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O ideólogo do folclore
MÚSICA DE VILLA-LOBOS IMAGINOU E CRIOU
UMA OUTRA IDEIA DE NAÇÃO
LEOPOLDO WAIZBORT
ESPECIAL PARA A FOLHA
No ano em que se
lembram os 50
anos da morte do
maestro, a música
de Villa-Lobos soa
mais viva do que nunca.
Novos estudos e gravações
desafiam a compreensão da
obra e liberam todo o seu ímpeto expressivo. No que ele
consiste?
Villa-Lobos vazou sua música em uma linguagem compartilhada, baseada em um material dado pelo sistema temperado e organizado como sistema tonal -o que já se denominou como "prática comum".
Mas também esteve preocupado com a dimensão identitária nacional e carecia de dimensão especificante, para
além da plataforma do idioma
compartilhado.
"O folclore sou eu!": esse o
artifício por ele adotado para
garantir a nacionalização musical, dado que o "folclore" fora
entendido, desde o século 19,
como um depositário privilegiado do "espírito do povo" e da
nação que o congregaria.
Contudo, a equalização do
folclore ao nacional é um movimento ideológico, que ganhou
validade na época da invenção
dos nacionalismos.
Por outras palavras, uma discussão do "nacional" em Villa-Lobos deve considerar que ele
cria um nacional, ele o inventa
musicalmente, lançando mão
de elementos variados.
Uirapuru
Reconheçamos que a obra
musical sintetiza os momentos
estrutural-sintático-formais,
de um lado, e estético-ideológicos, de outro.
Não se poderia hierarquizar
de modo definitivo o peso de
cada um desses momentos; a
composição é precisamente
uma solução histórico-musical
dessa complexa síntese, e separá-los seria impróprio.
Mas o reconhecimento dessa
síntese não significa que não
precisemos elaborar os seus
momentos, antes o contrário.
Interessam aqui menos os
conteúdos intencionais inter-relacionados que pretendem
reiterar e equacionar a "alma
brasileira", e mais os procedimentos elaborados na fatura
composicional, derivando desta, por mecanismo de complexa
constituição e conversão ideológica, os sedimentos mais obscuros e cifrados de um substrato "nacional".
Nesse sentido, pouco importa que em Villa-Lobos o canto
do uirapuru não seja registrado
e reproduzido com precisão ornitológica; importa sua eficácia
simbólica como marcador
identitário.
O ato fundador
Está pressuposto que aquele
som é o canto do uirapuru; está
pressuposto que o canto do uirapuru é índice do Brasil; está
pressuposto que o uirapuru
não canta como os pássaros de
lá; e está pressuposto também
que os ouvintes sabem de algum modo reconhecer e legitimar tudo isso.
Em que repousam tantos
pressupostos, o que os garante?
A afirmação, o ato fundador,
a pura tese, o "assim é". Não
fosse contudo a força expressiva da música, tudo desmoronaria. A pura tese é em mesma
medida forma musical, discurso sonoro consistente.
Por isso pode-se afirmar que
uma tal eficácia se fundamenta
no material e no procedimento
composicional. São eles, e somente eles, que garantem a
expressividade, que por sua vez
servirá de suporte para a dimensão simbólica. Conjugam
experiência social e fatura artística, e esse é o segredo dessa
forma.
Assim, não é à nação brasileira que a música de Villa-Lobos
dá corpo em forma de som, mas
o contrário: sua música imaginou uma nação e a sonorizou
-inclusive imaginando-a contraditória e complexa.
Um movimento copernicano: não é o Brasil que modela e
cria essa música, e sim ela que
modela e cria um Brasil.
Há uma dimensão ideológica
e prática central na música de
Villa-Lobos: um movimento
complexo, pois o Estado-nação
pede uma cultura homogênea
que o figure culturalmente e,
assim, retroalimente sua existência política -instância e
mecanismo de legitimação
(simbólica) do Estado-nação.
E, por mais que a música de
Villa-Lobos apresente tudo
muito misturado, ela aparece
como síntese de uma variedade, simbolizando musicalmente a unidade possível de uma
nação multifacetada e desigual.
Mas a pergunta continua
sendo: como isso é possível musicalmente -ou seja, quais os
recursos musicais foram mobilizados?
"Magma sonoro"
É um compositor que soube
explorar, no momento de dissolução do idioma comum, texturas e massas sonoras.
Se o esgotamento da linguagem comum não reverteu exclusivamente em tentativas de
criação de novos sistemas, mas
também em experimentos no
âmbito do sistema tonal, é nessa última vertente que Villa-Lobos mergulhou.
Incorporando elementos da
música popular urbana, tratou
de explorar e testar os limites
de novas formas expressivas,
lançando mão de estruturas
mais flexíveis, mais maleáveis,
mais permeáveis, mais rapsódicas, mais fragmentárias, mais
volúveis, mais imprevisíveis,
mas não necessariamente mais
inconsistentes.
À diferença da tradição da
forma sonata e da fuga, que privilegia o desenvolvimento, sua
obra explora o simultâneo e
rapsódico, massas sonoras,
timbres, imprevistos e sobreposições.
E é precisamente isso, um
"magma sonoro" em ebulição
constante (G. Mendes), que soa
hoje de modo cada vez mais intenso e belo.
LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na Universidade de São Paulo e autor de "A
Passagem do Três ao Um" (ed. Cosac Naify).
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