São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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DERRIDA DE BOLSO

ENTENDA, EM SEIS VERBETES, OS PRINCIPAIS CONCEITOS DESENVOLVIDOS E RETRABALHADOS PELO AUTOR DE "A ESCRITURA E A DIFERENÇA" E "ESPECTROS DE MARX"

especial para a Folha

Levantar um pequeno vocabulário de Derrida se tornou quase impossível, pelo fato mesmo de não haver nele propriamente conceitos, mas inúmeros termos que mobiliza como "alavancas de intervenção" em textos e contextos específicos. O que se segue são notas, no sentido de orientar minimamente o leitor interessado numa primeira incursão na escrita derridiana. (Evando Nascimento)

DESCONSTRUÇÃO

Derrida tem enfatizado o fato de não haver uma "desconstrução", como o uso abusivo do termo sugere, o qual migrou para a mídia, chegando às telas no filme "Desconstruindo Harry", de Woody Allen, por exemplo. O sentido de bandeira ou movimento "desconstrucionista" ganhou força nos EUA, em princípio sob a liderança de Paul de Man, amigo de Derrida, mas sempre com grandes reservas por parte deste quanto ao rótulo. Cada país, cada instituição, inventou sua própria desconstrução, por meio de recortes, enxertos e combinações de toda ordem. Mesmo assim, o vocábulo permanece fortemente relacionado ao trabalho de Derrida. Porém, como ele sublinhou em entrevista a mim concedida ao Mais! em 2001, "isso se desconstrói", pois se trata de um processo filosófico, social, antropológico e político imemorial, que antecede e vai além do autor de "Espectros de Marx" [ed. Relume-Dumará]. O original francês "déconstruction" já é uma tentativa de tradução de "Destruktion" e "Abbau", utilizados por Heidegger em "Ser e Tempo". Numa carta a seu tradutor japonês, Derrida explica que, quando lhe ocorreu na década de 60, não estava certo nem sequer de que existisse em francês. Ele não encontrou a palavra nos dicionários contemporâneos, mas sim como uma espécie de arcaísmo no dicionário "Littré", do século 19. A definição dada recobre as áreas de retórica, gramática, arquitetura etc. Em Derrida, o termo tem uma relação com a metáfora arquitetônica de "estrutura", que se impunha nos anos 60. Um conceito que, como expôs em uma conferência sobre Claude Lévi-Strauss, é freqüentemente pensado de maneira centrada. Ele propõe então liberar o que chama de o jogo ou a "estruturalidade da estrutura", a partir dos questionamentos das figuras do centro no Ocidente: Deus, homem, "energeia", "eidos", presença, "ousia", razão. Se tais representações são múltiplas, isso significa que o centro não é fixo nem uno, mas tende a ser substituído ao longo da história da metafísica.

"DIFFÉRANCE"

Eis uma das palavras mais controvertidas em relação à fortuna crítica de Derrida, sendo também uma das mais recorrentes. Como o sertão de Guimarães Rosa, a "différance" está em toda parte. Houve várias tentativas de tradução em português, umas mais felizes, outras menos: "diferança", "diferência", "diferensa", "diferaença" etc. Todas me parecem insuficientes, pois defendo o princípio de "in-tradução", para citar um neologismo caro aos Campos. "Différance" é um daqueles termos-chave que, como o "tao", o "logos", o "Dasein" de Heidegger, a "physis" ou a "mímesis" de Aristóteles, só deveriam ser traduzidos por meio de comentários, deixando-se intacta a palavra, como um corpo estrangeiro na língua nacional e como um desafio permanente aos leitores. Qualquer tentativa de adaptação fará com que o valor reflexivo do vocábulo se perca, bastando as novas recontextualizações para lhe dar outra vida. O quase neologismo francês implicou uma rasura na palavra equivalente à nossa diferença: "différence". Ali onde havia um "e", Derrida riscou e colocou um "a". Mas a distinção entre essas vogais não é audível em francês, sendo perceptível só na leitura. Esse foi o modo que Derrida achou para reverter o "fonocentrismo" e o "logocentrismo" da tradição metafísica: se em Platão, Rousseau, Saussure e mesmo Austin, o registro oral é privilegiado em relação ao escrito, trata-se de inverter a relação e propor uma valorização da escritura. Esta e a "différance" são os chamados "indecidíveis", ou seja, termos que reaparecem nos textos derridianos, mas que escapam à definição homogênea do conceito como recorte na unidade ideal da significação.

ACONTECIMENTO/EVENTO

"Événement" é um termo fundamental para entender a relação com a alteridade. As duas traduções como acontecimento ou evento são cabíveis; opto pelo primeiro para tirar o máximo proveito de um termo corrente da língua, levando-o além de suas fronteiras cotidianas. Para Derrida, só há acontecimento de fato ali onde se pode contar com a chance do acaso. Daí que estruturalmente não se pode excluir a possibilidade do "pior", que vai muitas vezes além do "mal radical" de Kant. Como desenvolve em "Da Hospitalidade" (1997), no Ocidente a hospitalidade é toda condicionada por regras estritas: há regulamentos de imigração e, uma vez imigrado, o indivíduo é obrigado a se submeter às leis do país. O motivo da "hospitalidade incondicional" serve para repensar a idéia de uma Europa fechada em si mesma, freqüentemente incapaz de acolher e lidar com a alteridade diferencial. A noção de incondicionalidade (da hospitalidade, do dom, do perdão) se aproxima inevitavelmente de um certo absoluto metafísico, mas dele se distingue na medida em que na realidade, aqui e agora, deve haver uma negociação entre o incondicional e as condições efetivas em que um acontecimento pode ter lugar. Seu apoio a grupos que defendem os sem-documento ["sans-papiers"] se orienta nesse sentido. Claro que o migrante judeu magrebino que Derrida foi tem um papel decisivo na reconsideração geral dos modos hostis de relação com o outro em território europeu, praticada em nome da antiga soberania nacional, ora convertida em soberania supra-estatal.

LITERATURA

Observe-se logo que não existe literatura em si mesma em Derrida. Ele recorre inicialmente ao termo para tratar de um discurso que de algum modo, embora não detenha um conceito essencialista, propôs um tipo de pensamento distinto do filosófico. Nesse sentido, literatura é mais ou menos equivalente ao termo grego "poíesis", que deu poesia em português e é amplamente discutido em um ensaio de "La Dissémination - La Double Séance" [A Dupla Sessão]. Esse texto procura desconstruir um fragmento do diálogo platônico "Filebo", em contraponto com um curto poema em prosa de Mallarmé, "Mimique" [Mímica]. Originalmente publicado na revista "Tel Quel", "A Dupla Sessão" tem a ver com o experimentalismo da revista, embora sem cair nos dogmatismos da mesma. Posteriormente, Derrida se afastará do grupo liderado pelo escritor Phillippe Sollers.
Um outro uso que Derrida faz da palavra literatura é mais recente e provém de uma longa entrevista com o especialista americano Derek Attridge, intitulada "This Strange Institution Called Literature" [Essa Estranha Instituição Chamada Literatura]. Aí a literatura coincide em suas origens com a noção moderna de democracia, tal como a discutimos desde pelo menos a segunda metade do século 18 até hoje. Ele vai dizer que um autor como Beckett nada mais teria a ser desconstruído, já que o trabalho efetuado com a linguagem verbal desmobiliza a maioria dos preconceitos metafísicos.
Essa literatura pensante converge com uma certa noção de democracia pelo fato de, em princípio, o escritor ter o direito de "dizer tudo". Mais recentemente, em "Papel-Máquina", ele declara que a literatura é um segredo ostentado ou alardeado ["un secret affiché"]: um escritor pode contar sua vida mais íntima que, sob as vestes da ficção, ela poderá passar como algo que não é experiência privada. Essa "força de liberdade", para citar Barthes, da literatura custou evidentemente um alto preço a muitos escritores, o que prova que a democracia como a conhecemos está longe de uma prática efetiva.

PHÁRMAKON

Está entre os indecidíveis mais conhecidos. Derrida detecta nos diálogos de Platão a repetição do termo "phármakon", sendo correntemente traduzido como "remédio" em francês. Toda a leitura de "A Farmácia de Platão" [ed. Iluminuras] é no sentido de mostrar que essa tradução corresponde a uma decisão interpretativa, pois nos diálogos platônicos o termo detém grande ambivalência, podendo ser traduzido tanto por remédio quanto por veneno. A palavra "droga" forneceria uma outra possibilidade de transposição, não tivesse recebido forte conotação negativa em nossa cultura. A grande característica do "phármakon" é não ter nenhuma essência, oscilando entre o bem e o mal, o presente e o ausente, a vida e a morte, o masculino e o feminino. No "Fedro", de Platão, por exemplo, ele vem sutilmente associado à escrita. Numa das cenas finais do diálogo, dentro de um mito sobre a origem dos caracteres escritos, o deus supremo egípcio Tamuz vai qualificar o invento de seu subalterno Thoth como um "phármakon", um "veneno", para a memória viva, à medida que os humanos vão se descurar do exercício mnemônico, delegando-o à letra morta. Na boca do pai da escrita, o semideus Thoth, a escrita é dada também como um "phármakon", um fortificante para a memória, sendo pois um bem para a humanidade. Ocorre assim um giro do termo, que ganha sentidos opostos quando aplicado ao mesmo objeto, a escrita, que se torna um "phármakon" como remédio ou veneno, a depender de quem a avalie. Se isso acontece, diz Derrida, é porque a escrita-"phármakon" precede estruturalmente à constituição das oposições metafísicas: seu valor positivo ou negativo é o resultado de uma decisão interpretativa e, portanto, tradutória.

TRADUÇÃO

Derrida é um dos grandes pensadores da tradução, junto com aqueles que direta ou indiretamente refletiram sobre/ praticaram a atividade tradutória, tais como Cícero, são Jerônimo, Lutero, Walter Benjamin, Heidegger e Roman Jakobson. Em Derrida, o fundamental é pensar que não se trata de uma tarefa simples, na medida em que não há transparência entre as línguas. Traduzir não pode ser entendido como o simples ato de conduzir o sentido da palavra de um idioma para outro.
É preciso sempre levar em conta o corpo significante das palavras -daí que algo sempre se perde na passagem das línguas, mas ganha-se também o próprio movimento intercultural.
O ato de traduzir é eminentemente cultural, pois envolve contextos, registros e lugares de enunciação diferenciados. Com a tradução, fica também evidenciado o aspecto diferencial originário das línguas, que, embora se relacionem intensamente desde o começo, carregaram marcas eminentemente distintas.
A tradução é quem melhor "traduz" o processo geral da "différance" como diferenciação empírica e transcendental. É ela que põe em causa o mito da unicidade divina e o aspecto infeliz de Babel. Por meio da comunicação intensiva entre as línguas, a tradução promove a possibilidade de uma Babel feliz, mesmo pós-queda, uma vez que contradiz a existência do Deus único, criador do verbo puro da Origem.
"Des Tours de Babel" [Torres, Voltas ou Desvios de Babel], traduzido em português como "Torres de Babel" [ed. UFMG], desconstrói a visão até certo ponto idealizada do que Haroldo de Campos chamou a "metafísica da tradução" de Walter Benjamin. Em Derrida, a tradução é também uma metáfora para a leitura desconstrutora. Nesse sentido, costumo dizer que "ler Derrida é traduzir Derrida" -ainda que o estivesse lendo em francês para escrever no mesmo idioma, o estaria traduzindo, remanejando e passando adiante os rastros de seus textos.


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