São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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Em "Kadish", o húngaro Imre Kertész faz um intenso trabalho de luto sobre a experiência do Holocausto

Uma cova aberta no ar

Kadish
132 págs., R$ 20,00 de Imre Kertész. Trad. de Rachel Abi-Sâmara. Ed. Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/xx/21/502-9092).

Paulo Schiller
especial para a Folha

Não". Não se pode conceber ter filhos num mundo que viveu os horrores dos regimes totalitários em que criminosos comuns eram idolatrados a partir do instante em que assumiam o poder. Assim responde o narrador, sem titubear, à pergunta do dr. Oblath, filósofo, durante uma caminhada num bosque de faias, nos arredores de uma casa de repouso para escritores em férias, entre as colinas suaves destacadas em meio à grande planície húngara. Kadish é a oração que os judeus religiosos recitam pelos mortos. O narrador de Imre Kertész, escritor e tradutor literário como o autor, diz o seu kadish pelo filho que nunca vai nascer: segundo ele, a insistência pela preservação da vida é o alimento do totalitarismo. Esse sobrevivente de Auschwitz que adotou o ofício de tradutor para vestir a aparência de uma profissão objetiva, respeitável aos olhos das autoridades, faz da caneta a pá com que termina o trabalho começado por outros: escava a própria cova, uma cova no ar, onde não se fica apertado, sepultura feita da fumaça dos fornos crematórios.

Concentração absoluta
O "Kadish" de Kertész é um longo monólogo interior -que busca a libertação pelo ato torturante de contar- de extraordinária densidade filosófica, poderoso pela angústia, pela ironia, pela aflitiva lucidez e, sobretudo, pela musicalidade, uma oração vociferada que nos obriga a vibrar em uníssono com a respiração dessa compulsão discursiva numa concentração absoluta, sem nenhuma concessão. O escritor fala da deportação, de seu casamento fracassado, que repete o dos próprios pais, da infância sofrida marcada pelo pai despótico e pela vida escolar no internato. Na "Mitteleuropa", na Europa Central da infância do autor, a educação se fundamenta sobre o culto à autoridade do pai, e, se Deus é a glorificação do pai, Auschwitz é Deus revelado, a consequência lógica do exercício da dominação paterna, excesso das virtudes pregadas na infância. As palavras do pai e Auschwitz produzem o mesmo eco, que também ressoa na chamada semanal em que o diretor julga e sentencia os alunos impotentes perfilados junto à longa mesa do refeitório do internato. Auschwitz é como uma fruta madura, dependurada quem sabe há séculos, pronta para cair na cabeça das pessoas.

Experiências fracassadas
Imre Kertész, prêmio Nobel de Literatura de 2002, nasceu em Budapeste em 1929. Deportado para Auschwitz em 1944, foi libertado em Buchenwald em 1945. De volta à Hungria, descobre que todos os seus familiares desapareceram. Entre 1948 e 1951, trabalha num jornal que se vê obrigado a deixar quando o diário se transforma em órgão oficial do Partido Comunista. A partir de 1953, depois de uma experiência fracassada no Ministério da Indústria, decide ganhar a vida como escritor. Mora num pequeno quarto sublocado e, seguindo a tradição dos predecessores literários de seu país, escreve nas mesas dos recessos escuros dos cafés da capital. O stalinismo não é terreno propício para a literatura. Assim, passa a traduzir, do alemão, autores como Nietzsche, Hofmannstahl, Schnitzler, Freud, Joseph Roth, Wittgenstein e Canetti, todos eles influências importantes em seus trabalhos posteriores. Escreve também comédias musicais, mistos de teatro de revista e opereta, populares na Hungria da época. Em 1975, após a recusa inicial de alguns editores, Kertész publica "Sorstalanság" (Ausência de Destino), fruto da passagem pelos campos aos 15 anos de idade. "A Kudarc" (Fiasco), de 1988, contém a narrativa do silêncio com que o público e a crítica receberam seu primeiro livro. "Kadish" é o capítulo final dessa trilogia que tem em comum o protagonista e a experiência concentracionária.

Interromper a linhagem
O kadish ritualístico dos enlutados pelos que se foram não contém nenhuma referência à morte. Ao contrário, é uma exaltação da vida. A resistência ao totalitarismo seria a entrega ao aniquilamento, à esterilidade ou a reafirmação de uma paternidade outra, que imortaliza a memória em ato? Esta é a fenda aberta por Kertész, para quem não há mais que uma única saída: interromper a linhagem e seguir cavando a própria cova.


Paulo Schiller é psicanalista, autor de "A Vertigem da Imortalidade" (Cia. das Letras). Traduziu do húngaro "O Legado de Eszter" e "Veredicto em Canudos" (Cia. das Letras), de Sándor Márai.


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