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O historiador Peter Gay comenta "Meu Século", livro do escritor alemão
Günter Grass, ganhador do Nobel de Literatura de 1999, que está
sendo lançado no Brasil
Uma testemunha nebulosa
Peter Gay
especial para "The NYT Book Review"
Quando Günter Grass recebeu o Nobel de Literatura, em 1999, vários de seus fiéis leitores, incluindo
este resenhista, receberam a notícia com prazer e alívio:
finalmente! Durante quatro décadas, Grass abalou o establishment literário alemão com seus originais poemas, peças, novelas, romances curtos e longos -geralmente longos. Ao mesmo tempo; um dotado desenhista, ele realizou belas capas e ilustrações para seus livros.
Desde que seu primeiro romance -"O Tambor"-
explodiu sobre os leitores alemães, há 40 anos, ele conquistou um vasto público -e não apenas na Alemanha-, que com frequência se delicia, às vezes se irrita e
principalmente se surpreende com suas ficções criativas. Na época, os críticos literários alemães, surpresos
com "O Tambor", claramente o romance mais importante surgido até então na Alemanha do pós-guerra,
procuraram adjetivos para caracterizar a história do
anão maligno que literalmente se recusa a crescer, tentando escapar do inferno que seus conterrâneos criaram ao redor. Eles consideraram o livro picaresco ou
surrealista, e de fato era uma espécie de quadro de
Bosch em palavras. Qualquer que fosse a opinião dos
resenhistas, porém, eles sabiam que tinham nas mãos
um talento de primeira grandeza.
Desde então Grass empregou seus formidáveis poderes imaginativos para cruzar a paisagem literária, mas
sempre permanecendo reconhecível, com sua voz pujante, telúrica, explicitamente sexual, às vezes irada.
Um censor no sentido da Roma antiga, ele retratou
seus compatriotas como cúmplices do regime nazista
ou obscenamente auto-indulgentes na nova prosperidade após a derrota de 1945.
Nem a chamada República Democrática Alemã ficou
ilesa. Em sua peça mais conhecida, "Os Plebeus Ensaiam o Motim", de 1966, ele levantou algumas questões
desconfortáveis sobre a atitude de Bertolt Brecht, na
época o nome mais conhecido do teatro alemão-oriental, em relação aos trabalhadores rebeldes.
Um animal eminentemente político,
Grass sempre se posicionou na esquerda
independente. Mas nunca foi escravo de
qualquer linha; nem mesmo sua casa política favorita, o Partido Social-Democrata, obteve dele uma lealdade constante.
Na década de 70 Grass revelou suas crenças mais antiutópicas ao desenhar um
caramujo sobre um prato, com a legenda: "O progresso é um caramujo". Em 1990, quando a
pressão para unificar os dois Estados alemães, oriental e
ocidental, tornou-se predominante e irresistível, Grass
falou por uma pequena minoria de espíritos livres, objetando-se à reunificação com o argumento de que depois de Auschwitz a Alemanha não merecia ressurgir
como uma grande potência européia. Seu protesto foi
afogado pelo entusiasmo geral, mas ele disse o que tinha
a dizer.
Empregando seus talentos prodigiosos para mover-se
de um experimento a outro, Grass correu riscos consideráveis. Mas, com exceção de pequenos desvios, suas
obras geralmente tiveram acentuado sucesso, tanto de
vendas como de crítica. Infelizmente, "Meu Século" não
deverá ter. A arrogância adotada por Grass não é isenta
de possibilidades, mas ele não consegue percebê-las. O
autor reuniu cerca de cem vinhetas, cada uma ligada a
um ano, de 1900 a 1999, com duas ou três páginas de extensão e todas narradas na primeira pessoa. Mas, com
exceção de dois períodos -a Primeira e a Segunda
Guerras Mundiais-, os narradores trocam suas identidades, tornando impossível para o leitor identificar-se
com qualquer deles por mais de um instante.
Sem nenhuma dúvida, a variedade das invenções de
Grass é impressionante -ele pôs em ação sua famosa
criatividade. O narrador é um trabalhador desempregado, uma garota perturbada num grupo de teatro, um
personagem criado por sir Arthur Conan Doyle, um
guarda de campo de concentração nazista, uma mãe
operária, um senador da cidade de Hamburgo, uma
viúva de estivador, um empregado do imperador exilado Guilherme 2º, para não falar no próprio Grass.
As intenções do autor são óbvias: ele tentou construir
um mosaico da história alemã ao longo do século 20 por
meio das diversas vozes de seus participantes. Cada
"ano" tem o objetivo de esclarecer um evento ou criar
uma atmosfera; o conjunto, sem narração consecutiva,
comentário ou análise, o de formar um retrato vívido.
Em vez disso, Grass produziu uma coleção de fragmentos que não conseguem se agregar.
Fatos difíceis
Não que os episódios sejam mal contados. O velho poder de Grass para envolver o leitor
continua presente. Mas a escolha de testemunhas parece arbitrária, seguindo princípios impenetráveis. Mais
significativo é o fato de que Grass, antes sempre capaz
de enfrentar o horror e o desastre, parece perder a fibra
em "Meu Século". Ao tentar capturar os anos terríveis
da Segunda Guerra Mundial, ele não cria
cenas independentes entre 1939 e 1945,
mas prefere uma reunião de correspondentes de guerra alemães rememorando
suas experiências em 1962, como se a catástrofe fosse demasiada para suportar. É
nesse trecho alienante que Grass menciona, de modo quase casual, o assassinato em massa dos judeus europeus pelos nazistas, como se também achasse impossível enfrentar o fato.
Até para os leitores alemães, que podem desfrutar certa emoção ao se identificar com alguns episódios, é uma
estranha maneira de reconstruir o passado, cheia de
alusões a fatos remotos, às vezes esotéricos. Para os outros, além dos poucos versados em história alemã, é
quase garantida uma constante confusão. Certamente
notas de rodapé ou explicações no texto teriam destruído a espontaneidade das testemunhas reunidas por
Grass.
Mas o que um estrangeiro não especializado pode entender do trecho relativo a 1911, que é uma carta de autor não identificado (na verdade, o Kaiser Guilherme
2º) para um "querido Eulenberg", que parece ter sido
maltratado por "aquele canalha do Harden". É essencial
saber que Harden foi um jornalista que expôs publicamente Eulenberg, o favorito particular do imperador,
como membro de um grupo secreto homossexual.
Uma reportagem traiçoeira
Novamente, em
1922, lemos sobre o "Kapp putsch" de "lamentável fim",
sem que nos seja informado de que se refere à tentativa
monarquista de derrubar a pujante República de Weimar, dois anos antes, que foi frustrada por uma greve
geral. Finalmente, para dar apenas mais um exemplo de
uma lista que poderia se estender, ouvimos falar no "caso Spiegel", sem mais comentários -uma menção incompreensível se não soubermos que em 1962 o governo prendeu os editores e correspondentes da revista semanal "Der Spiegel" por terem publicado uma reportagem "traiçoeira", uma inepta ação policial muito semelhante às táticas nazistas que acabou se transformando
em escândalo e acabou causando a renúncia do poderoso ministro da Defesa Franz Joseph Strauss.
Visualizamos o leitor atônito consultando com frequência um almanaque histórico da Alemanha moderna ou simplesmente desistindo, desesperado. Talvez o
editor tenha pensado que qualquer livro de autor tão
importante quanto Günter Grass merecesse tradução,
mas é altamente improvável que "Meu Século" aumente a reputação de Grass. Talvez possamos nos consolar
com a idéia de que, ainda no início de seus 70 anos, ele
possa se recuperar e dar ao mundo outra obra-prima.
Peter Gay é professor emérito de história na Universidade Yale (EUA), autor, entre outros, de "Freud - Uma Vida para Nosso Tempo" (Companhia
das Letras) e Mozart" (Objetiva).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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