São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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A equação da diferença

"A Ilha Deserta" traz textos de intervenção de Deleuze publicados entre 1953 e 74

EVANDO NASCIMENTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Ilha Deserta" é uma coletânea de textos de Gilles Deleuze, publicados esparsamente entre 1953 e 1974, e reunidos na França por David Lapoujade.
No Brasil ficaram sob os cuidados do especialista Luiz Orlandi, que se encarregou de selecionar um naipe de tradutores, incluindo outros grandes leitores deleuzianos, como Peter Pál Pelbart, Roberto Machado e Daniel Lins. Temas fundamentais de Deleuze, como política, arte e esquizofrenia, comparecem como linhas de força nesses artigos, entrevistas, resenhas, prefácios, depoimentos e conferências. São, portanto, sobretudo textos de intervenção, perfazendo uma das tarefas mais essenciais ao intelectual.
Não apenas no caso de Deleuze mas também no de todos os que ficaram conhecidos como "pensadores da diferença", que muitas vezes se tornaram protagonistas e/ou interlocutores diretos dos acontecimentos sobre os quais refletiram -tais como o advento do estruturalismo no final dos anos 50 e a grande virada no campo das mentalidades e instituições que significou o Maio de 68.
Para Foucault, Derrida, Deleuze, Lyotard, Barthes, entre outros, pensar nunca foi somente o ato acadêmico de dar aulas e escrever livros. Daí o profundo mal-estar que geraram, dentro e fora da universidade, por não aceitarem o papel previsível de uma reflexão desvinculada do momento histórico, sem no entanto resvalarem num empirismo inócuo.

O lugar da separação
É fascinante que o volume de Deleuze abra com um belíssimo texto inédito de 1953, que dá título ao conjunto: "Causas e Razões da Ilha Deserta".
A ilha deserta é o lugar da separação como condição para o movimento que consiste em reinventar o mundo, a partir não de uma impossível tábula rasa, mas das condições provisórias de isolamento que toda ilha oferece.
É nesse ponto imaginário -e por isso mesmo inaudito- que a literatura e a filosofia começam, já se dando como diferença e repetição, singularidade e série. E aí também principia a obra magnífica de Deleuze, uma ilha à deriva, porém sempre conectada ao continente.
Vale tirar proveito da duplicidade do termo "semiologia" (ciência dos signos e parte da medicina que cuida dos sintomas) para entender como a filosofia deleuziana se propõe a ser uma "clínica". Trata-se de ler os "sintomas" da cultura para fazer funcionar a máquina do pensamento, em que o filósofo se torna duplo do artista, em lugar do médico.
Ou seja, a clínica filosófica (e artística) se investe como recriação da vida, ali onde os sintomas emergem como nódulos do que ainda não foi pensado, efetuando-se assim uma crítica efetiva da moral: "O artista é um sintomatologista". Lembro de uma passagem em que Roland Barthes desenvolve idéias convergentes, em "A Aventura Semiológica".
Uma discussão que não envelheceu levantada por Deleuze e seu parceiro de diversos livros, Félix Guattari, é sobre o lugar do psicanalista como reprodutor das convenções sociais e o convite que lhe é feito para que dê voz ao paciente -ao invés de utilizá-lo como mero objeto de clínica convencional ou de uma teoria que fala em nome do outro, sem de fato levá-lo em consideração.

Diálogo com Foucault
Questão correlata aparece no importante diálogo que Deleuze entretece com o amigo Michel Foucault, em 1972. Para ambos, o intelectual jamais deveria se arrogar como representante das massas, pois um dos modos de desafiar o poder é evidenciar a fala reprimida do outro (doente, prisioneiro, operário) como potencialmente criadora e libertária.
Numa mesa-redonda naquele mesmo ano, Guattari resume o problema político: "Os dirigentes traem!". Frase infelizmente de enorme atualidade.
Deleuze expressa também seu horror à fixação em determinados conceitos, os quais deveriam ser vistos como ferramentas, e não como objetos de fetiche, pois "as palavras são substitutos possíveis ao infinito". Avulta a força do pensador nômade, aquele que se desloca para não ser fixado na imago que dele se espera. Sem isso, não há re-invenção -nem de si nem do mundo.

EVANDO NASCIMENTO é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de, entre outros, "Derrida e a Literatura" (EdUFF).


A ILHA DESERTA
Autor: Gilles Deleuze
Organização: David Lapoujade
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 53 (384 págs.)



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