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Para a socióloga e psicanalista inglesa Juliet Mitchell, a situação da criança
deve ser a principal preocupação das feministas na atualidade
A luta permanente
por Maria Lúcia Pallares-Burke
No mundo europeu e norte-americano, Juliet
Mitchell não necessita de nenhuma apresentação. Intelectual de ponta desde os anos 60,
quando tomou parte ativa no influente movimento da "New Left" (Nova Esquerda), Mitchell é uma
figura obrigatória em programas culturais da rádio e televisão britânicas que requeiram erudição e espontaneidade. Sua liderança em assuntos feministas e psicanalíticos é também inconteste. Sua vasta obra, que inclui livros seminais e internacionalmente famosos como "Women - The Longest Revolution" (Mulher - A
Mais Longa Revolução), "Women's Estate" (O Território da Mulher) e "Psychoanalysis and Feminism" (Psicanálise e Feminismo), se destacou desde sempre por
uma inusitada abrangência e interdisciplinaridade que
impressiona historiadores, antropólogos, sociólogos e
críticos literários do mais alto gabarito.
A versatilidade de Mitchell fica evidente quando se
observa sua trajetória profissional. Tendo iniciado sua
carreira na década de 60 como professora de literatura
na Universidade de Leeds e na de Reading, tornou-se,
desde os anos 70, uma das mais renomadas psicanalistas britânicas, voltando recentemente ao mundo universitário como professora de "gênero e sociedade" no
departamento de ciências políticas e sociais da Universidade de Cambridge.
"Mad Men and Medusas" (Loucos e Medusas), o livro
de Juliet Mitchell recém-publicado pela Penguin (Inglaterra), traz todas as marcas da versatilidade, brilhantismo e originalidade da autora. Valendo-se de sua prática
psicanalítica e apoiando-se amplamente em literatura,
antropologia, história e filosofia, Mitchell enfrenta a seguinte questão: por que a histeria desapareceu como
diagnóstico se os sintomas de histeria estão tão presentes entre nós? Seu vívido e convincente insight é que esse desaparecimento se deu tão logo ficou evidente que
os homens também podem ser acometidos de histeria.
A própria origem da palavra, que vem do grego "hustera" (útero), revela como a doença esteve tradicionalmente associada ao gênero feminino. Não é de admirar,
portanto, que foi desconcertante descobrir, durante a
Primeira Guerra Mundial, que muitos combatentes
manifestavam claros sintomas dessa doença supostamente feminina. "A necessidade de os homens não serem femininos determinou a morte da histeria como
diagnóstico", afirma Mitchell, que recebeu a Folha para
a entrevista a seguir em seu apartamento no Jesus College, da Universidade de Cambridge.
A senhora se considera uma pessoa representativa dos
contestadores anos 60, e de 68 em particular?
Não, pois aos 21 anos de idade fui contratada como
professora-assistente da Universidade de Leeds e,
portanto, em 68 já estava na ativa havia seis anos.
Desde 1963 já escrevia sobre questões femininas, e
meu livro "Women - The Longest Revolution" já fora publicado em 66. Na verdade, eu sou da geração
que fez 68 e não tanto da geração que o "sofreu", que
o experimentou. Diria, pois, que as idéias políticas e
as questões morais que me moviam eram muito
mais dos anos 40 e 50 do que dos anos 60 e que meus
valores mais profundos são pré-60.
Em outras palavras, pertenço à geração que se formou nos anos 40 e 50 e que fez os anos 60, em parte
porque estava zangada com a década anterior. Na
verdade, a importância da guerra para minha geração não deve ser minimizada. Acho que começamos
o movimento feminista porque nossas mães (e as
mulheres, em geral) trabalhavam durante a guerra e
depois voltaram para casa. Ao mesmo tempo, havia
uma ausência de figuras paternas durante nossa infância. O fato de nunca ter conhecido meu pai não
era nada excepcional naquela época, pois o número
de crianças cujos pais nunca voltaram da guerra era
enorme. Devido a essas circunstâncias tão peculiares
dos anos 40, nós (meninas e meninos) vivíamos em
grande igualdade, sem qualquer demarcação significativa entre nossos mundos.
Diria, pois, que foi essa experiência igualitária que a fez
feminista?
Acho que foi, na verdade, o choque de descobrir tardiamente quais eram as convenções sociais para as
mulheres. Em certo sentido, diria que não me tornei
feminista, mas que nasci feminista. Levei muito tempo para decidir me descrever como feminista e o fiz
mais por uma questão de tática do que de princípio.
Como Simone de Beauvoir (1908-1986), não acreditava somente em mulheres e não achava que deveria
trabalhar exclusivamente com elas em mente. Criei-me, como disse, numa atmosfera muito igualitária,
não no que diz respeito à raça ou à classe social (pois
é inegável que não havia crianças negras no nosso
ambiente de classe média inglesa), mas seguramente
igualitária no que diz respeito a questões de gênero.
Não nos ocorria que não pudéssemos consertar uma
tomada ou trocar um pneu pelo fato de sermos meninas. No nosso entender, as diferenças sexuais equivaliam às diferenças da cor de cabelo. Acreditávamos que,
assim como se tinha cabelos pretos ou loiros, se era homem ou mulher, essa diferença não implicava nenhuma classificação nem determinava futuros diferentes
para um ou outro sexo. Foi um choque descobrir, já na
universidade, que o mundo era organizado ao redor de
diferenças de gênero; que havia, por exemplo, 1 mulher
para cada 12 homens em Oxford.
Assim, o que soou nos anos 60 como sendo um protesto era, na verdade, menos um protesto e muito mais
uma reação de surpresa diante de uma realidade insuspeita, que gerou em mim o desejo de estudar as causas
da discriminação contra a mulher.
Em 1986 a senhora publicou suas reflexões sobre 20 anos
de feminismo. Agora, após mais de 30 anos do movimento de libertação da mulher, seu sentimento é de desapontamento ou satisfação diante das realizações do movimento que ajudou a fundar? Até que ponto, no seu entender, a batalha já foi ganha?
Acho que muito foi conseguido e talvez possa ser dito que a mudança na situação das mulheres tenha sido uma das mais importantes mudanças ocorridas
no mundo durante o século 20. É inegável que muitas atitudes discriminatórias em relação às mulheres,
que vigoravam até os anos 60, já foram superadas,
pelo menos no Ocidente. Mas, evidentemente, as soluções não ocorrem da noite para o dia, e a legislação
que determina muitas dessas mudanças nem sempre é obedecida. Mas há também a questão de que
nem todas as mudanças foram para melhor.
Na verdade, não acho que essa seja uma das batalhas que se possa ganhar definitivamente, mas que
envolve, sim, uma luta mais ou menos permanente.
A questão da maternidade, por exemplo, está aí a
exigir muita atenção. A "segunda onda" feminista
provocou um declínio na maternidade e hoje em dia
temos uma geração que não quer mais ter filhos.
Vejo, por exemplo, o caso da Itália! Há, sem dúvida, uma cumplicidade entre mudanças econômicas
e feminismo por trás da diminuição da taxa de natalidade, mas o feminismo precisa repensar criticamente essa questão em termos de uma valorização
da humanidade, de uma política de valorização da
criança. A geração pós-Thatcher vive num mundo
de grande individualismo, dominada pela ideologia
do ego, e é fácil compreender que não se dê ao trabalho de ter filhos.
A questão deve ser repensada, no meu entender,
não necessariamente em termos de uma família convencional, de pai e mãe, mas talvez em termos de famílias mais amplas, comunitárias. Isso porque não
podemos nos esquecer de que a separação e o divórcio estão definitivamente na agenda, o que é compreensível. Há 150 anos, a longevidade das pessoas
determinava que o casamento durasse em média 15
anos. Hoje em dia, se alguém se casa aos 20 e poucos
anos, a possibilidade de estar casado por mais de 60
anos é muito grande. Nesse quadro, a probabilidade
do divórcio é altíssima, o que é sempre algo muito
sério e doloroso para as crianças.
Precisamos, pois, pensar não somente numa boa
legislação para lidar com essa questão, mas também
numa cultura que reflita sobre como evitar que as
crianças sejam vítimas dessa situação. Cabe, pois, ao
movimento feminista colocar novamente a criança
no centro de suas preocupações.
Essa seria sua mensagem à nova geração de feministas?
Sim! Não pensem nas mulheres, não pensem nos homens; pensem nas crianças!
A idéia corrente de que estamos vivendo numa era pós-feminista lhe parece, portanto, equivocada?
Sim, pois não há como fazer desaparecer as questões
feministas ou, se preferir, de gênero. Essas questões
podem estar mais ou menos na moda, mas não podem desaparecer enquanto houver tópicos a serem
estudados. O que uma quantidade enorme de bons
trabalhos tem mostrado é que, quando se aborda
qualquer questão -seja ela histórica, sociológica,
geográfica etc.- a partir de uma perspectiva de gênero, ela adquire outro sentido. Ou seja, como um
modo de análise, uma metodologia, gênero é uma
categoria que nos faz pensar de modo diferente sobre qualquer tema.
Não acha que o movimento feminista padece de um certo
etnocentrismo?
Acho que sim, pois partimos de uma dada situação
histórica da qual, muitas vezes, não nos damos conta. Fica muito evidente esse etnocentrismo quando
pensamos na questão do véu das muçulmanas. Em
primeiro lugar, esquecemos que durante séculos as
ocidentais também usavam véus como uma espécie
de tela protetora quando queriam privacidade.
Quando, no entanto, se trata de criticar o uso de
véu nas culturas muçulmanas, nossa análise parte do
pressuposto de que o véu existe porque a mulher deve ser modesta, sua sexualidade deve ser suprimida,
seu corpo deve ser velado e só ser visível ao marido.
Mas isso é verdade só em parte, pois, de outro lado,
as mulheres são consideradas muito sensuais, o que
é muito diferente de nossa visão, fortemente marcada pela tradição puritana. Achamos, então, que as
mulheres muçulmanas são proibidas de manifestar
sua sexualidade e que a função do véu é impedir
qualquer expressão possível. Mas, na verdade, exatamente porque a sexualidade das mulheres é tão
abundante na cultura muçulmana que o véu existe.
Quero dizer que a vestimenta e o véu não são, em si
mesmos, castradores; podem ser também expressão
de emancipação. As mulheres podem, por exemplo,
se manter veladas porque assim usufruem de mais
liberdade em suas situações históricas específicas.
Assim, o importante é contextualizar o feminismo e
estarmos abertos para significados que podem ser
totalmente alheios ao nosso padrão ocidental.
Se os países ocidentais não devem impedir casamentos
arranjados porque são costumes válidos em outras culturas, o que dizer de práticas violentas como a clitoridectomia (retirada do clitóris)? Devemos também aceitá-las?
Não chegaria a esse extremo, mas há evidentemente
questões que devemos considerar a esse respeito, especialmente quando temos a pretensão de ser uma
sociedade multicultural. No caso de casamentos arranjados, não devemos nos esquecer de que nós
mesmos tínhamos esse costume até alguns séculos
atrás e que entre a nobreza e a classe alta essa é uma
prática ainda comum. Além disso, podemos dizer
que, num certo sentido, esse costume é equivalente
ao que nós, no Ocidente, já internalizamos, ou seja,
nossa escolha de um parceiro não pode ser vista como sendo totalmente livre. Ela é, no mínimo, definida por classe, pois internalizamos essa prática sem
nos darmos conta. É por isso que geralmente não
nos sentimos atraídos por aqueles pelos quais não
deveríamos nos sentir atraídos.
Mas, dito isso, acredito que deva haver um certo
controle, uma certa proteção que garanta que as pessoas que hoje têm casamentos arranjados efetivamente os aceitem por livre escolha. Não podemos
chegar a outro país e dizer que eles não podem ter casamento arranjado, mas, quando se trata de transportar esse costume para o nosso país, devemos ter
algum controle que proteja os que se sintam coagidos.
Quanto à clitoridectomia, muitas feministas diriam que isso é um mal absoluto, tão absoluto quanto a escravidão. Eu, no entanto, diria que cabe a nós,
em nossa sociedade, proteger as crianças que não
podem dar seu consentimento para essa prática;
mas quanto aos adultos, não podemos impedir que
se submetam a ela, se for de sua escolha. Quanto à
violência desse costume, não podemos nos esquecer
de que no Ocidente praticamos a circuncisão, que
também implica violência, como se fosse algo totalmente natural. A única forma de causar algum impacto entre os americanos que abominam a clitoridectomia é lembrá-los de que essa prática não difere
muito da circuncisão.
Quão importante foi Louis Althusser (1918-1990) para
seu desenvolvimento intelectual?
Descobri Althusser quando lia Sartre e estava envolvida, com a "New Left", na criação de um grande
centro cultural em Londres, um centro cultural socialista que acabou nunca se concretizando, apesar
de termos obtido o apoio e a colaboração de várias
personalidades de esquerda da época. Para mim, Althusser significou uma mudança de foco fundamental no meu esforço de pensar a questão da diferenciação dos gêneros que estava começando a notar na
sociedade. Sua ênfase na ideologia, em vez de no determinismo econômico, me ajudava a ver que aquela
diferenciação, em vez de ser fundamentalmente determinada pelas estruturas, era uma construção
ideológica e psicológica profundamente internalizada na sociedade. As questões que então me colocava
discuti em 66 em "Women -The Longest Revolution": "Por quê, enquanto seres humanos, pensamos
em termos de gênero? Por que me penso como mulher em vez de branca ou baixa ou alta etc.?". Elas foram tratadas com o aparato conceitual que encontrei
em Althusser.
A senhora é vista como uma das fundadoras do influente movimento dos anos 60 conhecido como "New Left" e
da contestadora revista "New Left Review". Qual foi, no
seu entender, a importância dessas duas iniciativas?
Esse movimento, que na verdade englobava várias
coisas, como, por exemplo, uma revista ("New Left
Review"), um clube do livro ("New Left Book Club")
e vários clubes pela Inglaterra ("New Left Clubs"),
havia sido criado por pessoas que deixaram o Partido Comunista em 56, como E.P. Thompson e Raymond Williams. No início dos anos 60, no entanto,
um grupo mais jovem, encabeçado por Perry Anderson e Raphael Samuel tomou a liderança e o movimento adquiriu maior importância. A experiência
que aí tive se tornou tão parte de mim que não me é
muito fácil vê-la com a necessária perspectiva e falar
objetivamente sobre essas instituições que foram tão
importantes nos anos 60 e 70.
Desde Oxford, eu era muito próxima desse grupo
mais jovem e, quando me casei, em 62, com Perry
Anderson (que já dirigia a "New Left Review"), casa
e trabalho praticamente se confundiram. As reuniões da "New Left Review", por exemplo, eram feitas na nossa sala de jantar e eu e Perry fazíamos muitos trabalhos de edição durante a noite.
Pessoalmente, sentia-me, por assim dizer, dividida
entre os dois grupos do movimento. Intelectualmente estava muito mais próxima do grupo mais jovem e de sua conexão com a "intelligentsia" francesa, o que era renegado por Thompson e outros pioneiros da "New Left". Mas pessoalmente me afinava
mais com a velha-guarda que havia sido ativa, como
minha mãe, na Campanha do Desarmamento Nuclear dos anos 50, e que se filiava a uma tradição britânica socialista-anarquista. Na questão de gênero,
também, a velha-guarda era muito mais igualitária
do que os jovens da alta burguesia que assumiram a
liderança do movimento, muitos deles educados em
escolas de elite, como Perry, por exemplo, que estudou em Eton.
O envolvimento da "New Left" com o Terceiro
Mundo era evidentemente muito forte, e fazia parte
de seu projeto que cada membro do grupo desenvolvesse um estudo sobre um determinado setor. Alguém, por exemplo, ficou com a Argélia; Perry escolheu o colonialismo português; e eu decidi falar sobre as mulheres. A reação do grupo foi, em geral, negativa, argumentando que isso não constituía verdadeiramente um tema. Foi por isso que decidi demonstrar que, se na verdade esse tema não podia ser
entendido em termos de exploração de classe, podia,
no entanto, ser entendido em termos de opressão. É
o que tentei fazer em "Women - The Longest Revolution".
Durante grande parte de sua vida profissional a senhora
se dedicou à psicanálise. Diria que essa foi uma consequência natural de suas antigas preocupações feministas ou, ao contrário, significou uma ruptura?
Diria que fui buscar na psicanálise uma espécie de
complemento para o quadro conceitual que encontrara em Althusser para pensar a diferenciação entre
os gêneros. Minha questão era ainda a de saber o que
é responsável pela diferença sexual, além dos dados
biológicos e sociológicos, já que não achava que, por
exemplo, o fato de dar bonecas ou tábuas de passar
roupa às meninas e trens aos meninos podia explicar
aquela diferenciação num nível mais profundo.
Pensei, então, em ler alguns artigos de Freud sobre
a questão da feminilidade, mas acabei passando o
verão lendo toda sua obra e, a partir daí, escrevi
"Psychoanalysis and Feminism". No entanto, reconhecendo que não podia ir muito adiante simplesmente lendo Freud, decidi me tornar psicanalista.
Fui aceita pelo Instituto de Psicanálise de Londres no
início dos anos 70, mas sob a condição de adquirir
alguma experiência clínica em trabalho pago. Dentre
todos os empregos que tive, esse foi o mais difícil de
conseguir!
Até então, desde os 21 anos, só havia sido professora universitária de literatura. Candidatei-me a inúmeros empregos de enfermagem psiquiátrica no nível mais baixo, pois não tinha qualificação, mas não
era aceita por nenhum, nem sequer era chamada para entrevista. Ocorreu-me, então, que no momento
em que tomavam conhecimento de minha qualificação, eu devia lhes parecer suspeita.
Assim, decidi omitir minha experiência profissional e consegui imediatamente um emprego noturno
como auxiliar de enfermagem de um hospital psiquiátrico, o St. Pancras Acute Admissions Psychiatric Ward, em Londres. Foi assim que me preparei
para iniciar essa nova carreira. Tornei-me psicanalista, mas não uma psicanalista feminista, o que, no
meu entender, não faz sentido.
Poderia falar um pouco sobre os objetivos de seu último
livro?
"Mad Men and Medusas" é o resultado de 25 anos de
meu trabalho como psicanalista, mas também envolve uma perspectiva feminista. Enquanto feminista, me interessei desde os anos 70 em saber por que
as feministas consideravam a histeria feminina como sendo, por assim dizer, um protofeminismo. Argumentavam que, antes de haver um movimento
político propriamente feminista, era necessário haver um protesto pessoal, e aí é que entrava a histeria.
Ora, trabalhando como psicanalista, interessei-me
por descobrir por que a histeria desapareceu como
diagnóstico clínico durante este século, quando foi
substituída por "personalidade histriônica". Sim,
pois a histeria praticamente desapareceu como assunto de estudo e, desde os anos 50, não mais consta
dos manuais de diagnósticos aceitos pelos esquemas
de seguro de saúde nos EUA. Essa questão pode ter
várias explicações, mas me intrigou especialmente o
fato de que é exatamente quando a histeria deixa de
ser vista como uma doença essencialmente feminina
e se confirma a existência de histeria masculina que
ela começa a desaparecer como diagnóstico. Esse é
um dos temas principais do livro.
Está propondo uma nova definição de histeria?
Cruzando diversas fontes culturais fornecidas pela
antropologia e psicanálise, procuro mostrar que a
histeria é uma potencialidade humana, uma possibilidade universal que pode se atualizar em qualquer
um dos seres humanos e se manifestar de várias formas. Faz parte, pois, da condição humana. Em alguns casos, o indivíduo fica histérico por toda a sua
vida. Em outros, algum evento provoca uma resposta histérica por um período determinado, após o que
ela é superada. No meu entender, isso se relaciona ao
fato de que num determinado momento de nossa
história mental nós nos sentimos totalmente destronados ou deslocados por nossos irmãos ou seus
substitutos.
Nesse ponto é que eu critico a psicanálise e a psicologia em geral, que têm focalizado os relacionamentos verticais entre crianças e pais, por exemplo, e se
esquecido dos relacionamentos horizontais entre irmãos e irmãs ou seus equivalentes. Ambos são cruciais para o nosso desenvolvimento. Existem, nos últimos tempos, terapias de casais e de família, ou seja,
terapias horizontais, mas não existem teorias horizontais que levem em conta os relacionamentos entre irmãos, entre iguais. Proponho, pois, não tanto
um novo tratamento, mas um novo foco de atenção
no tratamento psicanalítico, lembrando que, se não
atentarmos para esses relacionamentos horizontais,
estaremos desconsiderando dados cruciais nos relacionamentos humanos, como é o intenso impacto
dos ciúmes e da rivalidade entre irmãos.
Algumas vezes a senhora se refere às feministas como se
não fosse uma delas. Poderia esclarecer sua posição?
Suponho que causo essa impressão porque não acredito que alguém possa se identificar totalmente com
uma posição. Diria que posso ter uma posição feminista em certas questões e não tê-la em outras. Não
acredito, por exemplo, que a questão das mulheres
seja prioritária em todos os contextos. Há muitas
ocasiões em que outras causas devem vir primeiro,
como, por exemplo, a das crianças refugiadas de Kosovo. Por outro lado, sou inteiramente feminista no
sentido de que acho que há sempre uma questão sobre as mulheres, há sempre uma perspectiva de gênero em qualquer situação. Com a ressalva de que se
essa perspectiva deve ser levada em conta, ela não é
sempre necessariamente a prioritária.
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora de história da educação na Faculdade de Educação da USP e autora, entre outros, de
"The Spectator - O Teatro das Luzes (Hucitec) e "As Muitas Faces da
História - Nove Entrevistas", que está saindo pela editora Unesp.
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