|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MEMÓRIA
Poeta inglês, morto no último dia 28, concebeu, em sua obra, uma criação negativa do mundo
As trevas de Hughes
FELIPE FORTUNA
especial para a Folha
Agora se sabe que "Birthday
Letters" (1998), último livro de
Ted Hughes (1930-1998), simboliza o encontro de duas mortes: a de
sua primeira mulher, a poeta norte-americana Sylvia Plath, e a sua
própria. Seria certo considerar
Hughes como um poeta rural, caso se entenda a classificação sem
qualquer conotação de regionalismo literário.
Sua poesia se caracteriza pelo
exame das relações humanas no
mundo natural, com a insólita
presença de águias, corvos, corujas, lobos, vacas e o enfrentamento
de um universo físico e mortal. A
evolução dela demonstra um
aprofundamento da dimensão mítica e de uma espécie de canonização do estilo que fez o poeta buscar matrizes literárias tradicionais
como o folclore, a religião, os autores gregos e latinos, Shakespeare
e Milton. Percebe-se também agora que a tragédia do suicídio de
Plath, ocorrida em 1963, transformou-se em seu último livro na
mesma poesia de caráter evocativo
e de visão reveladora e religiosa, à
procura de reconciliação.
Três vezes encontrei-me com
Ted Hughes em Londres, para onde ele viajava estritamente por razões profissionais. Numa delas suponho que vinha do escritório de
seu editor na Faber & Faber, pois
comentou longamente a alegria de
haver traduzido as histórias de
Ovídio. Nada conhecia da poesia
brasileira, exceção feita a um pequeno volume de Carlos Drummond de Andrade. Além da extensa leitura dos clássicos de vários
países, Ted Hughes dizia admirar,
fora do grupo de poetas de língua
inglesa, o espanhol García Lorca,
o servo-croata Vasko Popa e a polonesa Wislawa Szymborska. Obviamente, jamais mencionei o nome de Sylvia Plath, nem mesmo
para lhe perguntar que influência
poderia ter havido da poesia dela
nos livros repletos de simbologia
animal e de referências ao
"countryside" britânico que ele
vinha escrevendo. Sabia que, se tivesse ousado a pergunta, nunca
voltaria a vê-lo.
Também não quis entrar em
considerações críticas sobre uma
tarefa que a monarquia britânica
lhe impusera a partir de 1984: a de
Poeta Laureado do Reino Unido.
A tradição de fazer uma série de
poemas em homenagem a membros da Família Real e aos seus
símbolos começou com John
Dryden, em 1670, e desde então os
sucessivos poetas honrados com o
título recebem 100 libras esterlinas
(cerca de R$ 160) anuais, acompanhados de uma caixa de vinhos. O
criador filosófico que foi o poeta
Ted Hughes, contudo, não poderá
jamais se reduzir à atividade do
Poeta Laureado: ele é, simplesmente, um dos renovadores da lírica de língua inglesa, no mesmo
nível em que Dylan Thomas, W.H.
Auden e T.S. Eliot o foram.
Um dos temas essenciais de seus
poemas é o do sentido da Criação,
na qual o poeta percebeu a intolerável força destruidora da Natureza e a necessidade que tem o ser
humano de estabelecer negociações entre os seus projetos individuais e o universo, de qualidades
inumanas, que o cerca. Nesse sentido, Ted Hughes, com a publicação de "Crow" (1972), além de se
situar definitivamente como poeta
maior, exibiu a concepção de uma
"criação negativa" do mundo,
simbolizada por um animal que já
estabelecera reputação literária
-a exemplo do célebre "Raven",
de Edgar Allan Poe. A mitologia
em torno daquela ave negra é bastante extensa e dela se vale o poeta
britânico para criar poemas pessimistas e lúgubres sobre a natureza
da Criação, num embate permanente com Deus, com a luz e com
as forças vitais, em que o corvo assoma indestrutível. "É possível
que tenha obsessão por animais
alados", me disse.
O poema traduzido abaixo, retirado de "Crow", é significativo
da poética de Ted Hughes. Em "A
Coruja", o relacionamento com
Sylvia Plath é evocado com imagens impressionantes: a começar,
pela apresentação do mundo rural
britânico à mulher recém-chegada
dos Estados Unidos, segundo um
processo de estranhamento que
permeia todos os versos, enquanto ela parece captar e recolher as
imagens novas como se fosse uma
câmera. Todo o poema indica a
emocionada profundidade da relação daqueles dois poetas. Ao final, simbolicamente, Hughes é
atacado por um animal de sua região, subitamente, como um mau
agouro que de fato lhe tomou parte da vida.
Felipe Fortuna é poeta e ensaísta, autor, entre
outros, de "Estante" (Topbooks).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|