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A festa de Villa-Lobos
JOSÉ RAMOS TINHORÃO REMEMORA O DIA EM QUE FEZ PARTE DO CORAL DE 40 MIL VOZES REGIDO PELO COMPOSITOR, QUE MORREU HÁ 50 ANOS,
E COMENTA SUA RELAÇÃO COM O ESTADO NOVO
EUCLIDES SANTOS MENDES
DA REDAÇÃO
De repente, chega o
maestro com sua
cabeleira, sobe
num pódio de madeira armado no
meio do campo. A um sinal dele, o estádio inteiro começou a
cantar." Assim o historiador
musical José Ramos Tinhorão,
81, relembra, em entrevista
concedida à Folha, a apresentação do coral orfeônico regido
por Heitor Villa-Lobos em 7 de
setembro de 1940, no Rio de
Janeiro.
Tinhorão, que à época era estudante, fez parte do coral, formado por quase 40 mil vozes,
que se apresentou no estádio
de São Januário.
Convidado pelo governo
Vargas (1930-45) a colaborar
na política cultural do Estado,
Villa-Lobos incentivou a implementação de aulas de música nas escolas, na época.
Autor de "História Social da
Música Popular Brasileira" e
"Os Sons dos Negros no Brasil"
(ambos publicados pela ed. 34),
Tinhorão avalia que a relação
do maestro com a ditadura varguista [1937-45] era um "jogo
duplo".
"Villa-Lobos se aproveitou
do fato de o governo estar interessado nisso [a música], e o
governo se aproveitou do fato
de ele ser o grande nome que
poderia ser usado para essa política [cultural]", afirma na entrevista abaixo.
FOLHA - Como foi o seu encontro
com Villa-Lobos, nos anos 1940?
JOSÉ RAMOS TINHORÃO - Não tive
propriamente um encontro, estive era perdido numa massa de
alunos que formavam um
imenso coral regido por ele.
Eram cerca de 40 mil [pessoas] de todas as escolas com
turmas de música do Rio de Janeiro. Esse episódio de Villa-Lobos reunir o coral no campo
do Vasco [da Gama] foi em 7 de
setembro de 1940.
Villa-Lobos só foi no dia da
apresentação, com 40 mil pessoas para assistir à festa cívica.
De repente, chegou o maestro
com sua cabeleira, sobiu num
pódio de madeira armado no
meio do campo.
A um sinal dele, o estádio inteiro começou a cantar.
Eu me lembro de que eram
canções que falavam da natureza, do Brasil.
Era uma demonstração de
massa, um conjunto de coros
formando um imenso coral. Fazia parte da política cultural do
Estado [Novo], pelo qual Villa-Lobos gostosamente se deixou
usar, por causa da preocupação
que tinha em divulgar a música.
Ele queria que todo mundo
se interessasse por música.
FOLHA - Qual, então, era a relação
do compositor com o governo de
Getúlio Vargas?
TINHORÃO - Hoje, tenho a clara
convicção de que o sistema [o
Estado Novo] usou Villa-Lobos. Por que foram chamá-lo, e
não a outro, para fazer esse papel? Porque viera da Europa e
era o maior compositor erudito
do Brasil, à época.
Nesse sentido, usou Villa-Lobos pelo seu nome e pelo fato de ser preocupado com essa
história de canto coral etc.
Villa-Lobos, por sua vez, como passou a ter poder de decisão [na política cultural do Estado], determinou o repertório
que as professoras [de música]
deviam ensinar nas escolas para as apresentações no estádio.
E, com isso, fez uma coisa
que, no fundo, queria: difundir
o cultivo da música por meio
do canto coral.
FOLHA - Villa-Lobos teve papel decisivo na educação musical?
TINHORÃO - Teve um peso importante. Sobre isso, eu mesmo
tenho que me penitenciar por
ter escrito assim: "Villa-Lobos,
maestro da ditadura [do Estado Novo]".
Era um jogo duplo: ele se
aproveitou do fato de o governo ter interesse nisso [a música], e o governo se aproveitou
do fato de ele ser o grande nome que poderia ser usado para
essa política [cultural].
FOLHA - Como os sons e a música
que ecoavam das ruas influenciaram a formação do compositor?
TINHORÃO - Basta ouvir "O
Trenzinho do Caipira". Villa-Lobos tem uma obra extensíssima, com canções e coisas que
aproveitou, por exemplo, de
músicos de choro. Ele [também] tocava choro.
O tema que ele usa [na sua
obra] é popular, mas o tratamento é erudito, mesmo com
as deficiências [técnicas] de
que é acusado.
FOLHA - Como o folclore brasileiro
influenciou a música de Villa-Lobos?
TINHORÃO - Ele viajou muito
pelo Brasil antes de ir para a
Europa [no início dos anos
1920]. Começou a percorrer o
país e não enviava notícias para
a família. Passaram-se anos, a
mãe achou que ele tivesse morrido e chegou a mandar rezar
uma missa.
Ele andava por Goiás, Minas
[Gerais], interior de São Paulo... andou por todo o Brasil, e,
em todo lugar a que ia, anotava
a música local e guardava no
ouvido a sonoridade. É por isso
que é uma figura importante,
porque não foi um músico de
gabinete. E quando jovem, como precisava de dinheiro, tocava até em confeitaria no Rio.
Quando o pai morreu, ele tinha 12 anos.
Estudou, além de piano, violoncelo e violão. Villa-Lobos é
um pouco autodidata. Chegou
a se matricular em um curso no
Instituto Nacional de Música,
no Rio de Janeiro, mas não ficou lá muito tempo.
Ele é acusado por alguns críticos de não ter uma fatura musical completa pela falta de conhecimento técnico detalhado.
Mas supria isso com a exuberância de sua musicalidade e de
seu talento.
FOLHA - Qual é a relação entre Villa-Lobos e Mário de Andrade?
TINHORÃO - Os dois eram próximos [ambos participaram da
Semana de Arte Moderna de
São Paulo, em 1922]. Mário de
Andrade partia do princípio de
que, na música erudita, não
adianta imitar os grandes autores europeus.
Portanto, [a composição erudita] tem que procurar temas
nacionais e desenvolver um tipo de música em que se tem a
técnica e a teoria de nível erudito, mas dentro de uma forma
brasileira, que era uma forma
nacionalista.
FOLHA - O sr. acha que o fato de ele
ser brasileiro compromete a consolidação da sua obra na história da
música do século 20?
TINHORÃO - Não. A música que
ele fez, mesmo quando usa um
tema popular, tem um nível de
sofisticação de música erudita.
Ora, o código da música erudita vale para qualquer país.
Mas é claro que um francês, por
exemplo, reconhece que a música de Villa-Lobos não é francesa, não é europeia.
FOLHA - Qual é o lugar que cabe a
Villa-Lobos na história da música 50
anos após a sua morte?
TINHORÃO - Ele é fundamental
dentro do panorama da música
brasileira e erudita pelo volume da sua produção. Quando se
fizer um levantamento sobre o
que foi a música erudita, no
sentido do que os grandes mestres fizeram na Europa e do que
foi feito no Brasil, a importância de Villa-Lobos será [ainda
mais] destacada.
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