|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de Fuga
Roleta russa
"Senhores
do Crime" assinala feridas assustadoras abertas pela Inglaterra do hiperlibera-
lismo, que transforma seres humanos em mercadoria; esse reino do vale-tudo modifica também as relações entre delinqüentes
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O corpo humano está
sempre no núcleo das
obsessões do diretor
David Cronenberg, um corpo
que ele machuca e manipula.
Infiltra epidemias, genes perversos, satura-o de gosmas nojentas, num fascínio por seu interior, mais pelas mucosas do
que pelas carnes, mais pela linfa do que pelo sangue.
Seus dois últimos filmes,
"Senhores do Crime" (2007) e
"Marcas da Violência" (2005),
parecem, no entanto, se distanciar de seu universo espetacular e bizarro, que facilmente
envereda pelo fantástico, e empregar um material mais prosaico. É só uma aparência.
"Senhores do Crime", um
thriller com algo do melodrama, revela atrás disso as mesmas idéias fixas. De novo, trata-se de um filme sobre o corpo. Primeiro, o de Nikolai, interpretado por Viggo Mortensen: o diretor o toma como se
fosse um brinquedo: despe,
veste, tatua, fere.
Há um diário, na história, escrito em russo, que deve ser
traduzido para que o enigma
aflore. Mas o personagem central também é secreto e, enquanto não for inteiramente
decifrado, a revelação não se
faz. Sua pele, coberta de tatuagens, é exposta para ser lida.
Há outro corpo, o de um recém-nascido, e com ele afloram
os mistérios orgânicos da maternidade, os laços enganosos,
feitos em trompe-l'oeil, da família, que Cronenberg havia levado a extremos terríveis e paradoxais com "Filhos do Medo"
(1979), "Gêmeos - Mórbida Semelhança" (1988) e "M. Butterfly" (1993). Há a ferocidade
dos instintos, voraz quando declarada, perversa quando negada ou dissimulada. Neste último caso, ela se concentra sobretudo num desejo homossexual inconfesso que se insinua
em filigrana.
Sombras
"Senhores do Crime" é um
falso filme realista. Reconstitui
Londres em estúdio para torná-la escusa, turva, asfixiante.
Cidade glacial e ameaçadora.
Tem a natureza contraditória
de uma abstração imaginária e
de um organismo concreto.
Covis
Dentro da cidade, o que se
desenha como universo coerente está inteiramente fora da
lei. Império da exceção, estado
paralelo regido por chefões criminosos, no interior do qual todas as regras são irrisórias e sucumbem sob o poder do mais
forte. Máfia russa, rede de prostituição, tráfico de drogas,
crueldade: "Senhores do Crime" assinala feridas assustadoras abertas pela Inglaterra do
hiperliberalismo, que transforma seres humanos em mercadoria. Esse reino do vale-tudo
modifica também as relações
entre delinqüentes. O crime organizado estraçalha-se pela
concorrência interna. Entredevora-se, mas não destrói a própria dinâmica.
De modo surpreendente, o
último Cronenberg completa,
como num díptico, o último
Ken Loach, dois cineastas em
princípio tão distantes entre si.
"Mundo Livre", de 2007 como "Senhores do Crime", exibe
a mesma Inglaterra infiltrada
por gangues em conflito que estabelecem um comércio moderno de escravos. O irônico
mundo livre de Loach expõe o
tráfico não de jovens prostitutas, mas de trabalhadores clandestinos. Em ambos, o fornecimento se faz nos países do Leste Europeu.
Angústias
Cronenberg diz sobre "Senhores do Crime": "Mostro a
violência de maneira frontal
porque eu a levo muito a sério.
Sou ateu, não creio na vida depois da morte. Quando se comete um crime, destrói-se alguma coisa para sempre. Não há nenhuma razão para "desrealizar" esse ato ou evacuá-lo
do alcance da câmera. É preciso
mostrá-lo. E não há nada de lúdico nessa violência. Nada a ver
com Tarantino, por exemplo".
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os Dez + Próximo Texto: Filmoteca Básica: O Gosto dos Outros Índice
|