São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

1954

Günter Grass

Não estive em Berna, contudo ouvi pelo rádio, ao redor do qual nós, jovens economistas, nos reunimos em meu quarto de estudante em Munique, e acompanhei o petardo de Schäfer em direção à grande área dos húngaros. Sim, mesmo hoje, bem mais velho, ainda ativo, porém, como chefe de uma firma de consultoria com sede em Luxemburgo, parece-me ver como Helmut Rahnn, apelidado por todos de "chefe", se apossa da bola numa corrida. Agora arremessa, não, dribla dois adversários que tentam impedi-lo, passa por outros zagueiros e, de uma distância de uns bons 14 metros, chuta a bomba no canto esquerdo do gol. Indefensável para Grosics. Seis ou cinco minutos antes do apito final: 3 a 2. E os húngaros contra-atacam. Após uma jogada de Kocsis, Puskas acerta. Mas o gol é anulado. Não adianta protestar. Segundo consta, o major do exército húngaro estava impedido. E no último minuto, Czibor avança com a bola, chuta de uma distância de 7 ou 8 metros no canto do gol, porém, num vôo nas alturas, Toni Tulrek defende com as duas mãos. Ainda um lançamento lateral para os húngaros. Então mister Ling sopra o apito final. Somos campeões do mundo, mostramos isso ao mundo, estamos de novo por cima, não somos mais os derrotados, cantamos sob guarda-chuvas no estádio de Berna, assim como nós em volta do rádio em meu quarto de estudante em Munique, "Über alles in der Welt", "Acima de tudo no mundo".
Todavia minha história não termina aqui. Na verdade, apenas está começando. Pois meus heróis do dia 4 de julho de 1954 não se chamavam Czibor ou Rahn, nem Hidegkuti ou Morlock; não, décadas a fio, como economista e consultor financeiro, e até mesmo agora, a partir deste meu domicílio em Luxemburgo, cuidei, sem nenhum sucesso, do bem-estar financeiro de meus ídolos Fritz Walter e Ferenc Puskas. Mas não aceitaram minha ajuda. Minha tentativa de construir uma ponte entre os povos, superando qualquer nacionalismo, foi ilusória. Ao contrário, logo após o grande jogo tornaram-se inimigos fidagais, porque o major húngaro acusara os jogadores de mania de grandeza, até mesmo de doping. Teria dito: "Quando jogam, eles soltam espuma pela boca".
Somente anos mais tarde, quando já jogava sob contrato no Real Madrid, mas ainda estava proibido de jogar em campos alemães, dignou-se a fazer um pedido de desculpas por escrito, de maneira que nada mais havia que pudesse impedir uma associação comercial entre Walter e Puskas; e minha firma imediatamente tentou a intermediação através de uma consultoria.
Inútil empenho movido pela paixão! Embora Fritz Walter recebesse condecorações, fosse chamado de "Rei de Betzenberg", seus contratos de propaganda, muito mal pagos, para a Adidas e para uma firma de champanhe, que até mesmo pôde denominar algumas marcas com o seu nome -por exemplo, "Coroação de Fritz Walter" -, não trouxeram lucro; somente depois que seus sucessos de venda, os livros sobre Sepp Herberger, o técnico da seleção alemã, e sobre a inesquecível vitória do time de Walter, lhe engordassem a conta bancária, é que pôde abrir em Kaiserslautern, perto das ruínas da fortaleza, um cinema simples com uma casa lotérica na entrada. De fato, tudo bastante humilde, pois não entrava muito dinheiro. No entanto, já no começo os anos 50 poderia ter tentado a sorte na Espanha. O Atlético de Madrid manara um emissário com 250 mil em dinheiro vivo numa mala. Porém o modesto Fritz, aliás modesto demais, recusou, queria permanecer na região do Palatinado e ser o rei por lá, apenas lá.
Bem diferente o Puskas. Após a sangrenta revolta na Hungria, como estava em viagem pela América do Sul com a seleção nacional húngara, ficou no lado de cá, abriu mão de seu restaurante lucrativo em Budapeste e assumiu mais tarde a nacionalidade espanhola. Não teve problemas com o regime de Franco, pois trazia na bagagem experiência proveitosa da Hungria, onde o partido dominante -à semelhança do que ocorrera com Zatopek na Tchecoslováquia- o celebrar como "herói do socialismo". Jogou no Real Madrid durante sete anos e amealhou milhões que enfiou numa fábrica de salames e frios, Salsichas Puskas, e exportou até para o exterior. Ao lado disso, o gourmant, sempre lutando contra o excesso de peso, cuidava de seu restaurante para gourmets, o Pancho Puskas.
É certo que meus dois ídolos se venderam, no entanto não souberam unir seus interesses, ou seja, vender-se como pacote duplo. Nem mesmo eu e minha firma especializada em fusões conseguimos tornar sócios o antigo filho de operários de um subúrbio de Budapeste e o antigo estagiário de banco do Palatinado, por exemplo, oferecer os frios do major Puskas acompanhados do champanhe especial "Coroação de Fritz Walter", e reconciliar dessa maneira, numa base lucrativa, o herói da província e o cidadão cosmopolita. Desconfiados de qualquer fusão, ambos recusaram, ou mandaram dizer isso.
O major do exército húngaro parece ainda acreditar que, naquele dia em Berna, não estava impedido e que tinha empatado o jogo em 3 a 3. Possivelmente crê que o juiz da partida, mister Ling, tivesse se vingado porque, no ano anterior, os húngaros tinham conseguido uma vitória no sagrado estádio de Wembley na Inglaterra, aliás a primeira derrota do time da casa: por 6 a 3 venceram os magiares. E a secretária de Fritz Walter, que, implacável, protege o rei de Betzenberg, recusou-se até a receber um "salame Puskas", um presente entregue por mim pessoalmente. Uma derrota dura de engolir até hoje. Talvez por essa razão sou ocasionalmente acometido de um pensamento sorrateiro: o que teria sido do futebol alemão se o juiz da partida não tivesse apitado "impedimento" quando Puskas lançou a bola, se tivéssemos ficado para trás durante a prorrogação ou perdido a segunda partida obrigatória, e tivéssemos voltado para casa novamente como derrotados e não como campeões do mundo...


Tradução de Irene Aron.


Texto Anterior: Günter Grass: 1906
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.