São Paulo, domingo, 15 de novembro de 2009

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O ideólogo do folclore

MÚSICA DE VILLA-LOBOS IMAGINOU E CRIOU UMA OUTRA IDEIA DE NAÇÃO

LEOPOLDO WAIZBORT
ESPECIAL PARA A FOLHA

No ano em que se lembram os 50 anos da morte do maestro, a música de Villa-Lobos soa mais viva do que nunca.
Novos estudos e gravações desafiam a compreensão da obra e liberam todo o seu ímpeto expressivo. No que ele consiste?
Villa-Lobos vazou sua música em uma linguagem compartilhada, baseada em um material dado pelo sistema temperado e organizado como sistema tonal -o que já se denominou como "prática comum".
Mas também esteve preocupado com a dimensão identitária nacional e carecia de dimensão especificante, para além da plataforma do idioma compartilhado.
"O folclore sou eu!": esse o artifício por ele adotado para garantir a nacionalização musical, dado que o "folclore" fora entendido, desde o século 19, como um depositário privilegiado do "espírito do povo" e da nação que o congregaria.
Contudo, a equalização do folclore ao nacional é um movimento ideológico, que ganhou validade na época da invenção dos nacionalismos.
Por outras palavras, uma discussão do "nacional" em Villa-Lobos deve considerar que ele cria um nacional, ele o inventa musicalmente, lançando mão de elementos variados.

Uirapuru
Reconheçamos que a obra musical sintetiza os momentos estrutural-sintático-formais, de um lado, e estético-ideológicos, de outro.
Não se poderia hierarquizar de modo definitivo o peso de cada um desses momentos; a composição é precisamente uma solução histórico-musical dessa complexa síntese, e separá-los seria impróprio.
Mas o reconhecimento dessa síntese não significa que não precisemos elaborar os seus momentos, antes o contrário.
Interessam aqui menos os conteúdos intencionais inter-relacionados que pretendem reiterar e equacionar a "alma brasileira", e mais os procedimentos elaborados na fatura composicional, derivando desta, por mecanismo de complexa constituição e conversão ideológica, os sedimentos mais obscuros e cifrados de um substrato "nacional".
Nesse sentido, pouco importa que em Villa-Lobos o canto do uirapuru não seja registrado e reproduzido com precisão ornitológica; importa sua eficácia simbólica como marcador identitário.

O ato fundador
Está pressuposto que aquele som é o canto do uirapuru; está pressuposto que o canto do uirapuru é índice do Brasil; está pressuposto que o uirapuru não canta como os pássaros de lá; e está pressuposto também que os ouvintes sabem de algum modo reconhecer e legitimar tudo isso.
Em que repousam tantos pressupostos, o que os garante?
A afirmação, o ato fundador, a pura tese, o "assim é". Não fosse contudo a força expressiva da música, tudo desmoronaria. A pura tese é em mesma medida forma musical, discurso sonoro consistente.
Por isso pode-se afirmar que uma tal eficácia se fundamenta no material e no procedimento composicional. São eles, e somente eles, que garantem a expressividade, que por sua vez servirá de suporte para a dimensão simbólica. Conjugam experiência social e fatura artística, e esse é o segredo dessa forma. Assim, não é à nação brasileira que a música de Villa-Lobos dá corpo em forma de som, mas o contrário: sua música imaginou uma nação e a sonorizou -inclusive imaginando-a contraditória e complexa. Um movimento copernicano: não é o Brasil que modela e cria essa música, e sim ela que modela e cria um Brasil.
Há uma dimensão ideológica e prática central na música de Villa-Lobos: um movimento complexo, pois o Estado-nação pede uma cultura homogênea que o figure culturalmente e, assim, retroalimente sua existência política -instância e mecanismo de legitimação (simbólica) do Estado-nação.
E, por mais que a música de Villa-Lobos apresente tudo muito misturado, ela aparece como síntese de uma variedade, simbolizando musicalmente a unidade possível de uma nação multifacetada e desigual. Mas a pergunta continua sendo: como isso é possível musicalmente -ou seja, quais os recursos musicais foram mobilizados?

"Magma sonoro"
É um compositor que soube explorar, no momento de dissolução do idioma comum, texturas e massas sonoras. Se o esgotamento da linguagem comum não reverteu exclusivamente em tentativas de criação de novos sistemas, mas também em experimentos no âmbito do sistema tonal, é nessa última vertente que Villa-Lobos mergulhou. Incorporando elementos da música popular urbana, tratou de explorar e testar os limites de novas formas expressivas, lançando mão de estruturas mais flexíveis, mais maleáveis, mais permeáveis, mais rapsódicas, mais fragmentárias, mais volúveis, mais imprevisíveis, mas não necessariamente mais inconsistentes.
À diferença da tradição da forma sonata e da fuga, que privilegia o desenvolvimento, sua obra explora o simultâneo e rapsódico, massas sonoras, timbres, imprevistos e sobreposições. E é precisamente isso, um "magma sonoro" em ebulição constante (G. Mendes), que soa hoje de modo cada vez mais intenso e belo.


LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na Universidade de São Paulo e autor de "A Passagem do Três ao Um" (ed. Cosac Naify).


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