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Hamlet e o universo infinito
A mais importante tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare propõe uma cosmologia científica que confronta duas visões de mundo no século 16
RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS
MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Shakespeare viveu numa época de grandes
agitações intelectuais.
Uma delas, a revolução astronômica, que
iria alterar completamente a
cosmovisão do Universo conhecido, já estava a caminho.
Uma das principais contribuições científicas da época,
iniciou-se com a publicação da
obra "De Revolutionibus Orbium Coelestium" (Sobre a Revolução dos Corpos Celestes,
de 1543), do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), cujo modelo de universo, colocando o Sol no centro
do sistema do mundo conhecido em lugar da Terra, deslocou
a humanidade de sua posição
privilegiada.
As referências à astronomia
na obra de Shakespeare devem
ser apreciadas não só como
uma descrição da máquina do
mundo preconizada pela visão
geocêntrica de Cláudio Ptolomeu [astrônomo do século 2º
d.C.] mas como o momento de
uma mudança -ou transformação no ponto de vista-, de
questionar os dois modelos de
cosmo que se defrontavam.
Nova ordem universal
Realmente, em princípios de
1601, Shakespeare antecipou a
nova ordem universal, assim
como a posição da humanidade, no novo contexto de universo heliocêntrico de Copérnico.
Com efeito, ao ler o grande
bardo inglês, especialmente a
sua peça "Hamlet", é possível
detectar os argumentos e descrições alegóricas da competição entre dois modelos cosmológicos: o universo heliocêntrico infinito do astrônomo inglês
Thomas Digges (cerca de 1546-1595) e o modelo geocêntrico
híbrido do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), que mantinha o Sol no
centro do Universo com a condição de que o Sol e a Lua girassem ao redor da Terra.
Na época em que Shakespeare viveu, o velho modelo geocêntrico do Universo, aperfeiçoado por Ptolomeu na obra
"Almagesto", era a concepção
do cosmo conhecida mais aceita universalmente. Por volta de
1540, além de informar ao
mundo científico a concepção
heliocêntrica ao publicar "Narratio Prima", três anos antes da
morte de Copérnico, Georg
Rheticus só voltou para a universidade de Wittemberg depois de concluir o livro do seu
mestre polonês.
Esfera de cristal
Em 1551, as idéias copernicanas já haviam sido introduzidas
na Inglaterra, graças às obras
de Digges, um dos grandes defensores do modelo heliocêntrico, que 25 anos mais tarde
descreveu seu próprio modelo
de universo na obra "A Perfit
Description Of The Caelestial
Orbes" (Uma Descrição Perfeita dos Corpos Celestes, 1576).
Todos os modelos anteriores
ao de Digges continham uma
esfera de cristal onde as estrelas estariam incrustadas, constituindo o Paraíso e o chamado
"Primo Mobile".
Para Digges, todas as estrelas
eram semelhantes ao Sol e estavam distribuídas no universo
infinito. Essa visão revolucionária eliminou a esfera exterior
de estrelas, substituindo-a por
um espaço infinito ocupado
por estrelas.
Apesar de ter estudado em
Wittemberg, Tycho Brahe defendeu um modelo geoeliocêntrico no qual o Sol e a Lua giravam ao redor da Terra, enquanto os outros planetas orbitavam
em torno do Sol.
Tycho vivia na ilha de Hven,
no estreito de Oresund, onde
construiu seu observatório -o
Uraniburgo-, na mesma época
em que o rei da Dinamarca
construiu o castelo de Helsingor nas vizinhanças.
Em 1590, o inglês Thomas
Savile recebeu uma carta de
Tycho para ser entregue a Digges. Nessa carta, Tycho sugeriu
que um excelente poeta inglês
compusesse uma epigrama para o seu trabalho. Enviou também quatro cópias de um retrato dele com os dos seus tataravôs Sophie Gyldenstierne e
Erik Rosenkrantz.
Shakespeare, além de ser íntimo da família de Digges, deve
ter, provavelmente, lido a carta
de Tycho e visto o retrato, tendo escolhido os nomes Rosencrantz e Guildenstern para personagens da peça "Hamlet",
onde representavam o geoeliocentrismo tychoniano.
Enquanto o rei da Dinamarca, Claudius, constituía uma referência a Cláudio Ptolomeu,
Hamlet personificava o modelo
do universo infinito de Digges.
O Elsinore em "Hamlet" é designado como o palácio do rei
da Dinamarca, Helsingor, onde
ocorre a peça e onde a vista do
céu está obstruída.
Rosencrantz e Guildenstern
são contemporâneos de Hamlet assim como Tycho e Digges
foram contemporâneos. Claudius intimou os dois cortesãos a
elaborarem o novo modelo geocêntrico para auxiliar o velho.
Mas logo eles concordam com
os argumentos de Hamlet, que
faz uma eloqüente defesa da
idéia diggesiana de que "poderia viver recluso numa casca de
noz e me considerar rei do espaço infinito".
Estrelas fixas
A casca de noz pode se referir
à esfera das estrelas fixas, onde
supostamente estaria contida
toda a criação nos modelos anteriores, ou à gravura com o retrato de Tycho Brahe, onde sua
imagem está enquadrada dentro de um arco de pedra.
Eventualmente, Claudius
envia Hamlet à Inglaterra com
os dois cortesãos como seguranças, afirmando em carta que
"a morte de Hamlet deveria
ocorrer ainda na Inglaterra".
Na verdade, Shakespeare baseou-se numa antiga lenda dinamarquesa do século 12, relatada por Saxo Grammaticus na
"Historia Danica" [História Dinamarquesa], na qual os dois
cortesãos dinamarqueses foram também assassinados, pois
Hamlet alterou o conteúdo das
cartas que eles levavam. Hamlet acertou primeiro a morte de
Rosencrantz e Guildenstern e,
em seguida, a de Claudius.
Lenda dinamarquesa
Para reconhecer o fato de que
o modelo de Digges é um corolário do de Copérnico, Shakespeare recorreu à lenda dinamarquesa para se ocupar das
atividades de Fortinbras [príncipe norueguês que busca se
vingar da morte do pai atacando a Dinamarca] na Polônia.
Assim, Fortinbras saúda o embaixador inglês e desse modo
unifica os modelos originalmente provenientes da Polônia
e da Inglaterra.
Com o objetivo de alcançar a
verdade, ele falseia a exposição
sobre um tema codificado na
peça de Shakespeare.
O castelo é uma interface entre o castelo interior e o céu.
Um contraste que equipara a
realidade e a aparência, quando
Hamlet sugere que a passagem
do geocentrismo para a visão
de Digges de um universo infinito é a passagem da aparência
à realidade.
Essa nova leitura sugere que
a tragédia de "Hamlet" constitui uma alegoria da competição
entre o modelo cosmológico de
Thomas Digges, da Inglaterra, e
o de Tycho Brahe, da Dinamarca. Foi a astrônoma Cecilia
Payne-Gaposchkin [1900-1979] quem sugeriu ter Shakespeare se referido à teoria heliocêntrica em "Hamlet".
Realmente, em 1970, ela registrou que, durante o século
16, o astrônomo Rheticus, que
teve um papel proeminente na
edição "De Revolutionibus...",
ensinou em Wittenberg, onde
Tycho Brahe estudou, assim
como Hamlet.
No entanto foi Leslie Hotson
quem chamou a atenção para o
fato de que os amigos de Hamlet, Rosencrantz e Guildenstern, tinham o mesmo nome
dos ancestrais de Tycho Brahe,
sugerindo que Shakespeare deve ter retirado esses nomes de
uma gravura com o retrato do
astrônomo dinamarquês enviado à Inglaterra.
Coube ao astrônomo Peter D.
Usher sugerir que Hamlet -ao
lamentar que a "Dinamarca era
uma prisão" em sua declaração
"Oh! Deus. Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me
considerar rei do espaço infinito" ("Hamlet", 2, 2)- estava se
referindo ao universo infinito
defendido por Digges.
Era também uma referência
às idéias difundidas na época
por Giordano Bruno, na Inglaterra -as preleções do padre
dominicano italiano sobre o
universo heliocêntrico infinito
poderiam, sem dúvida, ter estimulado Shakespeare a elaborar
uma tragédia entre os modelos
cósmicos que se opunham naquela época.
Se, por um lado, os modelos
ptolomaico e copernicano aprisionassem a humanidade numa casca de noz cósmica, por
outro lado a extensão visionária do modelo copernicano desenvolvido pelo contemporâneo de Shakespeare, Thomas
Digges, liberava a humanidade
daquela prisão para o espaço
infinito.
É evidente que Shakespeare
não ignorou completamente a
revolução astronômica que
ocorria no século 16. Com efeito, "Hamlet" é uma antecipação da nova ordem universal
assim como da posição que a
humanidade iria ocupar a partir desse século.
Viver numa casca de noz
Além do seu valor literário,
histórico e filosófico, "Hamlet"
possui em contrapartida uma
cosmologia científica não menos significativa.
Enquanto o último ano do século 16 assistiu ao martírio de
Giordano Bruno, o primeiro
ano do século 17 mostrou que o
grande poeta e dramaturgo inglês divulgava o universo infinito das estrelas.
Realmente, Hamlet esteve
em Elsina para visitar sua mãe,
mas sua condolência obstinada
ao rei Claudius destinava ajudar aos amigos Rosencrantz e
Guildenstern.
Depois de sua chegada, Rosencrantz logo argumentou
com Hamlet que "a Dinamarca
é muito limitada para a minha
mente", ao que Hamlet respondeu que poderia viver recluso
numa casca de noz e se considerar rei do espaço infinito.
Se, por um lado, a expressão
"infinity space" é uma referência direta à visão de Digges de
um firmamento totalmente
ocupado por estrelas semelhantes ao Sol, por outro lado, o
recurso às alegorias e às metáforas constitui uma referência
à posição opressiva e ao medo
de perseguição que a inquisição, com relação ao Universo,
fazia na época.
Prisões e execuções
Essa explicação é textualmente defendida por Polônio,
que advoga a prisão de Hamlet
se este não divulgar o sistema
copernicano para a sua mãe.
Evidentemente, Shakespeare
sugeriu uma posição prudente
para o significado de "Hamlet".
No século 16, as prisões e as
execuções foram punições comuns, como o caso bem conhecido da perseguição de Giordano Bruno, condenado por acreditar em um universo infinito.
Shakespeare deve ter tomado
conhecimento da morte de
Bruno em 1600, na época em
que escrevia "Hamlet".
Na realidade, quando Hamlet se refere à nova astronomia,
ele usa a seguinte expressão para o seu melhor amigo: "Há
mais coisa entre o céu e a Terra,
Horácio, do que pode sonhar a
tua filosofia" ("Hamlet", 1, 5).
RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO é
astrônomo e criador do Museu de Astronomia e
Ciências Afins. É autor de mais de 80 livros, como "Astronomia do Macunaíma" (Francisco
Alves) e "Astronomia em Camões" (Lacerda).
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