São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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MEMÓRIA
Poeta inglês, morto no último dia 28, concebeu, em sua obra, uma criação negativa do mundo
As trevas de Hughes

FELIPE FORTUNA
especial para a Folha

Agora se sabe que "Birthday Letters" (1998), último livro de Ted Hughes (1930-1998), simboliza o encontro de duas mortes: a de sua primeira mulher, a poeta norte-americana Sylvia Plath, e a sua própria. Seria certo considerar Hughes como um poeta rural, caso se entenda a classificação sem qualquer conotação de regionalismo literário.
Sua poesia se caracteriza pelo exame das relações humanas no mundo natural, com a insólita presença de águias, corvos, corujas, lobos, vacas e o enfrentamento de um universo físico e mortal. A evolução dela demonstra um aprofundamento da dimensão mítica e de uma espécie de canonização do estilo que fez o poeta buscar matrizes literárias tradicionais como o folclore, a religião, os autores gregos e latinos, Shakespeare e Milton. Percebe-se também agora que a tragédia do suicídio de Plath, ocorrida em 1963, transformou-se em seu último livro na mesma poesia de caráter evocativo e de visão reveladora e religiosa, à procura de reconciliação.
Três vezes encontrei-me com Ted Hughes em Londres, para onde ele viajava estritamente por razões profissionais. Numa delas suponho que vinha do escritório de seu editor na Faber & Faber, pois comentou longamente a alegria de haver traduzido as histórias de Ovídio. Nada conhecia da poesia brasileira, exceção feita a um pequeno volume de Carlos Drummond de Andrade. Além da extensa leitura dos clássicos de vários países, Ted Hughes dizia admirar, fora do grupo de poetas de língua inglesa, o espanhol García Lorca, o servo-croata Vasko Popa e a polonesa Wislawa Szymborska. Obviamente, jamais mencionei o nome de Sylvia Plath, nem mesmo para lhe perguntar que influência poderia ter havido da poesia dela nos livros repletos de simbologia animal e de referências ao "countryside" britânico que ele vinha escrevendo. Sabia que, se tivesse ousado a pergunta, nunca voltaria a vê-lo.
Também não quis entrar em considerações críticas sobre uma tarefa que a monarquia britânica lhe impusera a partir de 1984: a de Poeta Laureado do Reino Unido. A tradição de fazer uma série de poemas em homenagem a membros da Família Real e aos seus símbolos começou com John Dryden, em 1670, e desde então os sucessivos poetas honrados com o título recebem 100 libras esterlinas (cerca de R$ 160) anuais, acompanhados de uma caixa de vinhos. O criador filosófico que foi o poeta Ted Hughes, contudo, não poderá jamais se reduzir à atividade do Poeta Laureado: ele é, simplesmente, um dos renovadores da lírica de língua inglesa, no mesmo nível em que Dylan Thomas, W.H. Auden e T.S. Eliot o foram.
Um dos temas essenciais de seus poemas é o do sentido da Criação, na qual o poeta percebeu a intolerável força destruidora da Natureza e a necessidade que tem o ser humano de estabelecer negociações entre os seus projetos individuais e o universo, de qualidades inumanas, que o cerca. Nesse sentido, Ted Hughes, com a publicação de "Crow" (1972), além de se situar definitivamente como poeta maior, exibiu a concepção de uma "criação negativa" do mundo, simbolizada por um animal que já estabelecera reputação literária -a exemplo do célebre "Raven", de Edgar Allan Poe. A mitologia em torno daquela ave negra é bastante extensa e dela se vale o poeta britânico para criar poemas pessimistas e lúgubres sobre a natureza da Criação, num embate permanente com Deus, com a luz e com as forças vitais, em que o corvo assoma indestrutível. "É possível que tenha obsessão por animais alados", me disse.
O poema traduzido abaixo, retirado de "Crow", é significativo da poética de Ted Hughes. Em "A Coruja", o relacionamento com Sylvia Plath é evocado com imagens impressionantes: a começar, pela apresentação do mundo rural britânico à mulher recém-chegada dos Estados Unidos, segundo um processo de estranhamento que permeia todos os versos, enquanto ela parece captar e recolher as imagens novas como se fosse uma câmera. Todo o poema indica a emocionada profundidade da relação daqueles dois poetas. Ao final, simbolicamente, Hughes é atacado por um animal de sua região, subitamente, como um mau agouro que de fato lhe tomou parte da vida.


Felipe Fortuna é poeta e ensaísta, autor, entre outros, de "Estante" (Topbooks).



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