São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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+ arte

AOS 93 ANOS, A ESCULTORA FRANCO-AMERICANA FALA DA RELAÇÃO COM DUCHAMP E DA INFLUÊNCIA DO FEMINISMO EM SUA OBRA

A DÁDIVA DOS DEUSES - Louise Bourgeois

Angel Molina
do "El País"

É difícil falar de Louise Bourgeois (nascida em Paris, em 1911) de maneira comedida e sensata. Basta ter contato com sua obra, capaz de nos convencer de maneira bela e irrefutável. Tentar explicar os grandes temas expressos em seus desenhos e esculturas -como, por exemplo, o sentimento de perda e a paisagem que ele deixa no inconsciente, a arquitetura e o corpo, a aceitação do "eu" (o espelho), a infância e a sexualidade- é algo que se opõe à imaginação.
Aos 70 anos de idade, quando sua obra ainda era pouco reconhecida, o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, cidade onde Bourgeois vive desde os 27 anos, lhe dedicou sua primeira grande retrospectiva.
Desde então, a trajetória de Bourgeois vem sendo acompanhada por colecionadores e diretores de museus de todo o mundo. Nos últimos anos, bienais, centros de arte e galerias vêm popularizando o trabalho dessa grande criadora. Como resultado dessa "moda", é possível que, em pouco tempo, a paixão pela obra de Louise Bourgeois corra o risco de ser vista como pitoresca.
Fotos descoloridas de todo tipo, frases, desenhos feitos à mão e um papel de parede envelhecido recobrem a sala da casa da artista, no bairro de Chelsea, onde passa a maior parte do tempo. Já imaginamos assim a sala de Gregor Samsa [de "A Metamorfose", de Kafka], com suas escadas que permitem que se chegue ao mundo dos vivos desde o sótão, onde Louise Bourgeois trabalha e onde só entram os eleitos.
O espírito e a força dessa mulher frágil continuam aparentes em suas palavras, que são o eco de toda sua obra, um grito humano contra o caos e a destruição -são um chamado de esperança, que é certamente a qualidade que melhor distingue Louise Bourgeois como artista.
 
A sra. afirma que nascer artista é tanto um privilégio quanto uma maldição. Como explica esses sentimentos contraditórios?
Há anos venho abrindo minha casa (aos artistas jovens) todos os domingos, para que me mostrem seus trabalhos. Meu "salão" recebe não apenas artistas plásticos, mas também escritores, poetas, músicos, cantores e bailarinos. Eles vêm pedir ajuda, estímulo, aprovação ou recomendações. Para alguns, nossa avaliação é a única oportunidade que eles têm de compartilhar seu trabalho com os demais.
É verdade que eu sempre disse que um artista nasce feito, não se faz. Manter uma relação contínua com seu trabalho pode ser muito difícil, pois há muitos obstáculos que podem atrapalhar.
Certa vez eu colei na parede a seguinte declaração de princípios: "Não sou agência de colocação profissional. Não posso conseguir uma galeria para você. Talvez você necessite de um psiquiatra ou médico...".
Ser artista implica a incapacidade de crescer e enfrentar o mundo real. Portanto, ser capaz de sublimar a realidade é uma dádiva dos deuses. Eu sempre disse que a arte é garantia de bom senso.

Em sua obra, o medo do sexo e da morte é o mesmo, a atração e o medo se movem de uma parte a outra. Para uma artista, qual é a causa e qual é o efeito?
Meu trabalho trata das emoções que acontecem antes da diferenciação de gênero; me interessam as coisas que não são nem pretas nem brancas. Gosto de me mover por essas áreas intermediárias, mais cinzentas. Comunicá-las é difícil, fazer com que as pessoas gostem de você é difícil.

A sra. sempre afirmou que sua obra não tem relação nenhuma com o feminismo. Contudo nota-se um certo tom de humor feminista em suas "celas", por exemplo.
Sou feminista porque acho que as mulheres deveriam ter os mesmos direitos e oportunidades que os homens. Tive sorte porque minha mãe era feminista (seu nome, Louise, lhe foi dado por sua mãe em homenagem a Louise Michel, a Rosa Luxemburgo francesa), meu marido também o era e, agora, meus filhos também.
No meu trabalho eu zombei do "macho man" e do complexo de Don Juan, algo que está relacionado à minha revolta contra meu pai. Mas o trabalho nunca é uma declaração política. É preciso ir mais além ou ficar acima disso.

Como a senhora vive seu sucesso tardio?
Gosto de exibir meu trabalho em todo o mundo, mas não sinto isso como incentivo. Na realidade, não me envolvo no planejamento de minhas exposições. Dedico-me apenas a trabalhar.

A sra. tem 93 anos. De onde vem sua inspiração?
De minha infância -aqueles sentimentos ainda continuam vivos.

A sra. trabalha com a mesma energia mental? Como é um dia normal seu?
Minha jornada de trabalho é muito rígida e repetitiva. Dependendo do estado de humor em que estou, desenho sem parar ou faço gravuras. A escultura requer um nível diferente de concentração e uma energia psíquica. Trabalho em muito poucos pedidos grandes, porque requerem a colaboração de outras pessoas.

A sra. conheceu Marcel Duchamp. Qual é sua opinião sobre a influência dele na arte contemporânea?
Ele foi de grande ajuda quando fiz minha primeira exposição de escultura. Minha galeria ficava perto do lugar onde ele costumava ir jogar xadrez. Lembro que ele levou pessoas importantes do mundo da arte para ver minha exposição. Acho que seu trabalho foi crucial para a história da arte, mas não para meu trabalho. E não acredito que sua influência tenha produzido arte importante. A mim não me interessa a história -interessam-me as emoções e tudo o que tenha a ver com a sensação de estar viva.


Tradução de Clara Allain.


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