São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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Duas antologias discutem as implicações políticas e simbólicas do conceito de raça no Brasil e sua relação com as noções de retórica e classe social

As metamorfoses do outro

Manolo Florentino
especial para a Folha

Do outro já se disse não passar do demônio que cada qual renitentemente carrega consigo. Nada no entanto afiança ser essa a derradeira palavra sobre o tema. E a maioria das histórias que têm a alteridade por eixo ou a tangenciam operam não apenas com um outro exterior ao sujeito, mas também com atores coletivos. Abarcam igualmente inúmeros portos de uma longa travessia da descoberta do não-parente ao encontro do que veio ao mundo fora da compulsória guarda do meu Estado-nação. Em tão extenso percurso jamais logramos libertar-nos do terrível paradoxo da alteridade. Pois, se é certo que, ao presumirmo-nos superiores ao outro, aplainamos o terreno para eventualmente submetê-lo, implícito a semelhante assunção se encontra também o saudável reconhecimento da diferença entre ambos. O ideal de igualdade que povoa tantos espíritos generosos, ao contrário, não raro descamba em movimentos assimilacionistas. Nada mais natural, já que seu suposto -a in-diferença- representa a autoritária negação das dissimilitudes que a todos nos tecem. Não há garantias de estarmos melhorando. E não deixa de ser irônico observar que o ocaso do fundamentalismo comunista tenha tornado o Ocidente mais uma vez prisioneiro da nação. Muitas são as partes da Europa onde a afirmação étnica é palavra de ordem, por vezes à custa de centenas de milhares de vidas. Em sociedades multiculturais, como nos Estados Unidos, ainda impera o ódio racial, não surpreendendo que ali as questões relativas à identidade não raro se expressem fortemente ligadas à luta pelos direitos civis.

Caso singular
Há muito o caso brasileiro é considerado singular. E foi a Unesco a primeira grande agência a reconhecê-lo em escala internacional, financiando férteis pesquisas durante o imediato pós-guerra. Acreditava-se que o padrão de relações raciais vigente no Brasil seria bem menos conflitivo do que em outras sociedades, e que -no rastro da velha tradição anglo-saxã da ciência aplicada -, desvendando-o, poder-se-ia igualmente desvelar as fórmulas a serem aplicadas a outros contextos. Visava-se sobretudo a prevenir a emergência de um novo holocausto. As tramas sociais, políticas e simbólicas mediante as quais, no Brasil, a alteridade se converte (ou não) em raça são mais uma vez objeto de análise, agora por parte de duas seletas acadêmicas: "Classes, Raças e Democracia", de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, e "Raça como Retórica", organizada por Yvonne Maggie e Cláudia Rezende. São trabalhos bem-vindos, em primeiro lugar, por se inscreverem em um momento da história contemporânea em que afirmar o outro de cada sociedade tornou-se uma espécie de obsessão, não importando muito se se tratam de sociedades estruturalmente multiculturais ou mestiças. São antologias igualmente bem acolhidas por oferecerem novas contribuições a um tema tantas vezes abordado com indisfarçável pudor, mesmo quando envolto em códigos politicamente corretos. Toda antologia é, por definição, desigual. Fruto da labuta de um único autor, entretanto, o livro do sociólogo Guimarães é por isso bem mais homogêneo do que "Raça como Retórica". Nesta última, obra conjunta de uma dezena de pesquisadores de variada formação, a fluidez das fronteiras étnicas e raciais brasileiras, suas expressões pretéritas e contemporâneas -sobretudo urbanas- e outros paradigmas de raça e de nação são convincentemente abordados. O uso persuasivo da linguagem que classifica, mas que continuamente realoca os atores sociais, enseja a própria manipulação da taxonomia. E as regras que presidem tais mudanças acabam por desvendar sofisticados jogos de poder. Destaque para o pungente capítulo de Robin Sheriff e para o refinamento das idéias de Vincent Crapanzano. O que decididamente aparta os dois trabalhos são os sentidos imputados à persistência entre nós das grandes conclusões dos estudos promovidos pela Unesco, a saber: 1) é impossível apreender as relações raciais no Brasil elidindo-se as relações de classe; 2) a classificação racial brasileira é, mais do que complexa, ambígua, pois está baseada não apenas em traços fenotípicos, mas também na posição social de cada um; 3) a "democracia racial" é mais ideologia do que fato, havendo forte correlação entre raça e classe, com os mais escuros ocupando a base da pirâmide social -e, os mais claros, o seu topo. Com honestidade intelectual, Guimarães vai fundo nos meandros da terceira conclusão e inova, buscando redefini-la em prol de uma perspectiva assumidamente racialista das classes no Brasil. Para começar, e com conhecimento de causa, ele restabelece a paternidade ao termo "democracia racial", criado não por Gilberto Freyre (1900-1987), como vulgarmente se imagina, mas sim por Roger Bastide [sociólogo francês (1898-1974)", em artigo no "Diário de S. Paulo" de 31 de março de 1944. Para além disso, sua análise busca alargar a noção marxista de classe, restituindo os elementos não-econômicos dela originalmente quitados, no intuito de demonstrar que, em um sistema baseado na apropriação diferenciada dos recursos, como o capitalismo, o preconceito racial resulta na reprodução de posições de classe.

Ideologia
Coerente com esse ponto de vista, "Classes, Raças e Democracia" propõe uma provocante releitura do período 1945-64, definindo os sucessivos governos populistas não apenas como expressões de compromisso entre classes, mas também entre raças. Eis o mote para que a ideologia da democracia racial surja como expressão de um pacto econômico e político a unir os trabalhadores urbanos e intelectuais (ambos negros) com as elites gestoras do projeto desenvolvimentista.
A variável flutuante do modelo sociológico proposto é representada pelas classes sociais, e não pelo componente tipicamente racial da sociedade. Ora, sabe-se que desde a época colonial o sistema classificatório vigente no Brasil faculta aos atores sociais a real possibilidade de mudança de cor -fato impensável no âmbito das relações entre as raças nos EUA, por exemplo.
Por isso creio ser capital ao inovador "approach" de Guimarães uma demonstração mais convincente de que "raça" e "cor" -tal como ambas aparecem, respectivamente, nos cotidianos anglo-saxão e brasileiro- constituam de fato noções intercambiáveis.


Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).


Classes, Raças e Democracia
232 págs., R$ 24,00 de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3816-6777).

Raça como Retórica
462 págs., R$ 45,00 Yvonne Maggie e Cláudia Rezende (orgs.). Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).



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