|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(s)ociedade
Tesão e direitos humanos
Ex-diretor da Capes, filósofo diz que opinião pública ignora a questão central no caso da aluna da Uniban: a esfera do desejo
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A universitária do microvestido conseguiu um milagre:
juntou todo o mundo, da UNE à direita, na defesa dela e na condenação aos alunos que a insultaram e, depois, à universidade
que quis puni-la.
Mas há um viés na abordagem que me preocupa. O que
atraiu a sociedade para o caso
foi seu lado sexual. É o chamariz, tanto que a Folha levou
uma atriz [vestida com minissaia] a quatro universidades do
centro de São Paulo para ver se
seus alunos são diferentes dos
da periferia.
Mas, lançada a isca, a imprensa não fica à sua altura e
vai opinar de maneira legalista.
O sexo é chamariz, mas não é
estudado. Já a educação é uma
grande (outra) questão, mas
também não é aprofundada.
Começando pelo fim: a educação proporcionada pela Uniban está sendo questionada a
partir desse caso, e não em sua
qualidade. Que ela é criticada
faz tempo, sabe-se. Mas está
melhorando?
Por coincidência, como diretor que fui da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior], responsável pela avaliação da pós-graduação brasileira, vi avanços da Uniban nos seus mestrados e no único doutorado. Não
sei de sua graduação.
Seria preciso avaliar se ela
está melhorando ou piorando,
em vez de ler generalidades
que não respondem a essa pergunta central.
O outro aspecto é o cerne do
caso. Uma vez deflagrada a polêmica, sumiu de cena o que a
causou -o microvestido. Vi o
advogado da aluna, de terno,
defendendo seu direito de vestir-se como quiser.
Foi uma síntese perfeita das
contradições que o caso traz à
luz. Para defender uma moça
que gosta de mostrar o corpo,
recorre-se à linguagem formal
(e à roupa idem) da profissão
jurídica. Fala-se dela como se
fosse perseguida por ser judia,
negra, comunista ou ter uma
síndrome.
O sexo perturba
Só que ela não foi ofendida no
fluxo dessas discriminações
tradicionais, e sim porque gosta
de mostrar o corpo.
Por que essa questão central
se perde na vagueza das fórmulas ("cada um é livre para fazer
o que quiser", "para ir e vir"
etc.)? Defendo essas liberdades. Mas, quando entra o sexo,
ele as perturba.
No dia 22 de outubro, na Uniban de São Bernardo do Campo
(SP), ela e centenas de jovens
foram perturbadíssimos pelo
sexo. Não adianta tentar, agora,
abafar o assunto com generalidades legais -belíssimas, sim,
fulcro de nossa civilização, mas
pré-freudianas. Ou melhor:
adianta.
É por isso que da esquerda à
direita há um acordo geral. Um
grande acordo para abafar o pequeno monstro.
O monstro começa pelo desejo -que parece ser mais comum nas mulheres- de ser vista, admirada, desejada. A moça
fez por isso. Não sabia o quanto
estava despertando o monstro.
Quando percebeu, deve ter-se
assustado. Sorte, pelo menos,
que ninguém foi machucado
(ela não foi).
Mas o fato é que vimos o nervo exposto de algo que é mais
atávico e forte que um preconceito contra judeus, negros ou,
mesmo, mulheres. Entraram
em cena uma sexualidade provocante e respostas, masculinas e femininas, a ela.
Quer dizer que os rapazes tinham razão em xingá-la? Qualquer alfabetizado entenderá
que não. Não tinham esse direito. Mas, que foram mexidos, foram. Que ela queria mexer com
eles, queria.
O que ela desejava de fato, ela
provavelmente não sabe
(Freud não saberia). Talvez, depois de tudo por que passou,
não saiba mais. Nem eles, depois de expostos na mídia, saibam mais o que queriam.
Id e ego
De todo modo, a imprensa
não se preocupou em saber como foi, nas cabeças de centenas
de jovens que estavam lá, aquela noite. Alunos da Uniban mal
foram entrevistados. Como as
alunas que apareceram na TV
discordavam da manifestação
da UNE "em favor delas", a imprensa preferiu não aprofundar o assunto.
Não dá para reduzir esse assunto à pauta dos direitos em
geral ou das discriminações
contra a mulher.
Não tem nada a ver com mulher não ser presidente ou CEO
de empresa. Até porque nesse
campo, o do desejo que o homem sente só por ver uma mulher bonita, ela tem um poder
que ele não tem.
Faz bem a universidade, em
que o abscesso se rompeu, em
discutir esse assunto à luz da cidadania? É essencial.
Mas gostaria que não ficasse
no genérico dos direitos humanos (que eu defendo, nem preciso repetir).
Espero que saiba devolver à
cena a questão importante que
irrompeu naquela noite terrível: a questão do sexo em face
da liberdade, da cidadania e tudo o mais. A questão do id em
sua negociação com o ego.
É uma grande questão, pouco
tratada.
Mas não acredito muito. Falar na generalidade dos direitos
humanos não afetará o âmago
das pessoas, portanto é mais fácil. Não obrigará a discutir como lidar de maneira racional (a
grande conquista da civilização, que inclui os direitos humanos) com o que é mais irracional em nós, sobretudo os
mais jovens -um desejo desabrido a desafiar valores, interditos, tudo.
Os rapazes podiam ser preconceituosos. Mas pareciam
estar tarados por ela. A tara poderia vencer -ou reiterar- o
preconceito. Como mudar o final do jogo, seu resultado? Eis a
questão.
Como o tesão se relaciona
com os direitos humanos? Dá
para repetir o mantra de que
uma mulher poderosa, desejável, ciente do que desperta nos
homens, é ao mesmo tempo um
sujeito racional capaz de deliberar em sã consciência se quer
ou não um deles?
Dá para acreditar que um homem, assim excitado, facilmente aceite a decisão da mulher de negar-se a ele? O estupro é inadmissível, mas dizer
que esses controles são fáceis é
iludir a sociedade.
[O sociólogo alemão] Norbert Elias entendeu bem a
questão. Ele disse, décadas
atrás: ao contrário do que se
imagina, quando se exibe mais
o corpo, sobretudo o feminino,
exige-se mais -e não menos-
autocontrole. Porque se requer
do espectador que não ataque
aquele corpo desejado.
Essa exigência é necessária?
É. Mas é fácil? Não. Veja-se um
baile funk. Vejam-se as publicidades na TV.
Um direito e um problema
Essa história tem sido lida
como uma parábola do moderno e do reacionário. Moderno é
a moça fazer o que quer com o
corpo, inclusive mostrá-lo.
Reacionário é ser contra isso.
Mas a atualidade intensa do
conflito é que ele não tem essa
temporalidade moderna, que é
dos demais direitos humanos.
Pois, por um lado, mexe com
a libido, que tem fortíssima base natural e uma temporalidade muito mais lenta.
Por outro lado, a mulher se
exibir o quanto queira é conquista recente. O homem não
saber lidar com isso também é
um dado acentuado recentemente. Há um elemento natural, há um confronto hipermoderno. A reação "conservadora" também é hipermoderna.
O que não dá é para dizer que
a moça se exibir não é problema, é direito. É direito, sim,
mas só interessa a ela porque é
problema. Alguém acha que [a
apresentadora] Sabrina Sato
imitaria a aluna se os homens
não babassem por ela (Sabrina
ou Geisy, não importa)?
É esse efeito que se quer produzir. É ele que, produzido, incomoda muita gente. E é esse
incômodo -a consciência, o reconhecimento de que há um incômodo, um problema quase
sem solução, o que Kant chamaria de uma antinomia- que
incomoda muito mais.
O que devemos é enfrentar o
incômodo, reconhecer sua originalidade. Desse ponto de vista, temos uma oportunidade
ímpar, justamente porque difícil, de reflexão e de proposição.
RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular
de ética e filosofia política na USP.
Texto Anterior: Filmoteca Básica: Crônica de um Amor Louco Próximo Texto: Saiba + Índice
|