São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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O pão nosso

Livro conta a história do fabrico e consumo da baguete, no século 18, seu declínio, no pós-guerra, e a redescoberta por padeiros inovadores

BEE WILSON

Ser aprendiz de padeiro na Paris do século 18 deveria ser algo que se aproximava muito do inferno.
O aprendiz era, na prática, escravo -tanto de seu mestre quanto das exigências complexas da levedura utilizada no pão.
O "dia" de trabalho começava perto da meia-noite.
Usando roupas de baixo grosseiras e pouco confortáveis, feitas de velhos sacos de farinha, o aprendiz era obrigado a amassar até 90 quilos de massa de uma vez, usando só as mãos -ou, em momentos de desespero, os pés.
Esse trabalho de amassar era realizado não uma vez, mas várias vezes ao longo da noite, e em geral era feito num porão úmido, escuro demais para o aprendiz poder ver o que estava fazendo e tão quente que a massa às vezes se derretia antes de crescer.
O aprendiz encarregado do trabalho de amassar era conhecido como "le geindre", ou o gemedor, devido aos sons dolorosos que emitia enquanto trabalhava.
Quando finalmente lhe era concedido um descanso, em algum momento da manhã, ele era obrigado a dormir no calor sufocante da padaria.
Após três horas era obrigado a acordar novamente para cuidar da levedura, que, como um bebê recém-nascido, precisava ser alimentada 24 horas por dia.
Toda essa vida miserável era necessária para alimentar a mania dos franceses de consumir o pão. O pão significava mais para os franceses do que para as outras nações.

Questão sagrada
Não era apenas a subsistência -era uma questão sagrada, além de ser um assunto de Estado. A hóstia da comunhão era sagrada, mas também era sagrado o pão branco do cotidiano.
Considerava-se que virar um pão de cima para baixo dava azar e representava um quase sacrilégio. Antes de comer, era costume fazer o sinal da cruz sobre o pão, usando uma faca.
Nos anos 1780, a "Enciclopédia Metódica" observou que "a maioria das pessoas" na França "acredita que morrerá de fome se não houver pão" -mesmo havendo outros alimentos disponíveis.
Para Steven Laurence Kaplan, autor de "Good Bread Is Back - A Contemporary History of French Bread, the Way It Is Made and the People Who Make It" [O Bom Pão Está de Volta - Uma História Contemporânea do Pão Francês, Como Ele É Feito e as Pessoas Que O Fazem, 368 págs. US$ 27,95, R$ 53], a "tirania do pão" unia os franceses.
Kaplan, que provavelmente sabe mais sobre o pão francês do que qualquer outra pessoa viva, talvez não atribua importância suficiente ao modo pelo qual a abordagem dos franceses aos carboidratos diferia daquela de seus vizinhos.
Em 1780, os italianos já estavam abandonando o pão de crosta crocante em favor das massas lisas. Do outro lado do canal da Mancha, os britânicos abandonavam o pão em favor do açúcar.
Ao longo do século 18, o consumo britânico de açúcar multiplicou-se por oito, chegando a 7,2 quilos por pessoa por ano.
Com tantas calorias doces sendo consumidas, o pão deixou de ser tão vital, especialmente porque boa parte do pão britânico passou a ser adulterada por alume, uma substância química adstringente com a qual era possível produzir pães brancos porosos com farinha de trigo de má qualidade. Na França, porém, o pão continuou a ser relativamente puro -e essencial.
Viver sem pão era impensável. Ter "perdido o gosto pelo pão" era considerado sinônimo de ter perdido a disposição de viver.
No final do século 19, o francês médio ainda consumia quase um quilo de pão por dia. E o termo "pão", para os franceses, tinha conotações extremamente precisas e rígidas, indicando um produto de crosta bem-formada e migalhas alveoladas, amassado a partir de farinha de trigo branca e produzido por um processo lento e árduo de fermentar e assar.
Os padeiros do século 18 viviam sujeitos a ameaças que vinham de todos os lados: de seus fregueses, que, dependentes dos padeiros para sua subsistência, com freqüência os tratavam com rancor e desconfiança injustificados; dos moleiros, aos quais os padeiros viam como ladrões e vigaristas que lhes roubavam uma parte do trigo que lhes enviavam para moer em farinha; do Estado, que regulamentava rigidamente o preço e o peso dos pães, às vezes impondo aos padeiros padrões impossíveis de respeitar (como por exemplo a exigência de que todos os pães tivessem um peso determinado, deixando de levar em conta que uma massa do mesmo peso pode resultar em pães de pesos diferentes); e de seus concorrentes, pois, por mais difícil e infeliz que fosse a vida de quem se dedicava a produzir pão, eles ainda queriam vender o maior volume possível.
Combinação magnífica de polêmica e erudição (maculada apenas pela ausência de um índice remissivo completo), este livro indaga como o pão francês de qualidade excelente dos séculos 18, 19 e início do 20 deu lugar aos pães industrializados decepcionantes dos anos 1960 em diante e como estes, por sua vez, felizmente foram substituídos por uma nova geração de baguetes, "bâtards" [mais volumosos, mas não tão longos quanto a baguete] e "boules" [tipo bola] artesanais.

Nostalgia
Kaplan reconhece que a saudade dos franceses pelo "bom pão do passado" freqüentemente não passa de um exercício de nostalgia. Essa espécie de sonhar e ansiar por pão pode, na realidade, ser contraproducente.
Foi exatamente esse tipo de nostalgia que levou a baguete do pós-guerra a ser tão aviltada.
"Durante a Segunda Guerra Mundial, o único pão disponível ao cidadão francês comum era um pão escuro ("pain bis') pesado, grosseiro e grudento, de qualidade duvidosa e nem um pouco apetitoso. A nostalgia resultante pelo pão de trigo branco levou ao desenvolvimento, após a guerra, de um novo método pelo qual era produzido pão muito branco e volumoso, leve e atraente, mas "desnaturado" e, essencialmente, sem gosto. "
"É esse, em essência, o pão que a maioria dos franceses continua a comer até hoje", diz Kaplan em seu livro.
Essa nova baguete mais branca que o branco era um simulacro grosseiro do velho pão branco do pré-guerra, mas isso não impediu os consumidores de o comprar; eles tinham esquecido o sabor do pão de qualidade.
Tão gratos ficaram por não mais precisar consumir o "pão da privação" do tempo da guerra que, num primeiro momento, não se importaram com o miolo excessivamente inchado desses novos pães, com o fato de as crostas não terem substância e com o fato de os pães ficarem velhos depois de menos de um dia.
Muitos fatores determinam o pão francês perfeito, e Kaplan os apresenta em grande detalhe: a farinha de trigo empregada, os ritmos gentis do amassar, a moldagem da massa crua ("pâton"), sua assadura no momento em que a massa se encontra "no pico de sua exaltação", conforme a frase usada no século 18.
Mas nada era tão importante quanto a maneira como o pão era "fermentado" a partir de uma cultura de levedo.
Não menos do que na fabricação do vinho, a panificação francesa dependia do equilíbrio delicado da fermentação.
Era isso, como observou o farmacêutico Antoine Parmentier em 1778, que fazia a produção de pão ser "uma escravização dolorosa". O levedo inicial da massa, ou "chef", feito só de fermentos naturais presentes na atmosfera, precisava ser refrescado quase constantemente, contribuindo para o tempo extremamente lento de crescimento do pão francês.
Aliás, Kaplan sugere que o suor deve ter sido algo como um ingrediente adicional do pão pré-industrial, "enriquecendo (ou contaminando) a massa".
Tal era o "ritmo infernal de uma sociedade que vivia de pão que ela não podia prescindir do pão nem por um instante".
"Pare de ser escravo da massa -torne-se seu senhor, em vez disso!", sugeria um anúncio francês do sistema de refrigeração Frigidaire em 1939.
Mais ou menos uma década ainda iria se passar antes de um número significativo de padeiros franceses fazer a transição para os métodos industriais, mas a atração era evidente: o fim das noites sem dormir, o fim do suor.
Os "30 Anos Gloriosos" da França do pós-guerra foram marcados pelo surgimento de misturadores mecânicos de alta velocidade, massa crescida à custa de fermento de ação rápida em lugar do complexo levedo, pães parcialmente assados e congelados -todas novidades que facilitaram em muito o trabalho da panificação.
Foi uma pena, apenas, que aquilo que era produzido por todas essas inovações industriais já não fosse visto como "pão", no velho sentido do termo, mas como um produto branco e destituído de alma.
Os amantes do pão começaram a perder a esperança nos padeiros, que produziam baguetes "sem alegria, sem sentimento, sem apetite", como reclamou o ator e gastrônomo Jean-Pierre Coffe em 1992.
O consumo de pão pelos franceses descreveu uma queda vertiginosa -de 900 gramas por pessoa por dia no início do século 20 para 150 gramas.
O status do padeiro também descreveu um mergulho livre. Seu trabalho artesanal e independente, motivo de orgulho, foi relegado ao passado.

A volta do bom pão
A toada fúnebre do pão francês foi tocada várias vezes na imprensado país -precocemente, porque hoje já é possível comprar pão da melhor qualidade artesanal outra vez, em toda Paris, pão cuja crosta exala o aroma de mel e gengibre e que não perde seus encantos após algumas poucas horas.
O bom pão está de volta, como diz o título de Kaplan.
No final, a atração simbólica do pão mostrou ser irresistível para os franceses. O Estado, por tanto tempo visto pelos padeiros como força opressora, acabou vindo resgatá-los.
Por uma lei de 1998, tornou-se ilegal fixar uma placa de "boulangerie" [padaria] exceto nos lugares em que profissionais "se envolveram pessoalmente em amassar a massa do pão, em sua fermentação e moldagem". Em nenhuma fase da produção os produtos poderiam ser congelados. A lei serviu de incentivo tremendo aos padeiros artesanais.
Enquanto isso, a partir de meados dos anos 90, uma nova geração de padeiros passou a conferir nova dignidade a sua profissão.
Sua inspiração foi Lionel Poilâne [1945-2002], que nunca deixou de fazer pão com integridade, praticando o que chamava de "retroinovação", desenvolvendo novas técnicas para a produção segundo tradições antigas.
O pão que virou a marca registrada de Poilâne é o "miche", um pão-bola feito com levedo.
Os novos retroinovadores, como Eric Kayser e Dominique Saibron, padeiros que têm padarias na rua Monge, no Quartier Latin, contribuíram para reinventar a baguete, criando versões de crescimento lento sem aditivos, usando misturadores industriais, em velocidade lenta.
Por mais que se possa sentir saudade do pão do século 18, o pão produzido por Kayser e seus contemporâneos é melhor.
Aliás, é provavelmente o melhor pão que a França já saboreou, porque é feito por homens e mulheres pensantes que não se sacrificaram à tirania da massa.
Como conclui Kaplan: "Em última análise, vale a pena recordar que o bom pão depende sobretudo da qualidade dos homens e mulheres que o produzem".

O texto saiu no "Times Literary Supplement". Tradução de Clara Allain.


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