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A equação da diferença
"A Ilha Deserta" traz textos de intervenção de Deleuze publicados entre 1953 e 74
EVANDO NASCIMENTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A Ilha Deserta" é uma
coletânea de textos
de Gilles Deleuze,
publicados esparsamente entre 1953 e
1974, e reunidos na França por
David Lapoujade.
No Brasil ficaram sob os cuidados do especialista Luiz Orlandi, que se encarregou de selecionar um naipe de tradutores, incluindo outros grandes
leitores deleuzianos, como Peter Pál Pelbart, Roberto Machado e Daniel Lins.
Temas fundamentais de Deleuze, como política, arte e esquizofrenia, comparecem como linhas de força nesses artigos, entrevistas, resenhas, prefácios, depoimentos e conferências. São, portanto, sobretudo textos de intervenção, perfazendo uma das tarefas mais
essenciais ao intelectual.
Não apenas no caso de Deleuze mas também no de todos
os que ficaram conhecidos como "pensadores da diferença",
que muitas vezes se tornaram
protagonistas e/ou interlocutores diretos dos acontecimentos sobre os quais refletiram
-tais como o advento do estruturalismo no final dos anos 50
e a grande virada no campo das
mentalidades e instituições
que significou o Maio de 68.
Para Foucault, Derrida, Deleuze, Lyotard, Barthes, entre
outros, pensar nunca foi somente o ato acadêmico de dar
aulas e escrever livros. Daí o
profundo mal-estar que geraram, dentro e fora da universidade, por não aceitarem o papel previsível de uma reflexão
desvinculada do momento histórico, sem no entanto resvalarem num empirismo inócuo.
O lugar da separação
É fascinante que o volume de
Deleuze abra com um belíssimo texto inédito de 1953, que
dá título ao conjunto: "Causas e
Razões da Ilha Deserta".
A ilha deserta é o lugar da separação como condição para o
movimento que consiste em
reinventar o mundo, a partir
não de uma impossível tábula
rasa, mas das condições provisórias de isolamento que toda
ilha oferece.
É nesse ponto imaginário -e
por isso mesmo inaudito- que
a literatura e a filosofia começam, já se dando como diferença e repetição, singularidade e
série. E aí também principia a
obra magnífica de Deleuze,
uma ilha à deriva, porém sempre conectada ao continente.
Vale tirar proveito da duplicidade do termo "semiologia"
(ciência dos signos e parte da
medicina que cuida dos sintomas) para entender como a filosofia deleuziana se propõe a
ser uma "clínica". Trata-se de
ler os "sintomas" da cultura para fazer funcionar a máquina
do pensamento, em que o filósofo se torna duplo do artista,
em lugar do médico.
Ou seja, a clínica filosófica (e
artística) se investe como recriação da vida, ali onde os sintomas emergem como nódulos
do que ainda não foi pensado,
efetuando-se assim uma crítica
efetiva da moral: "O artista é
um sintomatologista". Lembro
de uma passagem em que Roland Barthes desenvolve idéias
convergentes, em "A Aventura
Semiológica".
Uma discussão que não envelheceu levantada por Deleuze e
seu parceiro de diversos livros,
Félix Guattari, é sobre o lugar
do psicanalista como reprodutor das convenções sociais e o
convite que lhe é feito para que
dê voz ao paciente -ao invés de
utilizá-lo como mero objeto de
clínica convencional ou de uma
teoria que fala em nome do outro, sem de fato levá-lo em consideração.
Diálogo com Foucault
Questão correlata aparece no
importante diálogo que Deleuze entretece com o amigo Michel Foucault, em 1972. Para
ambos, o intelectual jamais deveria se arrogar como representante das massas, pois um
dos modos de desafiar o poder é
evidenciar a fala reprimida do
outro (doente, prisioneiro, operário) como potencialmente
criadora e libertária.
Numa mesa-redonda naquele mesmo ano, Guattari resume
o problema político: "Os dirigentes traem!". Frase infelizmente de enorme atualidade.
Deleuze expressa também
seu horror à fixação em determinados conceitos, os quais deveriam ser vistos como ferramentas, e não como objetos de
fetiche, pois "as palavras são
substitutos possíveis ao infinito". Avulta a força do pensador
nômade, aquele que se desloca
para não ser fixado na imago
que dele se espera. Sem isso,
não há re-invenção -nem de si
nem do mundo.
EVANDO NASCIMENTO é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de, entre
outros, "Derrida e a Literatura" (EdUFF).
A ILHA DESERTA
Autor: Gilles Deleuze
Organização: David Lapoujade
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 53 (384 págs.)
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