São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ABISMO

por Nelson de Oliveira

Medo de dar vexame, de aparecer em público só de cueca e pantufas? Não. Medo de perder a hora e o avião, de ficar para trás na excursão? Não. Muito pior do que isso: tenho medo é de despencar da ponte. Pavor de mergulhar no abismo, sem o direito nem sequer de assistir ao resumo da minha própria vida. Não pratico rapel, não salto de pára-quedas. Detesto o movimento vertical ascendente e mais ainda o descendente. Cair com elegância e dignidade não é comigo. Já despenquei de cinco ou seis pontes, mas foram tombos pequenos. Queda de pinguela. Machucou um pouco, confesso. Mas eu teria me machucado muito mais se tivesse continuado lá em cima. Se tivesse atravessado a ponte, então, nem se fala: fratura exposta na certa. Morro de medo de despencar das grandes pontes, é isso. E mais ainda de explodir junto com elas. Quem nunca explodiu uma ponte que dê o primeiro disparo de morteiro. Não sou de muitas palavras, não tolero invasão de privacidade. Sou tímido, reservado, caseiro. Mesmo assim procuro manter as minhas pontes sempre limpas e bem conservadas.
O trânsito está sempre livre, jamais fiz uso de cancela ou barricada. Só tento explodir uma ponte quando percebo do outro lado uma movimentação pouco amistosa: uma palavra nada cordial, uma ofensa explícita, um gesto desleal. Nessa hora me escondo no meu minúsculo território e aperto o detonador. A nuvem de poeira me cega. Adeus, ponte. E o medo reaparece. O pavor. Morro de medo de despencar da ponte. Morro de pavor de cair de todas as minhas pontes ao mesmo tempo. De ficar sozinho no meu minúsculo território. Noite sim, noite não, sonho com isso: as últimas pontes indo pelos ares num súbito acesso de fúria. Num rompante amargo e belicoso: tchau pra vocês, bye-bye. A mulher, os filhos? "Hasta la vista". Os amigos? Adeus, camaradas, "au revoir". Todos os laços afetivos indo para o beleléu. Freqüentemente sonho com isso: depois de explodir todas as minhas pontes, caio na escuridão dos solitários anônimos. No deserto dos loucos e dos insensíveis. Acordo apavorado. Salto para fora da queda onírica disposto a aceitar o pesadelo como um aviso: dinamitar pontes sem despencar no abismo é para os profissionais. É para os profetas e os terroristas. É para quem gosta de cortar a vida pela raiz e jamais morreu na tentativa.


Nelson de Oliveira é escritor e ensaísta, autor de "Pequeno Dicionário de Percevejos" (ed. Lamparina) e organizador de "Geração 90" (ed. Boitempo), entre outros.


Texto Anterior: Você tem medo de quê? - Exílio: Milton Hatoum
Próximo Texto: Destino: Mary del Priore
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.