São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Leia crítica sobre o pintor italiano, escrita em 1947 por Mário Pedrosa e agora reeditada no livro "Modernidade Cá e Lá - Textos Escolhidos 4", organizado por Otília Arantes
Giorgio Morandi

por Mário Pedrosa

Nessa pintura italiana moderna, tão cheia de tenores e barítonos, Giorgio Morandi é um músico de câmera que evita as fermatas, os dós de peito e as tiradas teatrais.
É ele, em verdade, o menos "italiano" de seus pintores, embora, talvez, por isso mesmo, seja o mais universal deles. Morandi é dessas raras personalidade que passam fugazmente pelas escolas e modas, mas sem deixar por essas incursões pedaços de si mesmo, porque para ele nunca se tratou de se apresentar como um "ista" qualquer, fosse futurista ou metafisista, cubista ou fauvista. Sua passagem por aquelas escolas ou modas é como a projeção, em círculos cada vez mais vastos, da sombra de uma jovem árvore que cresce.
Em meio ao turbilhão moderno, Morandi conserva a humildade do artesão medieval e a pureza de arte de um Bach. Como o navegante de balão que joga lastro para galgar alturas cada vez mais inacessíveis, o pintor bolonhês se vai despindo de tudo e, para começar, do mundo sedutor de anedotas num país que adora a ópera e o teatro; e depois da mitologia figurativa num povo adorador do gesto, da estatuária e da monumentalidade.
De redução em redução, ele se despede também de si mesmo para dedicar-se exclusivamente à natureza, mas através do contato de sua sensibilidade com o mundo das coisas inanimadas, dos objetos mambembes de uso doméstico. Morandi não participou dessa tarefa ciclópica e irracional em que se empenham tantos artistas modernos, qual a de contribuir para a formação de uma nova mitologia, transformando deuses em manequins e heróis em fantasmas, a pairarem no alto dos arranha-céus das metrópoles de hoje. Ele aparece antes como o junco pensante de Pascal a curvar-se ante o mistério das coisas humildes e sem grandeza. Sua atitude é a da formiga que pára diante de cada montículo de pó, de cada partícula de folha que encontra em seu caminho.
Para Morandi a copa de uma árvore encerra o universo, ou uma porta ou um muro engrinaldado de folhas pode compor o mundo. Suas paisagens são "a paisagem", e desta o homem não participa. Para quê? É à essência das coisas naturais que ele as resume: nessas paisagens as cores se substancializam na luz, as formas são finais, e o que há do homem no quadro é reduzido aos esquemas inevitáveis, à sua obra. O homem em pessoa não está ali, porque o homem é ele, o artista místico, severo e sábio bastante para ter amor às coisas sem vida, e à árvore e à luz, mas apagando-se diante da própria obra. O criador não precisa de aparecer ao alcance da objetiva, porque sabe quanto é respeitável o esforço e desprezivelmente provisórios os resultados.
Em lugar da mitologia, ele se debruça sobre o objeto sem alma, em busca da matéria. Sua natureza-morta é morta mesmo, já que até da matéria orgânica teme ele o expansionismo subjetivo. É a natureza mineral que o absorve, nas formas em que a plasma a mão artesanal do oleiro, do vidraceiro, do fiandeiro. O vaso de cerâmica o fascina e também a garrafa de vidro ou a ânfora milenar.
Quando a arte se desnuda até essas humílimas profundezas, é que o universo para o criador já não se mede pela extensão geográfica ou as ilusões da perspectiva espacial. Ele se condensa na palpitação da matéria inanimada, na porosidade vascular por onde até as pedras respiram. O artista se acerca, imperceptivelmente, a poder de paciência, tolerância e presciência, do mistério da vida.
Morandi permite que as cores desertem, se querem, a sua tela, como o criador de passarinhos abre um dia a gaiola para deixá-los fugir, e ganhar o azul. Desse adejar das cores, ainda fica um azul, ou umas réstias verdes ou roxas que acabam enlanguescidas no cinza, cor das coisas, cor do mundo. Um objeto em si mesmo é cinzento, como é "cinzento" um dia isolado, solitário, sem abertura para o céu.
Com esse mundo de cinza intuitivo, ele argamassa as suas garrafas, seus vasos, dando-lhes a cada qual a tonalidade própria. No entanto, de local que era, essa tonalidade acaba sendo, inexplicavelmente, a expressão bruxuleante da matéria de todos os objetos.
Giorgio Morandi de Bolonha, Itália, com 57 anos de idade, vira, porém, as costas aos museus, e trocando a caixa de rapé de Chardin ou a maçã de Cézanne pela garrafa, reconstrói formalmente o mundo dos objetos caseiros revelado pelo antepassado do século 18, acrescentando-lhe a dignidade de museu que tanto procurou, para suas naturezas-mortas e suas paisagens, o avô francês, mestre em Aix-en-Provence.
As experiências "primitivas" de Cézanne foram de certo modo "realizadas" nas garrafas e ânforas de Giorgio Morandi. Homem provavelmente tímido, esse Morandi é, entretanto, um rebelde que atravessou o fascismo, qualquer que tenha sido a sua atitude externa, heroicamente solitário, de um individualismo ferozmente anarquista. Com as aparências submissas que possa ter a sua arte, que intransigente revolucionário não é ele? Nenhum de seus contemporâneos rompeu com maior bravura do que ele com toda a tradição pictórica de seu país. Sendo, contudo, o mais puro dos artistas modernos, é, ao mesmo tempo, o mais arcaico deles, pois sua alma artesanal, inteiramente devotada à recriação cotidiana de frascos e garrafas, pede, contudo, os dons, a sabedoria e a paciência dos descobridores.
O êxito de Morandi só agora começa a generalizar-se um pouco por toda parte. É o que acontece atualmente na Suíça, na Inglaterra e na própria França. Dentro de seu país, seu nome já é pronunciado com profunda reverência. Uma arte tão desnuda e severa quanto a dele é das que demoram em revelar-se em todo o seu fascínio. Mas uma vez reveladas permanecem. Seu triunfo está assegurado, e o nome do artista será guardado, provavelmente, pelos que vierem depois de nós, como um dos poucos e autênticos mestres de nossa época.


LIVROS DE MÁRIO PEDROSA
"Política das Artes - Textos Escolhidos 1"
"Forma e Percepção - Textos Escolhidos 2"
"Acadêmicos e Modernos - Textos Escolhidos 3"
"Modernidade Cá e Lá - Textos Escolhidos 4" (Edusp)
"Mundo, Homem, Arte em Crise" (Perspectiva)
"Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília" (Perspectiva)




Texto Anterior: por Ferreira Gullar Mário: A Pedrosa, com carinho
Próximo Texto: + brasil 500 d.C. - Evaldo Cabral de Mello: Collingwood e o ofício do historiador
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.