudesse, assim, se transformar
em espelho da totalidade do
mundo.
Espelho porque não se trata
de uma elaboração, mas de uma
reflexão no sentido de fazer da
memória o reflexo do mundo
exterior, com suas forças e leis.
De uma certa forma, é nesse
ponto que começa o livro de
Paul Ricoeur. Trata-se de compreender o que está em jogo
nessa relação tensa entre a memória e a imagem, que será tão
problemática para a consciência moderna de si mesmo.
Para nós, modernos, a redução da memória à condição de
arquivamento de imagens, mera lembrança de impressões
das coisas que deixaram traços
mentais, soa como equívoco
fundamental por ignorar sua
dimensão temporal. Pois ela
não é uma questão de arquivamento, mas de representação
do passado, de apreensão de
uma experiência temporal ou,
ainda, de reflexão sobre a presença de algo ausente.
Esquecimento metódico
Ricoeur lembra, por exemplo, como a constituição do sujeito moderno, ao menos desde
Descartes [1596-1650], é solidária de um certo "esquecimento metódico" baseado no
esvaziamento do conhecimento fornecido pela imaginação e
na crítica da confiança nas imagens mentais que temos depositadas na memória.
Ricoeur admite que esse impulso teve sua importância na
recondução da memória ao
problema do acesso àquilo que
não se dá como presença plena
das coisas no espaço, embora
essa não fosse exatamente uma
questão que podemos encontrar em Descartes.
No entanto é esse problema
que leva Ricoeur a insistir na
memória como modo de acesso
à realidade ontológica de um
ser que é fundamentalmente
"condição histórica".
Tal estratégia nos coloca
diante de um dos aspectos mais
significativos de seu livro: sua
maneira de articular fenomenologia da memória, epistemologia da história e hermenêutica da condição humana a fim de
constituir o campo de reflexão
sobre a natureza constitutiva
da representação do passado,
da relação ao ausente, enquanto fundamento para a determinação da experiência moderna
do "si mesmo".
No entanto o livro de Ricoeur
tem como pano de fundo uma
outra questão, de ordem claramente política. Ela está ligada à
constituição não apenas do sujeito da memória individual
mas da "memória coletiva".
Trata-se de um sujeito capaz
de pensar as condições para o
advento de uma "política da
memória justa" que não se deixe fascinar nem pela fixação
traumática, que impeça todo
trabalho de memória, nem pela
anistia expeditiva, que desconheça a função social da elaboração e da convivência social
com o ausente.
Por isso, seu livro acaba apresentando o conceito de perdão
como operador político que absorve, ao mesmo tempo, o dever de memória e de esquecimento. Esse perdão, diga-se,
nós brasileiros desconhecemos, já que ele é o exato avesso
da "crença de que devemos tratar os crimes cometidos como
se não tivessem ocorridos, a fim
de manter intacto o caráter indivisível da República".
"Esse preconceito relativo ao
caráter indivisível da soberania
faz com que só possamos defendê-la por meio daquilo que
os psicanalistas chamam de
"denegação". Algo válido do
ponto de vista terapêutico, mas
suspeito do ponto de vista da
verdade e da justiça."
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "Lacan"
(Publifolha) e "A Paixão do Negativo - Lacan e a
Psicanálise" (Unesp).
A ARTE DA MEMÓRIA
Autora: Frances A. Yates
Tradução: Flavia Bancher
Editora: Unicamp (tel. 0/xx/19/ 3521-7728)
Quanto:R$ 72 (504 págs.)
A MEMÓRIA, A HISTÓRIA,
O ESQUECIMENTO
Autor: Paul Ricoeur
Tradução: Alain François
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 82 (536 págs.)
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