São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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+ sociedade

A QUINTA ESTAÇÃO DO MEDO


Roupas que protegem do excesso de informação, de ruído e da violência urbana compõem o figurino do "novo homem supermoderno"


Annalisa Barbieri
do "Independent"

Funcionando paralelamente ao mundo cotidiano da moda -qual é a forma de perna de calça ou a altura de salto consideradas "in"-, há outra corrente da moda que a maioria das pessoas nem sequer percebe. Essa corrente está tão à frente de si mesma que pertence a um tempo que ainda não chegou -preparando-nos para um mundo que talvez nunca vejamos. Um lugar em que as roupas evoluem por motivos além do mero espetáculo. Esse outro mundo é tema de um novo livro: "The Supermodern Wardrobe" (O Guarda-Roupa Supermoderno, 143 págs., 25 libras, V & A Publications, Inglaterra), de Andrew Bolton. Bolton teve a inspiração para escrever o livro depois de ler "Não-Lugares" (ed. Papirus), do antropólogo francês Marc Augé, que examina as áreas de transição -aeroportos, estradas, metrô-, lugares em que vivenciamos uma quantidade excessiva de informação, mudanças de espaço, temperatura e ruído, mas com os quais não temos envolvimento emocional. "Quanto mais eu pensava nisso, mais pensava nos estilistas que estão reagindo a esses lugares, desenhando roupas que oferecem abrigo contra temperatura, ruído e poluição, além de proteção contra o crime nas ruas e o olhar das câmeras de vigilância", diz Bolton. "Fiquei intrigado com a idéia de uma quinta estação, em que você controla seu ambiente." Bolton é um antropólogo por profissão, mas hoje trabalha como curador-associado no Instituto da Vestimenta do Museu Metropolitano de Arte, em Nova York. Antes disso ele trabalhou no Museu Victoria e Albert, em Londres; sua última exposição lá foi "Homens de Saias". Essa quinta estação nos chega sob a forma de vestimentas que vão desde os verdadeiros trajes de ficção científica -que controlam sua temperatura e o tranquilizam quando você estiver estressado- a coisas bem mais práticas: bolsos ocultos para enganar batedores de carteiras, roupas dupla-face ou com zíperes, que oferecem maior versatilidade. Para ter o rótulo "supermoderno", porém, elas devem ir além da mera função ou do fator visual. Eu investiguei por que as roupas tradicionais para trabalho ao ar livre, como as usadas por um guarda-florestal, por exemplo, não são supermodernas, já que também evoluíram para funcionar de acordo com o ambiente.

Excesso e proteção
"Para uma coisa ser supermoderna, o principal é o contexto", explica Bolton. "A supermodernidade tem a ver com um excesso e a proteção dele. E, também, num espaço supermoderno você se desliga do ambiente [o oposto do que faria um guarda-florestal]. Para que as roupas sejam supermodernas, devem ajudá-lo a fazer isso." Se você já usou um jornal como escudo do mundo exterior, em um trem, avião ou ônibus, ou um equipamento de som pessoal para tentar criar seu próprio espaço, já deu os primeiros passos para ser supermoderno.
A supermodernidade é o domínio das roupas esportivas e dos uniformes profundamente funcionais e práticos. Os bolsos são um dos pré-requisitos do supermoderno. Zíperes ou botões de pressão são outro.
Se a roupa puder se transformar de casaco em cadeira, digamos, tanto melhor. Mas a marca absoluta do supermoderno é que o traje deve proteger de alguma maneira o usuário de seu ambiente urbano transitório.
A "Vexed Parka", da grife britânica Vexed Generation, é provavelmente o traje mais supermoderno mostrado no livro. Ele preenche todos os critérios: é uma vestimenta adaptada para ajudar o usuário a enfrentar o ambiente urbano. É um triste reflexo daquilo de que precisamos nos proteger. Criado pelos fundadores da Vexed Generation, Adam Thorpe e Joe Hunter, ele foi feito em reação às táticas cada vez mais militares da polícia durante as demonstrações políticas em Londres. Feito de náilon balístico (um dos componentes dos coletes à prova de bala), seu desenho imita os trajes da polícia antimotins; é resistente a golpes de faca e ao fogo, reforçado na região dos rins e da coluna e tem cordões para serem amarrados entre as pernas. Parte do projeto visa a proteger o usuário contra as "carícias" policiais.
Alguns, como os modelos da CP Company, empresa italiana de roupas esportivas, são mais conceituais que realmente práticos: um casaco com capuz que se transforma em rede de dormir, uma jaqueta de poliuretano inflável que se transforma em poltrona. A idéia é supermoderna, mas a aplicação é duvidosa. A idéia de abrigo também é um dos componentes do supermoderno. Proteger-nos dos elementos enquanto nos deslocamos, mas também roupas que se tornam casas móveis, em forma de barracas. "Mas não tenho certeza de até que ponto essas barracas nos protegeriam", diz Bolton.
Na vanguarda do desenho supermoderno mais prático estão etiquetas que associamos à transitoriedade: estilistas de bagagens como Mandarina Duck e Samsonite. A coleção Blacklabel Travel Wear, da Samsonite, foi lançada no início de 1999 e desenhada por Neil Barrett, antigo estilista masculino de Gucci e Prada. A Blacklabel nos deu o "Casaco para Carro Antiestresse", feito de uma fibra "antiestresse" que bloqueia as ondas magnéticas e que tem suportes no pescoço e nas costas, além de uma bola de borracha costurada dentro do bolso na manga, para você se acalmar enquanto a aperta.
Em meados dos anos 90 a Philips se uniu à Levi's para trabalhar em "eletrônica usável". Embora grande parte dela continue na fase conceitual, a dupla agora lançou sua linha Industrial Clothing Division Plus (ICD+). Até agora ela inclui quatro jaquetas, que permitem ao usuário controlar seu espaço imediato -as jaquetas têm telefone GSM, reprodutor de MP3 e fones de ouvido, tudo isso ligado por uma coisa chamada Personal Area Network ou PAN [rede de área pessoal".
A CP Company fornece uma jaqueta que não apenas evita a poluição do ar (através de uma máscara presa ao capuz), mas também a poluição sonora. Chamada "Life Jacket", ela tem fones de ouvido anti-ruído, inspirados por aqueles usados pelos controladores de tráfego aéreo, que cortam praticamente tudo o que você quer: conversa, avisos, o chiado dos fones de ouvido de outras pessoas no metrô.
Esses exemplos podem parecer exagerados, mas ocasionalmente o mundo mais decorativo da moda e o supermoderno se cruzam para que o supermoderno se torne cotidiano. Basta ver coisas como as calças de combate cheias de bolsos, o colete reversível, o detestável top com capuz Gap -atual uniforme da juventude rebelde- para constatar como esses itens, antes supermodernos, se tornaram parte de nosso vestuário cotidiano. O capuz, embora seja tão antigo quanto os romanos, é uma das aplicações mais sinistras do supermoderno. Estilistas como Thorpe e Hunter incorporaram em suas jaquetas capuzes exagerados que ocultam quase totalmente o rosto, para proteger o usuário do olhar das câmeras de vigilância, mas sua aplicação se tornou mais ameaçadora do que protetora.
A jaqueta "Walkie Talkie", de Neil Barrett, ajuda os pais a manter o rastro dos filhos em espaços transitórios como shopping centers. Um microfone e um fone de ouvido na gola interna ajudam a mantê-los em constante contato. A Philips Design também produziu um protótipo de jaqueta infantil que usa "antenas de tecido, rádio-etiquetas e câmeras remotas miniatura para indicar a posição da criança".
Mas são os bolsos a característica mais integral da vestimenta supermoderna. Muitos estilistas desenvolveram o uso de bolsos a tal ponto que eles se tornaram a principal marca de seu trabalho. Até aí nada de novo -os bolsos liberam as mãos, o que nos ajuda a lidar com qualquer eventualidade em "espaços transitórios". É uma idéia tão antiga quanto as roupas. Bonnie Cashell desenhou uma "saia-bolsa" em 1954: uma saia rodada típica da época, tendo como bolso uma bolsa tradicional, com boca metálica, para manter os pertences seguros e fechados. Quase todos os estilistas atuais admitem que bolsos nunca são demais, mas um que leva isso um pouco além é o japonês Kosuke Tsumura, que desenhou um casaco com nada menos que 44 bolsos. Pode-se perguntar quem precisaria de tantos e como conseguiria encontrar alguma coisa neles sem certo grau de frustração.
No entanto o guarda-roupa supermoderno pode ser localizado antes dos anos 40. Suas raízes estão em estilistas como Jean Patou e Chanel, que imitaram elementos de trajes esportivos e os venderam para uma clientela abastada. Estilistas americanas como Bonnie Cashin, Vera Maxwell e especialmente Claire McCardell realmente os levaram às massas nos anos 30, exatamente numa época em que o mundo estava ficando obcecado pelas viagens motorizadas.
Tudo isso é muito excitante, apesar de deprimente. Embora Bolton afirme que "as roupas supermodernas são geradas por nossa distância do futuro -não tanto para nos proteger do que realmente acontecerá, mas da idéia disso", essas previsões de nossas necessidades mostram o que nos tornamos: uma tribo tão perturbada pelo ruído, pela própria presença de nossos colegas passageiros, que precisamos nos proteger deles.
Ser supermoderno também é um ato supremamente egoísta. Se você é capaz de controlar seu mundo imediato, pode esquecer o mundo externo. Enquanto ser supermoderno pode torná-lo autônomo, também pode isolá-lo de todos. É irônico que, embora essas roupas se destinem a nos ajudar a enfrentar os problemas do mundo urbano externo, nós mesmos nos tornamos parte desse problema. Afinal, embora essas roupas atendam às necessidades humanas mais básicas -conforto e segurança-, elas dão vontade de ser realmente supermoderno... e ficar nu.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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