São Paulo, domingo, 16 de março de 2008

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Ponto de Fuga

Roleta russa


"Senhores do Crime" assinala feridas assustadoras abertas pela Inglaterra do hiperlibera- lismo, que transforma seres humanos em mercadoria; esse reino do vale-tudo modifica também as relações entre delinqüentes

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O corpo humano está sempre no núcleo das obsessões do diretor David Cronenberg, um corpo que ele machuca e manipula.
Infiltra epidemias, genes perversos, satura-o de gosmas nojentas, num fascínio por seu interior, mais pelas mucosas do que pelas carnes, mais pela linfa do que pelo sangue.
Seus dois últimos filmes, "Senhores do Crime" (2007) e "Marcas da Violência" (2005), parecem, no entanto, se distanciar de seu universo espetacular e bizarro, que facilmente envereda pelo fantástico, e empregar um material mais prosaico. É só uma aparência. "Senhores do Crime", um thriller com algo do melodrama, revela atrás disso as mesmas idéias fixas. De novo, trata-se de um filme sobre o corpo. Primeiro, o de Nikolai, interpretado por Viggo Mortensen: o diretor o toma como se fosse um brinquedo: despe, veste, tatua, fere.
Há um diário, na história, escrito em russo, que deve ser traduzido para que o enigma aflore. Mas o personagem central também é secreto e, enquanto não for inteiramente decifrado, a revelação não se faz. Sua pele, coberta de tatuagens, é exposta para ser lida.
Há outro corpo, o de um recém-nascido, e com ele afloram os mistérios orgânicos da maternidade, os laços enganosos, feitos em trompe-l'oeil, da família, que Cronenberg havia levado a extremos terríveis e paradoxais com "Filhos do Medo" (1979), "Gêmeos - Mórbida Semelhança" (1988) e "M. Butterfly" (1993). Há a ferocidade dos instintos, voraz quando declarada, perversa quando negada ou dissimulada. Neste último caso, ela se concentra sobretudo num desejo homossexual inconfesso que se insinua em filigrana.

Sombras
"Senhores do Crime" é um falso filme realista. Reconstitui Londres em estúdio para torná-la escusa, turva, asfixiante. Cidade glacial e ameaçadora.
Tem a natureza contraditória de uma abstração imaginária e de um organismo concreto.

Covis
Dentro da cidade, o que se desenha como universo coerente está inteiramente fora da lei. Império da exceção, estado paralelo regido por chefões criminosos, no interior do qual todas as regras são irrisórias e sucumbem sob o poder do mais forte. Máfia russa, rede de prostituição, tráfico de drogas, crueldade: "Senhores do Crime" assinala feridas assustadoras abertas pela Inglaterra do hiperliberalismo, que transforma seres humanos em mercadoria. Esse reino do vale-tudo modifica também as relações entre delinqüentes. O crime organizado estraçalha-se pela concorrência interna. Entredevora-se, mas não destrói a própria dinâmica.
De modo surpreendente, o último Cronenberg completa, como num díptico, o último Ken Loach, dois cineastas em princípio tão distantes entre si.
"Mundo Livre", de 2007 como "Senhores do Crime", exibe a mesma Inglaterra infiltrada por gangues em conflito que estabelecem um comércio moderno de escravos. O irônico mundo livre de Loach expõe o tráfico não de jovens prostitutas, mas de trabalhadores clandestinos. Em ambos, o fornecimento se faz nos países do Leste Europeu.

Angústias
Cronenberg diz sobre "Senhores do Crime": "Mostro a violência de maneira frontal porque eu a levo muito a sério.
Sou ateu, não creio na vida depois da morte. Quando se comete um crime, destrói-se alguma coisa para sempre. Não há nenhuma razão para "desrealizar" esse ato ou evacuá-lo do alcance da câmera. É preciso mostrá-lo. E não há nada de lúdico nessa violência. Nada a ver com Tarantino, por exemplo".


jorgecoli@uol.com.br


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