São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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Hamlet e o universo infinito

A mais importante tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare propõe uma cosmologia científica que confronta duas visões de mundo no século 16

RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Shakespeare viveu numa época de grandes agitações intelectuais. Uma delas, a revolução astronômica, que iria alterar completamente a cosmovisão do Universo conhecido, já estava a caminho.
Uma das principais contribuições científicas da época, iniciou-se com a publicação da obra "De Revolutionibus Orbium Coelestium" (Sobre a Revolução dos Corpos Celestes, de 1543), do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), cujo modelo de universo, colocando o Sol no centro do sistema do mundo conhecido em lugar da Terra, deslocou a humanidade de sua posição privilegiada.
As referências à astronomia na obra de Shakespeare devem ser apreciadas não só como uma descrição da máquina do mundo preconizada pela visão geocêntrica de Cláudio Ptolomeu [astrônomo do século 2º d.C.] mas como o momento de uma mudança -ou transformação no ponto de vista-, de questionar os dois modelos de cosmo que se defrontavam.

Nova ordem universal
Realmente, em princípios de 1601, Shakespeare antecipou a nova ordem universal, assim como a posição da humanidade, no novo contexto de universo heliocêntrico de Copérnico.
Com efeito, ao ler o grande bardo inglês, especialmente a sua peça "Hamlet", é possível detectar os argumentos e descrições alegóricas da competição entre dois modelos cosmológicos: o universo heliocêntrico infinito do astrônomo inglês Thomas Digges (cerca de 1546-1595) e o modelo geocêntrico híbrido do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), que mantinha o Sol no centro do Universo com a condição de que o Sol e a Lua girassem ao redor da Terra.
Na época em que Shakespeare viveu, o velho modelo geocêntrico do Universo, aperfeiçoado por Ptolomeu na obra "Almagesto", era a concepção do cosmo conhecida mais aceita universalmente. Por volta de 1540, além de informar ao mundo científico a concepção heliocêntrica ao publicar "Narratio Prima", três anos antes da morte de Copérnico, Georg Rheticus só voltou para a universidade de Wittemberg depois de concluir o livro do seu mestre polonês.

Esfera de cristal
Em 1551, as idéias copernicanas já haviam sido introduzidas na Inglaterra, graças às obras de Digges, um dos grandes defensores do modelo heliocêntrico, que 25 anos mais tarde descreveu seu próprio modelo de universo na obra "A Perfit Description Of The Caelestial Orbes" (Uma Descrição Perfeita dos Corpos Celestes, 1576).
Todos os modelos anteriores ao de Digges continham uma esfera de cristal onde as estrelas estariam incrustadas, constituindo o Paraíso e o chamado "Primo Mobile".
Para Digges, todas as estrelas eram semelhantes ao Sol e estavam distribuídas no universo infinito. Essa visão revolucionária eliminou a esfera exterior de estrelas, substituindo-a por um espaço infinito ocupado por estrelas.
Apesar de ter estudado em Wittemberg, Tycho Brahe defendeu um modelo geoeliocêntrico no qual o Sol e a Lua giravam ao redor da Terra, enquanto os outros planetas orbitavam em torno do Sol.
Tycho vivia na ilha de Hven, no estreito de Oresund, onde construiu seu observatório -o Uraniburgo-, na mesma época em que o rei da Dinamarca construiu o castelo de Helsingor nas vizinhanças.
Em 1590, o inglês Thomas Savile recebeu uma carta de Tycho para ser entregue a Digges. Nessa carta, Tycho sugeriu que um excelente poeta inglês compusesse uma epigrama para o seu trabalho. Enviou também quatro cópias de um retrato dele com os dos seus tataravôs Sophie Gyldenstierne e Erik Rosenkrantz.
Shakespeare, além de ser íntimo da família de Digges, deve ter, provavelmente, lido a carta de Tycho e visto o retrato, tendo escolhido os nomes Rosencrantz e Guildenstern para personagens da peça "Hamlet", onde representavam o geoeliocentrismo tychoniano.
Enquanto o rei da Dinamarca, Claudius, constituía uma referência a Cláudio Ptolomeu, Hamlet personificava o modelo do universo infinito de Digges. O Elsinore em "Hamlet" é designado como o palácio do rei da Dinamarca, Helsingor, onde ocorre a peça e onde a vista do céu está obstruída.
Rosencrantz e Guildenstern são contemporâneos de Hamlet assim como Tycho e Digges foram contemporâneos. Claudius intimou os dois cortesãos a elaborarem o novo modelo geocêntrico para auxiliar o velho.
Mas logo eles concordam com os argumentos de Hamlet, que faz uma eloqüente defesa da idéia diggesiana de que "poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito".

Estrelas fixas
A casca de noz pode se referir à esfera das estrelas fixas, onde supostamente estaria contida toda a criação nos modelos anteriores, ou à gravura com o retrato de Tycho Brahe, onde sua imagem está enquadrada dentro de um arco de pedra.
Eventualmente, Claudius envia Hamlet à Inglaterra com os dois cortesãos como seguranças, afirmando em carta que "a morte de Hamlet deveria ocorrer ainda na Inglaterra".
Na verdade, Shakespeare baseou-se numa antiga lenda dinamarquesa do século 12, relatada por Saxo Grammaticus na "Historia Danica" [História Dinamarquesa], na qual os dois cortesãos dinamarqueses foram também assassinados, pois Hamlet alterou o conteúdo das cartas que eles levavam. Hamlet acertou primeiro a morte de Rosencrantz e Guildenstern e, em seguida, a de Claudius.

Lenda dinamarquesa
Para reconhecer o fato de que o modelo de Digges é um corolário do de Copérnico, Shakespeare recorreu à lenda dinamarquesa para se ocupar das atividades de Fortinbras [príncipe norueguês que busca se vingar da morte do pai atacando a Dinamarca] na Polônia.
Assim, Fortinbras saúda o embaixador inglês e desse modo unifica os modelos originalmente provenientes da Polônia e da Inglaterra.
Com o objetivo de alcançar a verdade, ele falseia a exposição sobre um tema codificado na peça de Shakespeare.
O castelo é uma interface entre o castelo interior e o céu. Um contraste que equipara a realidade e a aparência, quando Hamlet sugere que a passagem do geocentrismo para a visão de Digges de um universo infinito é a passagem da aparência à realidade.
Essa nova leitura sugere que a tragédia de "Hamlet" constitui uma alegoria da competição entre o modelo cosmológico de Thomas Digges, da Inglaterra, e o de Tycho Brahe, da Dinamarca. Foi a astrônoma Cecilia Payne-Gaposchkin [1900-1979] quem sugeriu ter Shakespeare se referido à teoria heliocêntrica em "Hamlet".
Realmente, em 1970, ela registrou que, durante o século 16, o astrônomo Rheticus, que teve um papel proeminente na edição "De Revolutionibus...", ensinou em Wittenberg, onde Tycho Brahe estudou, assim como Hamlet.
No entanto foi Leslie Hotson quem chamou a atenção para o fato de que os amigos de Hamlet, Rosencrantz e Guildenstern, tinham o mesmo nome dos ancestrais de Tycho Brahe, sugerindo que Shakespeare deve ter retirado esses nomes de uma gravura com o retrato do astrônomo dinamarquês enviado à Inglaterra. Coube ao astrônomo Peter D. Usher sugerir que Hamlet -ao lamentar que a "Dinamarca era uma prisão" em sua declaração "Oh! Deus. Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito" ("Hamlet", 2, 2)- estava se referindo ao universo infinito defendido por Digges.
Era também uma referência às idéias difundidas na época por Giordano Bruno, na Inglaterra -as preleções do padre dominicano italiano sobre o universo heliocêntrico infinito poderiam, sem dúvida, ter estimulado Shakespeare a elaborar uma tragédia entre os modelos cósmicos que se opunham naquela época.
Se, por um lado, os modelos ptolomaico e copernicano aprisionassem a humanidade numa casca de noz cósmica, por outro lado a extensão visionária do modelo copernicano desenvolvido pelo contemporâneo de Shakespeare, Thomas Digges, liberava a humanidade daquela prisão para o espaço infinito.
É evidente que Shakespeare não ignorou completamente a revolução astronômica que ocorria no século 16. Com efeito, "Hamlet" é uma antecipação da nova ordem universal assim como da posição que a humanidade iria ocupar a partir desse século.

Viver numa casca de noz
Além do seu valor literário, histórico e filosófico, "Hamlet" possui em contrapartida uma cosmologia científica não menos significativa. Enquanto o último ano do século 16 assistiu ao martírio de Giordano Bruno, o primeiro ano do século 17 mostrou que o grande poeta e dramaturgo inglês divulgava o universo infinito das estrelas.
Realmente, Hamlet esteve em Elsina para visitar sua mãe, mas sua condolência obstinada ao rei Claudius destinava ajudar aos amigos Rosencrantz e Guildenstern.
Depois de sua chegada, Rosencrantz logo argumentou com Hamlet que "a Dinamarca é muito limitada para a minha mente", ao que Hamlet respondeu que poderia viver recluso numa casca de noz e se considerar rei do espaço infinito.
Se, por um lado, a expressão "infinity space" é uma referência direta à visão de Digges de um firmamento totalmente ocupado por estrelas semelhantes ao Sol, por outro lado, o recurso às alegorias e às metáforas constitui uma referência à posição opressiva e ao medo de perseguição que a inquisição, com relação ao Universo, fazia na época.

Prisões e execuções
Essa explicação é textualmente defendida por Polônio, que advoga a prisão de Hamlet se este não divulgar o sistema copernicano para a sua mãe.
Evidentemente, Shakespeare sugeriu uma posição prudente para o significado de "Hamlet".
No século 16, as prisões e as execuções foram punições comuns, como o caso bem conhecido da perseguição de Giordano Bruno, condenado por acreditar em um universo infinito.
Shakespeare deve ter tomado conhecimento da morte de Bruno em 1600, na época em que escrevia "Hamlet".
Na realidade, quando Hamlet se refere à nova astronomia, ele usa a seguinte expressão para o seu melhor amigo: "Há mais coisa entre o céu e a Terra, Horácio, do que pode sonhar a tua filosofia" ("Hamlet", 1, 5).


RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO é astrônomo e criador do Museu de Astronomia e Ciências Afins. É autor de mais de 80 livros, como "Astronomia do Macunaíma" (Francisco Alves) e "Astronomia em Camões" (Lacerda).


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