São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


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Na introdução de "Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa", o ensaísta José Gil, que faz palestra na Folha sobre seu livro, comenta as semelhanças entre o poeta e o filósofo
As afinidades entre Pessoa e Deleuze

da Redação

Leia a seguir um trecho da introdução de "Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa" (Editora Relume-Dumará), do ensaísta português José Gil, professor de filosofia da Universidade Nova de Lisboa. O autor fará uma palestra sobre o tema de sua obra na Folha, na quarta-feira, dia 19. O evento acontece às 19h30, no auditório do jornal (al. Barão de Limeira, 425, 9º andar). A entrada é franca e os interessados devem fazer reservas pelo telefone 0/xx/11/224-3473.

José Gil

E ste pequeno ensaio devia chamar-se inicialmente "Ontologia e Metafísica na Poesia de Fernando Pessoa". Achei, depois, esse título demasiado pomposo e inexato, já que o texto recobria apenas uma pequena parte do pensamento de Caeiro, limitando-se a breves observações sobre a metafísica dos outros heterônimos.
Pensei num subtítulo mais adequado: "Pessoa com Deleuze". Com efeito, há uma tal convergência entre o pensamento de um e de outro que decidi utilizar quase sistematicamente os conceitos deleuzianos para esclarecer problemas levantados pela poesia pessoana. Não se tratava de comparar Pessoa e Deleuze, mas de trazer para o comentário do texto pessoano instrumentos conceituais deleuzianos, que considero os mais apropriados a uma tal tarefa.
O que legitima esse transporte de conceitos é a afinidade extraordinária entre os dois pensamentos: muitas vezes, o que aparece sob o modo implícito em Pessoa ganha contornos explícitos em Deleuze, o que era simples noção, fruto de uma rápida anotação no "Livro do Desassossego", por exemplo, torna-se conceito claro em "Mil Platôs".
A operação, que consiste em conceitualizar essa noção pessoana, conservando-lhe o mesmo termo ou expressão, não tem nada artificial, decorrendo naturalmente da leitura, lado a lado, dos dois textos. Por exemplo, Pessoa refere-se às "sensações mínimas", no "Livro do Desassossego": a expressão designa, nas sensações, todo um movimento e uma série de processos que Deleuze reserva à escala "molecular" das "intensidades pré-individuais" (e, portanto, o jogo das escalas macro/micro terão movimentos semelhantes num e noutro autor).
Ora, acontece que as sensações mínimas, em Pessoa, são também "pré-humanas"... Outro exemplo: também no "Livro", Bernardo Soares descreve a necessidade de "monotonizar" a existência, o que reenvia muito precisamente para o "devir-imperceptível" de que "Mil Platôs" analisa longamente o processo. Já para não referir a idéia de multiplicidade, no centro da filosofia deleuziana (ao ponto de ele definir a filosofia como teoria das multiplicidades), e da heteronímia pessoana.
Poderia continuar a mostrar o paralelismo das séries ("série", noção implícita de Álvaro de Campos e de Soares, conceito de Deleuze), aproximando-nos de uma espantosa quase coincidência que vai até aos pormenores anedóticos: os textos do "Livro" sobre a velocidade máxima que se adquire na imobilidade total; e as palavras de Deleuze explicando que era necessário não se agitar, não viajar, "para não perturbar o movimento dos devires". Aqueles fragmentos do "Livro" que descrevem o rapaz que viaja através de bilhetes-postais; e o saber-se, agora depois da morte de Deleuze, que ele tinha um pequeno estúdio na Île Saint Louis, em Paris, com as paredes atapetadas de bilhetes-postais... Até ao detalhe do gosto comum de Caeiro e de Deleuze pela erva (e não pelas florestas e árvores)...
Mas não só Deleuze ilumina Pessoa. Não foi por acaso que Deleuze, em "O Que É a Filosofia?", publicado depois da vaga pessoana ter começado a expandir-se na França, chamou "heterônimos" às suas "personagens conceituais". Poderíamos acrescentar que a estética que apresenta no mesmo livro mostra traços da influência de Pessoa.
Tudo isso legitima a operação inversa daquela que acima evocamos; não já iluminar o implícito ou vago, ou incrustado na escrita poética, por conceitos deleuzianos que lhes correspondem, mas, ao contrário, trazer à explicitação minuciosa das descrições pessoanas (do "Livro", da poesia, ou mesmo dos textos de teoria estética) processos que Deleuze não deixou bem claros -sem dúvida porque não revelam já de conceitos, mas de experimentações corporais, sensoriais (e intelectuais) obscuras. Refiro-me, sobretudo, à questão fundamental da segunda filosofia de Deleuze: como construir o plano de imanência? Ou: como construir um corpo-sem-órgãos?
Ora, Fernando Pessoa responde várias vezes a essa questão, desenrolando as etapas de um processo sutil e rigoroso, em particular na "Ode Marítima" e no Fausto -o que transforma a sua poesia num material precioso para a compreensão de certos conceitos deleuzianos. A maneira como Álvaro de Campos forma, passo a passo, o plano de imanência ou de consistência das sensações (onde nascerá "o delírio das coisas marítimas") é bem mais esclarecedora do que muitas páginas do capítulo de "Mil Platôs" intitulado "Como Construir para Si Próprio um Corpo-sem-Órgãos".
Um outro exemplo, abordado diretamente neste ensaio: é certo que o pensamento deleuziano se define como projeto de uma ontologia. Projeto desenvolvido, e quase falhado, na "Diferença e Repetição" e na "Lógica do Sentido". Projeto retomado e conseguido, talvez, na sua formulação filosófica mais sucinta, em "O Que É a Filosofia?" e esse último e belíssimo texto que tem por título "A Imanência - Uma Vida...". No meu entender, o fracasso da primeira tentativa de traçar o plano de imanência veio de lhe faltar o conceito de imanência (que é um conceito...). Ora, de certo modo, Caeiro realiza o projeto de Deleuze: conceitos difíceis que este propunha, como o de não-relação e de univocidade do ser, enquanto projeto de uma ontologia da diferença, encontram-se admiravelmente explicitados na escrita poética de Alberto Caeiro. De tal maneira, que se pode considerar o pensamento do mestre da heteronímia pessoana como a melhor introdução transversal à antologia deleuziana. (...) Passar de Pessoa para Deleuze e de Deleuze para Pessoa equivale, no fundo, a mover-se num mesmo plano de imanência do pensamento. Isso torna-se claro quando se verifica que tal problema, levantado pela heteronímia pessoana (por exemplo: como se passa de Caeiro, absolutamente positivo e afirmativo, a Campos ou Soares, que se alimentam da oposição à realidade?), se reencontra, identicamente reformulado num campo diferente, em Deleuze (como se passa da diferença, ontologicamente primeira, à negação?). A mesma rede de problemas engendra-se no mesmo campo do pensar: basta, então, deslizar sobre a mesma superfície do pensamento para, sem transposições forçadas ou identificações ilegítimas, ir e vir de Pessoa a Deleuze. O objeto deste ensaio não é, no entanto, "Pessoa com Deleuze". A sua idéia nasceu de uma antiga questão, cujo tratamento, sempre adiado, me pareceu essencial para a compreensão da estrutura da heteronímia: por que um mestre? Por que discípulos que, uma vez "tocados" pela poesia do mestre, se transformam, encontram a sua vocação -o "ser eles mesmos", que nunca realizam-, para viverem dilacerados, desesperados, angustiados por não poderem jamais resolver os seus conflitos, ou seja por não poderem ser como o mestre? Por que toda essa mitologia, urdida e estruturada assim: que efeitos tem ela na compreensão e no conhecimento que alcançamos de cada heterônimo? O presente ensaio não dá certamente resposta a todas essas perguntas. Sobretudo falta-lhe uma cartografia (que se fará um dia, estou certo) da heteronímia, quer dizer, dos múltiplos aspectos das relações entre os heterônimos, num cálculo combinatório indubitavelmente rizomático (mais uma convergência com Deleuze): um a um, um a dois, dois a dois, dois a três etc.; e sob os vários aspectos que apresentam: biografias, amizades, contatos, influências literárias, capacidade de devir, jogos de escalas, jogos de escrita, processos poéticos, pensamento filosófico... Na ausência de uma tal cartografia, limitamo-nos a explorar algumas questões, preliminares a todas as outras: sob que regime de sensações e de pensamento funcionam respectivamente Caeiro e os seus discípulos? O que os distingue? E como se pode entender que Fernando Pessoa ortônimo, Campos, Reis, Soares "derivem" do mestre? Por outras palavras: se a imanência da experiência (ou da meta-experiência) da visão de Caeiro não comporta falhas, como se compreende que os discípulos, que "saíram" do mestre, vivam sob o regime do trágico, da cisão, do desassossego?

Ausência de trágico
Trágico que tomamos em sentido largo, como expressão de oposições sem saída entre categorias existenciais. Não analisamos o "trágico da ausência de trágico" com que Bernardo Soares caracteriza a existência moderna (e a sua); cremos apenas que as nossas conclusões não mudariam muito se tivéssemos realizado aquela análise: entre Caeiro e os discípulos cava-se um fosso, aparentemente radical e intransponível, mas que no fundo deixa passar fios de ligação, intensidades e ritmos que permitem compreender o parentesco entre a serenidade caeiriana e a inquietação dos heterônimos, ou entre a capacidade de "viajar nas sensações" de um e dos outros.
Enfim, cabe interrogar-nos sobre a extraordinária convergência de pensamento entre Pessoa e Deleuze. Creio que ambos visavam aos mesmos objetivos: acabar com a transcendência metafísica (pelo menos num certo Pessoa), pensar e escrever (produzindo multiplicidades) na imanência. Como é que esse projeto, concebido e realizado em dois campos diferentes, o da poesia e o da filosofia, foi possível tem certamente a ver com as tendências especulativas de Pessoa e o amor de Deleuze pela literatura. Mas há talvez uma razão mais funda: se os dois convergiram para o mesmo plano de imanência do pensamento, foi porque um e outro levaram ao seu limite extremo o projeto (poético e filosófico) da modernidade. (...)
E, como acontece sempre, os mais altos expoentes de uma época, os que mais fundo penetraram nos seus sedimentos, adquiriram o poder profético de ver para além dela, quer dizer, de prever o que as deslocações ínfimas sedimentares produzirão posteriormente como movimentos macroscópicos.
Estão por vir ainda os efeitos dessas duas obras; não somos ainda suficientemente pessoanos ou suficientemente deleuzianos. Mas, como observou Foucault, a história vai, também, nesse sentido.


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