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Fé na
encruzilhada
Tolerante, "O Espírito do Ateísmo", do filósofo André Comte-Sponville, rebate a religião ao invocar o pensamento iluminista
EDUARDO RODRIGUES DA CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O novo livro de André Comte-Sponville, "O Espírito
do Ateísmo", tem
como subtítulo
"Introdução a uma Espiritualidade sem Deus" e é de fato
uma introdução: curto, sem
notas de rodapé nem raciocínios tortuosos. É também autobiográfico em estilo: o autor
fala a partir de suas próprias
experiências e as compara
com as tradições filosófica
ocidental e oriental.
O autor, como se sabe, faz
parte de uma geração de filósofos franceses "pós-68", que,
sem ser pós-moderna, transcende o marxismo e o existencialismo de seus mestres.
Esses filósofos sentem a necessidade de se colocar a
questão de Deus e da religião
nos dias de hoje. Eles podem
divergir em muitos pontos,
mas se consideram proponentes de um humanismo no espírito das luzes e defensores
do laicismo.
A presente obra, como nos
sugere o título, é uma defesa
da dignidade do ateísmo. Ao
contrário do biólogo Richard
Dawkins e outros "brights" de
língua inglesa, entretanto,
não faz disso uma cruzada anti-religiosa. É dentro do espírito de tolerância que elabora
sua defesa.
Também diferentemente
desse segundo grupo, não
constrói seu apreço pelo
ateísmo em nome da ciência
moderna, mas, sim, de valores
iluministas: tolerância, liberdade, laicidade.
Seu livro se divide em três
partes: o primeiro capítulo,
intitulado "Pode-se Viver sem
Religião?", mostra, assim como muitos de seus contemporâneos, que é possível uma vida plenamente humana e feliz sem professar uma religião ou
pertencer a uma igreja.
Ao contrário da fé, propõe
comunhão (seguindo Durkheim), fidelidade e amor.
O segundo capítulo é mais
filosófico e se pauta pela pergunta "Deus existe?". Revisita
as tradicionais "provas" da
existência de Deus e as refuta
seguindo seis argumentos
modernos típicos. Mas, novamente, o central é considerar
Deus como entrave a um autêntico humanismo.
O terceiro capítulo, por fim,
expõe sua proposta de uma vida espiritual -"Que Espiritualidade para os Ateus?". Fala aqui de suas experiências e
personalidade místicas, reiterando que Deus e a religião
barram a realização e a fruição de tais experiências.
Se os dois primeiros capítulos seguem padrões mais ou
menos conhecidos, nos quais
o autor evita polemizar com
os teístas, o terceiro é bastante "sui generis" para o espírito
moderno.
"Ateu cristão"
Michel Onfray qualifica
Comte-Sponville como "ateu
cristão" (em "Tratado de
Ateologia", ed. Martins Fontes) e, com isso, indica uma
fraqueza da posição deste,
mas nosso autor vê isso como
favorável a seu argumento.
Não só ele se coloca em continuidade com a tradição cristã, respeitando-a (por exemplo, ao entender o melhor da religião como "fidelidade" e
"respeito ao passado") como
também a evoca em defesa de
sua espiritualidade.
Suas fontes são cristãs e
não-cristãs: Lao-tsé e Agostinho, Pascal, Montaigne e Espinosa, Wittgenstein, Krishnamurti e Prajnanpad.
Desses autores, destaca o
viés místico e, para melhor caracterizar sua mística, teólogos como De Lubac e Brunner
são citados. Esta é estoicista,
como ele reitera ao longo do
texto. Afirma que sua metafísica (por exemplo, o real como
perfeito) e sua postura (por
exemplo, serenidade e aceitação) não levam à inação política, mas o argumento não me
parece muito convincente.
Consciência crítica
O autor parece ter sido afetado por uma disposição muito comum na modernidade
tardia: uma volta à espiritualidade, mas recusando o Deus
cristão e sua igreja.
Busca fontes orientais, mas
as traduz em termos de Ocidente, rejeita a metafísica,
mas fala com desenvoltura do
"absoluto", da "verdade" e de
outros universais.
Mas isso pode ser uma vantagem para o leitor que não
dispensa uma consciência crítica. É um livro que vale a pena
ser lido, não só por apresentar
o pensamento de um influente filósofo contemporâneo como por seu estilo agradável,
acessível e eminentemente
pessoal. Não pude compará-lo
com o original francês, mas a
tradução não parece apresentar problemas.
EDUARDO RODRIGUES DA CRUZ é professor
no departamento de teologia e no programa de
pós-graduação em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (SP).
O ESPÍRITO DO ATEÍSMO
Autor: André Comte-Sponville
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: WMF Martins Fontes
(tel. 0/xx/11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 32,50 (194 págs.)
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