São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003 |
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O herdeiro
Depois de escrever seu testamento, Franz Kafka entrou na biblioteca pública onde costumava consultar tratados de entomologia. Naquela tarde
de 1920, tomou um exemplar de "De Rerum Natura" e pôs-se a folhear sem
muita curiosidade. A lâmpada que pendia do teto piscou duas vezes e morreu.
Durante o claro-escuro que vacilara sobre seus ombros, Kafka viu as páginas
abertas diante dele estremecerem e suas mãos pousarem sobre elas, como a
protegê-las. Em seguida, as sombras se apossaram do livro e de suas mãos. E,
como não podia mais enxergar nem o exemplar que lia, nem suas mãos, Kafka
passou a não senti-las também, numa anulação combinatória de sentidos. Tomado de pânico, volveu os olhos ao redor, em busca de cumplicidade. Do outro lado da mesa, um homem deixava-se consumir pela leitura. Ignorado em
seu drama, Kafka voltou a cabeça em direção a uma mulher três cadeiras
adiante. Não conseguiu nada ali. Um menino que retorcia os dedos nervosamente era sua última esperança. Mas, como as demais, essa também fora uma
esperança vã. Era como se a lâmpada nunca tivesse se apagado. Era como se
não houvesse ninguém ali para percebê-lo. Tal qual a luminária morta, Kafka
se tornara uma sombra nas sombras da biblioteca. Adriana Lunardi é autora de "Vésperas" (editora Rocco). Texto Anterior: Sérgio Sant'Anna: Kafkas Próximo Texto: Os 65 sonhos Índice |
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