São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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+ cinema

O crítico francês, que acaba de lançar uma enciclopédia do filme pornô, fala da concorrência da internet e diz que o gênero antecipou a evolução dos costumes

Encenações misóginas do obsceno

Caio Caramico Soares
da Redação

Pode ser verdade que nos filmes pornô o enredo é o que menos conta. Mas isso não impede que eles estejam repletos de "história", isto é, das grandes tendências culturais de sua época. Às vezes eles até antecipam tais tendências, ao introduzir "subversões" -como as relações homossexuais ou interraciais- que só no futuro gozariam de aceitação social. Essas são algumas das teses defendidas pelo jornalista e cinéfilo francês Jacques Zimmer, 67, na entrevista a seguir, concedida por e-mail e telefone da cidade de Ginasservis, perto de Marselha (sul da França). Ele é o organizador de "Le Cinéma X" (ed. La Musardine, 440 págs., 38,11 euros), ampla antologia sobre o pornô na Europa e nos EUA - incluindo o auge, em meados dos anos 70, e o atual declínio. Para Zimmer, as salas dedicadas a eles estão em via de extinção, o que tem provocado uma migração da estética pornô e de seus aficionados rumo ao cinema convencional, vídeo, DVD, a internet e TV.

Qual o futuro do cinema pornô?
Ao menos na França, ele está bem comprometido. A produção "cinema" (35 mm) desapareceu. A exploração igualmente. Os vídeos são cada vez mais medíocres, à exceção de alguns "sobreviventes", como Marc Dorcel, ou alguns jovens raros, como John B. Root, que com muita dificuldade mantêm um cinema de qualidade (mesmo se ele é vertido ao vídeo). As recentes mudanças políticas deflagraram uma ofensiva da direita para suprimir o pornô da televisão. Por enquanto eles não tiveram êxito, mas a vigilância será essencial. No entanto, ao mesmo tempo, os realizadores e realizadoras fizeram progredir a liberdade de tratar esses assuntos no cinema tradicional.
O interesse do público tem diminuído nesses últimos anos?
O interesse do público evidentemente diminuiu nas salas de exibição, até porque elas desapareceram na França, graças a fatores como as restrições legais. Por exemplo, a sala que passasse filmes pornô era obrigada a se especializar nesse tipo de filme, o que economicamente era desestimulante. Mas os mercados do pornô na televisão e na internet são importantes, assim como há uma expansão das compras e da locação de cassetes e de DVD. O problema é que, na ausência de cifras confiáveis, não se pode quantificar o número de espectadores reais nesses diferentes registros (ao contrário dos anos 70, quando se dispunha de números oficiais e precisos dos espectadores, filme por filme, sala por sala).
Qual tem sido o impacto da Aids? Ela não seria um estímulo ao consumo de filmes pornô, como forma de fuga aos perigos do sexo real?
A aparição da Aids e a morte de algumas vedetes do gênero deflagraram uma onda de precauções e de sexo seguro, com o uso de preservativos nos filmes. Por outro lado, compreendo o que você diz, e é correto, acerca das alternativas "masturbatórias" que a Aids estimula para a fuga desses perigos.
Como distinguir erotismo e pornografia?
Essa distinção é o que nós chamamos, em francês, de "serpente do mar", isto é, um tema que volta sem cessar. Eu precisaria de páginas e páginas para abordá-lo. Se você quiser, simplificarei em duas fórmulas. A oficial: segundo a lei francesa, saímos do erotismo para a pornografia desde que haja "penetração", isto é, uma cena de copulação não-simulada. Pessoalmente, faço minha a seguinte fórmula: "A pornografia é o erotismo dos outros!".
E o "mau gosto"? Como defini-lo?
Permita-me ligar esse problema ao precedente; parece-me que a definição de mau gosto recobre mais uma noção moral pessoal do que uma noção estética, e eu acho "de mau gosto" a representação de práticas sexuais que não são as minhas, embora sejam as do vizinho.
Os detratores do pornô dizem que ele tende a expor as mulheres a situações degradantes e a banalizar o sexo.
O problema da misoginia é de fato essencial. Feito por homens e para homens (o público masculino é 99% do total), o cinema pornográfico reflete, acentuando, o perfil psicológico da sociedade que o produz. Na França, a despeito dos grandes progressos na legislação e na vida corrente, os costumes continuam ainda largamente misóginos. Portanto é verdade que o cinema pornográfico (e, diga-se de passagem, o cinema em geral) é misógino; como o essencial do que ele mostra é de ordem sexual, a posição (dizendo sem maldade) da mulher é tanto mais flagrante. No entanto os críticos do cinema pornô em geral o conhecem muito pouco. Por exemplo, recentemente vi na TV uma reportagem em que uma jornalista mostrava uma seção de sex shop repleta de "mulheres submissas", esquecendo que a seção ao lado era consagrada aos "homens submissos". De todo modo, a recente aparição de realizadoras do pornô fez a coisa evoluir.
Os filmes pornô veiculam que tipo de carga ideológica?
Além da misoginia, é raro que esse cinema veicule outras manifestações ideológicas "gerais", simplesmente porque ele não se preocupa em lidar com "grandes problemas". Mas eu diria que o cinema pornográfico antecipou a evolução dos costumes em temas como o racismo em geral (ao mostrar uniões interraciais) e sobre o racismo homossexual (essa forma de sexualidade esteve presente desde a origem do cinema pornô, no início do século).
Quais os seus filmes prediletos no gênero?
No meu livro, nós listamos "41 filmes incontornáveis". Dentre eles, constam em minha seleção pessoal: "Derrière la Porte Verte", "Story of Joanna", "Day Dream", "New Waves Hooker", "La Nuit sans Fin". Mas como: são quatro americanos, um japonês e nenhum francês? Tanto pior. É minha escolha!
É possível dizer que o fetiche masculino pelo lesbianismo significa uma queda do apelo erótico da relação heterossexual no universo dos filmes pornô?
Há incontestavelmente uma extensão do mercado dos gêneros (embora eles existam desde sempre). É que o cinema pornô se especializou cada vez mais para responder à demanda de uma clientela que compra ou aluga fitas de vídeo cuja difusão é mais ou menos clandestina e sem nenhum controle estatístico. Assim, é difícil distinguir as grandes tendências do mercado.
Por que a idéia de fazer uma enciclopédia do pornô?
Depois de ter publicado 23 livros, em geral sobre cinema, em que tratei de realizadores como Orson Welles, Alfred Hitchcock ou Jean-Pierre Melville, me pareceu interessante tratar também de um gênero particularmente desprezado pelos intelectuais e sistematicamente atacado pelos bem-pensantes. Além disso, foi ocasião para trabalhar com amigos que, eles também, são críticos que adoram esses clássicos do cinema, mas que compartilhavam minhas idéias. Nós trabalhamos, creio, muito seriamente, mas sem deixar de nos divertir muito.


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