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Leia crítica sobre o pintor italiano, escrita em 1947 por Mário Pedrosa
e agora reeditada no livro "Modernidade Cá e Lá - Textos Escolhidos 4",
organizado por Otília Arantes
Giorgio Morandi
por Mário Pedrosa
Nessa pintura italiana moderna, tão cheia de tenores e barítonos, Giorgio Morandi é um músico de câmera que evita as fermatas, os dós de
peito e as tiradas teatrais.
É ele, em verdade, o menos "italiano" de seus pintores, embora, talvez, por isso mesmo, seja o mais universal deles. Morandi é dessas raras personalidade que passam fugazmente pelas escolas e modas, mas sem deixar
por essas incursões pedaços de si mesmo, porque para
ele nunca se tratou de se apresentar como um "ista"
qualquer, fosse futurista ou metafisista, cubista ou fauvista. Sua passagem por aquelas escolas ou modas é como a projeção, em círculos cada vez mais vastos, da
sombra de uma jovem árvore que cresce.
Em meio ao turbilhão moderno, Morandi conserva a
humildade do artesão medieval e a pureza de arte de um
Bach. Como o navegante de balão que joga lastro para
galgar alturas cada vez mais inacessíveis, o pintor bolonhês se vai despindo de tudo e, para começar, do mundo sedutor de anedotas num país que adora a ópera e o
teatro; e depois da mitologia figurativa num povo adorador do gesto, da estatuária e da monumentalidade.
De redução em redução, ele se despede também de si
mesmo para dedicar-se exclusivamente à natureza, mas
através do contato de sua sensibilidade com o mundo
das coisas inanimadas, dos objetos mambembes de uso
doméstico. Morandi não participou dessa tarefa ciclópica e irracional em que se empenham tantos artistas
modernos, qual a de contribuir para a formação de uma
nova mitologia, transformando deuses em manequins
e heróis em fantasmas, a pairarem no alto dos arranha-céus das metrópoles de hoje. Ele aparece antes como o
junco pensante de Pascal a curvar-se ante o mistério das
coisas humildes e sem grandeza. Sua atitude é a da formiga que pára diante de cada montículo de pó, de cada
partícula de folha que encontra em seu caminho.
Para Morandi a copa de uma árvore encerra o universo, ou uma porta ou um muro engrinaldado de folhas
pode compor o mundo. Suas paisagens são "a paisagem", e desta o homem não participa. Para quê? É à essência das coisas naturais que ele as resume: nessas paisagens as cores se substancializam na luz, as formas são
finais, e o que há do homem no quadro é reduzido aos
esquemas inevitáveis, à sua obra. O homem em pessoa
não está ali, porque o homem é ele, o artista místico, severo e sábio bastante para ter amor às coisas sem vida, e
à árvore e à luz, mas apagando-se diante da própria
obra. O criador não precisa de aparecer ao alcance da
objetiva, porque sabe quanto é respeitável o esforço e
desprezivelmente provisórios os resultados.
Em lugar da mitologia, ele se debruça sobre o objeto
sem alma, em busca da matéria. Sua natureza-morta é
morta mesmo, já que até da matéria orgânica teme ele o
expansionismo subjetivo. É a natureza mineral que o
absorve, nas formas em que a plasma a mão artesanal
do oleiro, do vidraceiro, do fiandeiro. O vaso de cerâmica o fascina e também a garrafa de vidro ou a ânfora milenar.
Quando a arte se desnuda até essas humílimas profundezas, é que o universo para o criador já não se mede
pela extensão geográfica ou as ilusões da perspectiva espacial. Ele se condensa na palpitação da matéria inanimada, na porosidade vascular por onde até as pedras
respiram. O artista se acerca, imperceptivelmente, a poder de paciência, tolerância e presciência, do mistério
da vida.
Morandi permite que as cores desertem, se querem, a
sua tela, como o criador de passarinhos abre um dia a
gaiola para deixá-los fugir, e ganhar o azul. Desse adejar
das cores, ainda fica um azul, ou umas réstias verdes ou
roxas que acabam enlanguescidas no cinza, cor das coisas, cor do mundo. Um objeto em si mesmo é cinzento,
como é "cinzento" um dia isolado, solitário, sem abertura para o céu.
Com esse mundo de cinza intuitivo, ele argamassa as
suas garrafas, seus vasos, dando-lhes a cada qual a tonalidade própria. No entanto, de local que era, essa tonalidade acaba sendo, inexplicavelmente, a expressão bruxuleante da matéria de todos os objetos.
Giorgio Morandi de Bolonha, Itália, com 57 anos de
idade, vira, porém, as costas aos museus, e trocando a
caixa de rapé de Chardin ou a maçã de Cézanne pela
garrafa, reconstrói formalmente o mundo dos objetos
caseiros revelado pelo antepassado do século 18, acrescentando-lhe a dignidade de museu que tanto procurou, para suas naturezas-mortas e suas paisagens, o avô
francês, mestre em Aix-en-Provence.
As experiências "primitivas" de Cézanne foram de
certo modo "realizadas" nas garrafas e ânforas de Giorgio Morandi. Homem provavelmente tímido, esse Morandi é, entretanto, um rebelde que atravessou o fascismo, qualquer que tenha sido a sua atitude externa, heroicamente solitário, de um individualismo ferozmente
anarquista. Com as aparências submissas que possa ter
a sua arte, que intransigente revolucionário não é ele?
Nenhum de seus contemporâneos rompeu com maior
bravura do que ele com toda a tradição pictórica de seu
país. Sendo, contudo, o mais puro dos artistas modernos, é, ao mesmo tempo, o mais arcaico deles, pois sua
alma artesanal, inteiramente devotada à recriação cotidiana de frascos e garrafas, pede, contudo, os dons, a sabedoria e a paciência dos descobridores.
O êxito de Morandi só agora começa a generalizar-se
um pouco por toda parte. É o que acontece atualmente
na Suíça, na Inglaterra e na própria França. Dentro de
seu país, seu nome já é pronunciado com profunda reverência. Uma arte tão desnuda e severa quanto a dele é
das que demoram em revelar-se em todo o seu fascínio.
Mas uma vez reveladas permanecem. Seu triunfo está
assegurado, e o nome do artista será guardado, provavelmente, pelos que vierem depois de nós, como um
dos poucos e autênticos mestres de nossa época.
LIVROS DE MÁRIO PEDROSA
"Política das Artes - Textos Escolhidos 1"
"Forma e Percepção - Textos Escolhidos 2"
"Acadêmicos e Modernos - Textos Escolhidos 3"
"Modernidade Cá e Lá - Textos Escolhidos 4" (Edusp)
"Mundo, Homem, Arte em Crise" (Perspectiva)
"Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília" (Perspectiva)
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