São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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Manoel de Oliveira responde a Alencastro

Manoel de Oliveira
especial para a Folha

Estimado professor. Sim, estimado porque junta a sua natural competência histórica ao interesse pela análise de certos aspectos do cinema. Duas cousas que eu sobrestimo e que, com os tempos modernos, se vêm entrelaçando, nem sempre do melhor modo. E ainda porque a sua atenção revela o reconhecimento de alguma seriedade contida nos meus filmes, seriedade que em realidade sempre procuro. O facto de ver em si, para além do eminente professor de história que o senhor é, também o cinéfilo atento e conhecedor dos meus filmes, não pode deixar de me tocar de um modo muito particular e estimulante. Por tal motivo, e sem nenhum sentimento de obrigação, é com grande gosto que beneficio da oportunidade que me dá de explanar os meus pontos de vista sobre os aspectos que o professor topou em pontos fulcrais dos meus filmes "A Carta" e "Não ou a Vã Glória de Mandar", sem esquecer as questões que envolvem o padre Vieira e a escravidão.

Memória crível
Principiarei por dizer que, em qualquer desses três filmes, como na concepção de todos os meus outros, tenho sempre uma atitude preferencial histórica, como também acontece na transposição de qualquer ficção, pois, quando esta se eleva a memória crível, está a impor-se como uma referência histórica. A sua visão de lusitanização a que se refere em relação à "Carta" não deixa de ser acertada. Por quê? Porque, tendo nascido e vivido sempre nesta nobre e invicta cidade da qual houve nome Portugal, o meu olhar já não pode ser outro. É também o caso do não menos universal "Não ou a Vã Glória de Mandar" e, estou certo, o mesmo acontecerá com "Palavra e Utopia", nome do filme sobre padre Vieira, no qual se põe acento na escravatura, que é o cerne da carta aberta que me dirigiu nesta mesma Folha (Mais!, 12/12/99). Na esperança de que esta minha carta seja aí publicada em honra e homenagem ao professor de história Luiz de Alencastro, e em resposta e esclarecimento à que ele me dirigiu, serei tão conciso quanto possa. O senhor professor viu no filme "A Carta" qualquer cousa como "simpatia jansenista". Com efeito, o jansenismo sugerido na figura de soror Joana de Chantal surge como idéia de sina, como prenúncio dum destino do qual a senhora de Clèves se sente naquele momento vítima. Não se trata propriamente de simpatia, mas do pressentimento dessa força do destino que dá forma à história e que era tida nas tragédias gregas como mais forte que os deuses, situação, aliás, que já passa pelo romance "Princesa de Clèves".

Fé profunda
Concordo plenamente consigo, professor Felipe de Alencastro, quando diz: "Os missionários deviam evitar o questionamento da escravização dos nativos na África e no Brasil". Mas os deuses podem pouco ou nada contra o destino, e este terá razões que nos ultrapassam, e o que teve de acontecer ficou irremediavelmente acontecido. O que diz o padre Vieira nem sempre é aquilo que ele próprio desejaria. Levava remédio com a astúcia de quem sentia até onde poderia ir, até onde ele julgaria possível, embora isso não correspondesse por inteiro ao seu desejo, ideal e impossível. (O escravagismo naquela época era um dado aceite em todo o mundo -e irreversível-, contra o qual padre Vieira nada podia e disso tinha ele plena consciência).
Mesmo assim moderado foi preso e depois expulso de S. Luís do Maranhão. Quanto ao que li e me instruiu o professor padre João Marques, afigura-se-me que o padre Vieira era mais um humanista fora do tempo do que um santo, embora de fé profunda - se não, nem teria escrito a "Clavis Prophetarum"-, porque cuidava muito das cousas deste mundo como hábil político, em paralelo com sua alta missão evangelizadora. Veja que, nesse filme sobre ele, aceitei de braços abertos a sugestão de "Palavra e Utopia" para título.
A idéia que põe o padre Vieira por ter dito que "a escravidão dos africanos devia servir de garantia à liberdade dos índios" (perdoe-me, mas gozaram eles dessa liberdade neste final de século?). É preciso não esquecer que os índios são os únicos

Não vamos culpar Deus por nos ter criado ou Vieira pelo que não fez, embora isso possa confortar nossas más consciências


nativos de alto a baixo das Américas onde os negreiros despejaram os africanos da Etiópia, de Angola e de outras partes da África, e não apenas no Brasil. O Brasil pensa que isso foi obra exclusiva do português a quem chama de colono. Ora, os africanos despejados no Brasil e noutras partes das Américas eram um caso bem diferente dos índios, pois estavam criminosamente desenraizados e perdidos da sua identidade. Quem o fazia? Portugueses, sim, em boa parte e relativamente ao Brasil. Mas só portugueses? Não, bem nítido que não. Os próprios africanos, as tribos mais fortes, aprisionavam as mais fracas para as venderem aos brancos, aos europeus holandeses, ingleses, italianos, espanhóis, franceses, eu sei lá. E a primeira revolta ligada a Tiradentes, no Brasil não se levantou para eliminar a escravatura, mas tão só para transferir o poder, libertando o território da tutela de Portugal, o que veio a acontecer, mais tarde, voluntária e pacificamente por vontade de d. Pedro 4º de Portugal.

Ferro e fogo
Portugal tem culpas, mas, malgrado essas culpas, malgrado a escravização dos negros e até de índios, que nos deixa hoje uma triste memória para a história da colonização e que ainda hoje uma boa parte de brasileiros não cesse de culpar os portugueses, foram eles, os portugueses, que, principiando por encontrar a Terra de Vera Cruz, fizeram o Brasil, e o fizeram depois independente -país que é hoje essa grande e acolhedora nação multirracial e multinacional e um povo que gera simpatia em todo o lado do mundo. Há simpatias, sim, mas não há na Europa e no mundo nação que não tenha nascido a ferro e fogo, e isto se afirma no filme "A Carta" -porém o Brasil é uma boa excepção. Também não há raça superior a outra raça, nem nação ou povo superior a outro. Todo homem enraíza a mesma natureza. E é daí que o mal vem à humanidade. Há uma lenda no Génesis do Velho Testamento, sob o título "Corrupção da Humanidade", em que se lê a propósito da maldade dos homens: "O Senhor arrependeu-Se de ter criado o homem na terra, e o Seu coração sofreu amargamente". Não vamos agora culpar Deus por nos ter criado, ou culpar o padre Vieira pelo que não fez, ou pelo que fez o colono português, embora isso pudesse ser enganosamente confortável para as nossas más consciências. Não sou pessimista, porque optimista é enfrentar as realidades tais quais elas são e corrigi-las onde forem más. Também não deveremos olhar o passado e julgá-lo com a mentalidade de hoje. A mentalidade do século 17 era bem outra, e não se falava dos Direitos do Homem (os quais ainda hoje estão longe de serem respeitados em muitas latitudes), e é nesta circunstância que padre Vieira se eleva como homem de um espírito muito avançado ao do seu tempo. E será interessante assinalar que Portugal está à cabeça dos primeiros países europeus que aboliram a escravatura. O Brasil só o fez bastante mais tarde. A tarefa dos descobrimentos iniciados por Portugal, já em 1440, foi longa e arriscada, precisou de grande perseverança, sofrimento e destemor. Numa segunda viagem, destinada à Índia, quis Deus que Álvares Cabral aportasse às Terras de Vera Cruz. Faz agora 500 anos com a passagem do milénio. Mas o espírito que animou os descobrimentos, honra lhe seja feita, não era o de colonizar e dominar as terras que fossem encontradas, mas de cristianizar os seus povos, tendo por finalidade material encontrar um caminho marítimo para a Índia, pela guloseima das especiarias.

Novos mundos
Os maus hábitos colonialistas foram introduzidos posteriormente, e penso que cabia aos historiadores apurar bem e em profundidade por onde e por quem principiaram. Até porque os marinheiros portugueses, no tempo de Afonso de Albuquerque, casavam com as nativas das terras onde chegavam, e estabeleciam-se relações de amizade com esses povos. Mas não sou eu que devo falar disso, que não sou historiador. Convido a si, meu caro interlocutor, para se ocupar dessa parte. Mas, voltando aos descobrimentos, agora a propósito do filme "Não ou a Vã Glória de Mandar", é nesta atitude, proposição de dádiva, como dar novos mundos ao mundo, e não a de uma crítica, aliás justa quando posta a actos de conquista para um domínio impróprio, ou aos actos negativos, como o da escravização como fôra o caso dos negros, ou o da perseguição aos judeus no tempo da Inquisição que se estendeu a quase toda a Europa, mas que não tinham de fazer parte deste filme. Já Timor, Cabo Verde, Angola e Moçambique são elementos da essência deste mesmo filme, que não poderia ter sido feito se não tivesse acontecido o Movimento de 25 de Abril, movimento que alterou definitivamente o estatuto colonial português, dando plena autoridade ao Portugal de hoje no direito de reclamar a independência de Timor Leste, sua ex-colônia, porque não há maior vergonha do que a de ocupar um país ao qual se tinha acabado de dar a independência que lhe era devida, e nesse preciso momento sofrer a ocupação violenta do imperialismo indonésio. É certo que a independência dada às colónias portuguesas pela Revolução de 25 de Abril foi cumprida de um modo precipitado. Mas findou com brilho, honra e dignidade, embora com tristeza para alguns naturais e saudade para outros portugueses, ao ver Portugal, voluntária e pacificamente, fazer a passagem de Macau ao continente chinês.

Grande milagre
Ainda uma última cousa, meu caro professor Luiz Felipe de Alencastro. A questão que cita, sobre o dito do padre Vieira, "milagre e grande milagre", por terem à mão os missionários jesuítas a possibilidade de evangelizar os negros vindos de África. É necessário compreender que, para os religiosos jesuítas ou de qualquer outra ordem, o importante é a salvação da alma, tida para estes como imortal, mesmo que para isso sofra o corpo. Já para o ateu isto não tem sentido porque não crê na imortalidade da alma.
Mesmo assim, nos mostra a história que o ateu também é capaz de martirizar o corpo de quem quer que seja sem nenhum benefício para a "mortalidade" da alma. Não veja nisto que eu queira justificar escravaturas ou qualquer outro tipo de violência, seja em nome de quem for, e menos ainda em nome de Deus, pois ninguém por Ele faz justiça na Terra. Se Ele existe, lá está para a fazer sem a encomendar a nenhuma das igrejas. O meu filme sobre o padre Vieira sairá como uma lenda sobre a PALAVRA e a UTOPIA, mas tal como a história o indica. E, se ainda houver, senhor director da Folha, um pequeno espaço para meter esta redondilha, "Endechas a Bárbara Escrava", do nosso Camões, (nosso, porque o faz nosso a pátria língua) versos sentidos na Índia, e cuja imagem bem poderia ser aplicada ao Brasil. Com eles, o saúdo e termino:
"Aquela cativa
Que me tem cativo
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
(...)
Esta é a cativa
que me tem cativo,
E, pois nela vivo
É força que viva."
Porto, 1º dia do novo milénio - 2000


Manoel de Oliveira é cineasta português. Nasceu em 1908. Seu primeiro longa-metragem foi "Aniki-Bobó", feito em 1942. Realizou ainda "Amor de Perdição" (1978), "Os Canibais" (1988), entre outros. Seu filme mais recente, "A Carta", recebeu o Prêmio do Júri de Cannes em 1999. No ano passado, realizou no Brasil (Bahia e Maranhão) cenas de seu 20º filme, "Palavra e Utopia", sobre o padre Antonio Vieira (1608-1697). Em seu texto acima, foi mantida a grafia original.


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