São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Geometria da intervenção

Segundo arquiteto do país a ganhar o Pritzker, depois de Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha defende que sua disciplina deve ser especulativa e não se render ao mercado, diz que Brasília é africana e afirma que não há uma arquitetura brasileira

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA A FOLHA

MARTIN CORULLON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paulo Mendes da Rocha, nascido em 1928 em Vitória (ES), é o vencedor deste ano do Prêmio Pritzker, condecoração máxima entre os arquitetos no mundo. No Brasil, apenas Oscar Niemeyer havia alcançado esse posto, quando, em 1988, dividiu o prêmio com o norte-americano Gordon Bunshaft. Há uma semana, portanto, se instaurou uma euforia entre os arquitetos brasileiros, sinalizando um renascimento do país no cenário internacional. Fora do país as homenagens são extensas, como a do importante crítico italiano Francesco dal Co, que ressalta sua originalidade, coerência e coragem, e o fato de sua obra ser marcada pelo desprezo ao supérfluo, aparecendo como "estranha" em meio à cena histriônica da arquitetura contemporânea internacional.
Integrante destacado da chamada "escola paulista" dos anos 60 e 70, Mendes da Rocha despontou em 1958, quando venceu o concurso para o ginásio do Clube Atlético Paulistano, em São Paulo. Desde então, realizou obras importantes, tais como o pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Osaka, em 1970, o Museu Brasileiro da Escultura, a renovação da Pinacoteca do Estado, e o pórtico da praça do Patriarca, todos em São Paulo.


Não faz muito sentido para mim defender um caráter nacional; o colonia-lismo produziu horrores porque não soube ler a experiência dos nativos


Entrevistado em seu escritório, no edifício do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), no centro de São Paulo, Mendes da Rocha falou das suas principais referências (incluindo arquitetos, artistas, e memórias de infância), defendeu a idéia de que a arquitetura é um discurso posto para além das formas e disse desejar que o prêmio sirva para fortalecer o ensino de arquitetura no Brasil.
 

Folha - Qual a importância, para a arquitetura brasileira, do recebimento do Prêmio Pritzker? De que modo a sua arquitetura é brasileira?
Paulo Mendes da Rocha -
Talvez seja melhor dizer que não há e nem deveria haver uma "arquitetura brasileira" -eu não gosto muito de bandeiras. Não faz muito sentido para mim defender um caráter nacional. O que entretanto se pode imaginar, de modo sadio, é que há algo de peculiar na experiência da América, sem dúvida nenhuma, porque esses 400 anos não são nada na vida do homem, e você pode considerá-los como a edição de toda sabedoria do universo do gênero humano.
O colonialismo produziu horrores porque não soube ler a experiência dos nativos. Ainda mais agora que se fala tanto em natureza, é preciso também dizer que uma oca ianomami é uma excelência construtiva: madeiras tensionadas, peças que trabalham sob tensão, aquela oca circular aberta no meio para o fogo, para poder haver uma fogueira, indispensável para tudo.
Um fogo só para a aldeia toda. Esse fogo coletivo, essa oca, é constituída de madeira cravada, envergada, tensionada, com um perímetro interno que é uma praça interna de tensores com cipó e madeira cravada no chão, é uma maravilha de construção. Bem, além da linguagem, da cultura, da compreensão da cor... Quando fala assim o erudito, por exemplo, em 1300, 1400, diz que Florença era a forma, Veneza era a cor.
Ora, mas os nossos índios de cor sabiam o quê? Sabiam namorar, invejar, o amarelo, o azul que passava voando no papo das araras, e colher aquilo, fazer artefatos etc. Uma cultura maravilhosamente humana, interessantíssima. E o massacre de tudo isso.
Eu vou dar um exemplo de uma leitura feita aos poucos. Há pouco tempo eu comecei a dizer, e é tão intrigante quanto não é convincente, mas pode se dizer assim: ah, eu vou pensar nisso. Brasília é muito africana. Muito africana. E é capaz de ser tão africana a ponto de influenciar um artista, escultor. Bruno Giorgi, quando fez "Os Guerreiros", que lhe encomendaram para a Praça dos Três Poderes, que já estaria configurada naqueles palácios, naquelas formas do Niemeyer, fez aqueles dois guerreiros que estão lá, que são uma figurinha de exu, de coisa assim africana. Não são guerreiros de carnes fartas. São figurinhas esguias, mas não como Giacometti. Somos iguais, absolutamente iguais de modo diferente.
Isso é interessante: não considerar diversidade como oposição, não considerar diversidade, como o capitalismo grosseiro pretende, uma forma de competição.
O que acho interessante na valorização desse trabalho todo, como esse prêmio esclarece ou ilustra, é que você acaba recuperando o que estava muito ameaçado: a dimensão da importância do curso de arquitetura no âmbito da universidade, porque sendo assim patente, como é, uma atividade multidisciplinar, sem dúvida nenhuma, você lida com mecânicas de solo, com engenharia, com filosofia, antropologia, cogita dos desideratos da população para eleger as formas e, principalmente, as relações espaciais daquilo que vai construir no sentido de ser público, democrático, livre, esclarecedor, positivo. Não é que a arquitetura sendo, assim, multidisciplinar vai ceder de graça todo esse fazer, enfrentar o mercado.
Essa é uma visão estúpida da escolinha pragmática. É, ao contrário, no plano da especulação, como a sociedade vai absorver isso de forma profissional, não-profissional, mas como forma peculiar de conhecimento. Portanto, pode-se dizer que a arquitetura, multidisciplinar e abrangente assim, é uma forma peculiar de conhecimento e passa a ser altamente estimulante no âmbito da universidade.
A faculdade de arquitetura é a mãe, a matriz do discurso do conhecimento, é onde o homem vai configurando coisas objetivas, materiais, construídas, demonstrando para si mesmo como se goza o saber.
Uma coisa que acho que se deve dizer é que isso não é uma forma de configurar uma elite e desprezar a idéia da possibilidade de fundarmos escolas particulares de arquitetura. Em princípio, eu não seria contra; ao contrário, acho que desse particular podem surgir coisas da maior excelência, escolas, isoladas, porém que tenham a consciência que, antes de mais nada, a universidade está aí na cidade. Que não se permita, oxalá, que se degenere a idéia de arquitetura como um curso prático para atender o mercado.

Folha - Segundo o júri do Pritzker, sua obra torna expressivas certas restrições construtivas do país, certas limitações técnicas, que aludem talvez a um caráter local. Como o sr. vê isso?
Mendes da Rocha -
Eu não vejo, absolutamente, nenhuma idéia de restrição como fruto do nosso meio. Quem construiu, como nós, Urubupungá, por exemplo, sabe perfeitamente que não temos restrição técnica nenhuma. Se você agora fosse uma formiga estaria ouvindo o barulho da máquina escavando o nosso metrô aqui embaixo. Esse "tatuzão" é uma máquina que escava o túnel do metrô entre as fundações dos prédios e, ao mesmo tempo, vai produzindo uma papa -que é o próprio túnel de concreto armado- , uma coisa fantástica.
Uns alunos da Faculdade de Arquitetura [da USP] fizeram um projeto imaginando que, com essa máquina, se poderia fazer um lindo museu subterrâneo, que encontra torres de ascensão para a superfície em alguns prédios existentes. Quer dizer, uma cidade que já se vê nos seus subterrâneos, digamos assim.
Portanto, não há nenhuma restrição técnica. Tenho a impressão de que o que se quis dizer é que há hoje no mundo um emprego exagerado de sofisticadas tecnologias para obter apenas aspectos exteriores, decorativos, cuja rejeição é louvável em arquitetura.
A arquitetura não é feita para ser histriônica. Não interessa a uma cidade tão exigente de artefatos urgentes, como a "casa para todos", as escolas, os transportes, que se coloquem essas cerejas de pudim sobre os seus desastres. Isso é idiota.
Acho que é nesse sentido que elogiaram a estrita aplicação dos recursos indispensáveis, como quem faz toda obra muito mais a partir do programa que da forma. Uma escola, um hospital, uma estação de metrô, um museu, uma biblioteca são programas que não exigem nada excepcional do ponto de vista técnico. Ao contrário, é uma virtude poder mostrar sua simplicidade.

Folha - O sr. acha, então, que a sua obra representa um contraponto às formas "histriônicas" dos protagonistas da arquitetura internacional, grupo ao qual o sr. agora pertence?
Mendes da Rocha -
Eu não tenho nenhuma vocação para herói e não sairia, como Chaplin, com aquela bandeirinha sem saber quem vem atrás. Mas a idéia não é estabelecer um definitivo antagonismo, e sim uma forma de dizer: prestem atenção a isso também. Então, o que eu acho importante é dizer que não posso ter tirado essas coisas do nada.
Nós aqui temos uma belíssima escola. Temos o dever de prestar atenção e não deixar degenerar a questão do ensino para nós. São Paulo e Rio de Janeiro fazem, há muito tempo, uma dupla muito extraordinária no plano do ensino da arquitetura. E, inclusive, já se falou muito de um certo antagonismo entre elas.
Eu não concordo muito, porque acho que as duas não poderiam existir sozinhas. Portanto, a nossa herança politécnica e as belas-artes do Rio são para mim símbolos da genealogia do pensamento do arquiteto: a arte e a técnica. O que eu acho interessante nessa dualidade reiterada pelos comentários é a complementaridade, em São Paulo, da Escola Politécnica com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
A nossa escola de arquitetura foi fundada com essa visão de consistência nas técnicas, na engenharia, porém com o crivo crítico engendrado pelo pensamento sempre brilhante, e também inaugural, da nossa Faculdade de Filosofia.
Digamos que os dois diamantes que apareceriam numa bateia ao sol seriam Flávio Motta e Vilanova Artigas. Nesse contexto é que nós começamos a pensar, juntos, a questão da arquitetura.

Folha - A partir daí, quais o sr. diria que são suas principais referências? Artigas e Niemeyer?
Mendes da Rocha -
É indiscutível, inevitável. Mais, talvez, uma condenação, dentro daquilo que diz Harold Bloom, que não se pode evitar a não ser sofrendo o que ele chama de "a angústia da influência" no sentido criativo. Mas acharia melhor dizer: creio que sempre admirei a força de Affonso Eduardo Reidy, Roberto Burle Marx, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas.
Mas sem esquecer, naturalmente, as minhas memórias de infância: tanta ventania, tantas águas, a bacia do Prata, a bacia Amazônica, 8.000 quilômetros de costa, navios etc. Essa consciência e a felicidade de poder conviver com árabes, negros, ibéricos, holandeses... Esse é um país, como tudo o que é bom entre nós, com profundas e amargas contradições, porém muito criativas, muito fecundas. O que seria dos EUA sem a música dos negros?
Portanto, é claro que não se pode dizer que a escravidão tenha sido um bem. Mas, na inexorável condição de viver o que já vivemos, temos que pensar daqui para a frente. Então, é uma grande felicidade se sentir fruto disso tudo. Meu avô paterno era baiano, meu avô materno era italiano, eu nasci em Vitória, no Espírito Santo, morei na ilha de Paquetá, na casa do outro avô, e depois na avenida Paulista, numa pensão -vejam só as contradições.
Era na avenida Paulista, nos primeiros 30 metros da esquina com a Brigadeiro Luís Antônio, nos anos 30, numa pensão de gente que já fugia da Espanha, da Guerra Republicana. Portanto, há muito tempo que o mundo sofre esses deslocamentos. E então, uma pobre família fugida aluga um casarão daquele, subloca os quartos, e é ali que meu pai, no terceiro ou quarto capítulo da difícil vida dele, começada nos anos 30, em plena crise de 29, vem se instalar.
Eu nasci em 1928. Eu vim à luz dentro da crise e, logo depois, vivi os golpes, revoluções (1932, em São Paulo), a guerra, a bomba atômica mas também a chegada do homem ao espaço. O que nos amparou foram os grandes feitos do século 20, como diz Hobsbawm: um século terrível, violento, mas, entretanto, o século da revolução soviética, e de um esclarecimento fundamental nas transformações do trabalho -da mão para a máquina.
E estamos vivendo tudo isso ainda hoje. As dificuldades que têm o Brasil ou São Paulo, hoje, têm também Madri, Paris, Londres, Lisboa: lá estão negros, indianos, argelinos, marroquinos, os homens de Sumatra, Bornéu. Ou seja, o que estamos vivendo, no sentido de construir uma nova visão sobre nós mesmos, é uma revisão do passado colonial, da política colonial.

Folha - Há relação entre essas memórias e seu projeto de arquitetura?
Mendes da Rocha -
Muita gente pode achar que essas são questões que estão fora, ou além da arquitetura. Mas não! Elas são anteriores, são fundadoras da arquitetura. Uma construção que você olha e, de algum modo, se comove deve conter tudo isso de forma não explícita, pedra por pedra, mas de um modo um tanto indizível, lírico, não é?
Um escritor está sempre preocupado com a sedução, ou seja, com o fato de que aquele que ler o primeiro parágrafo do livro não deixe de ler o segundo, porque o que ele quer dizer necessita que se leia aquilo tudo até o fim. Na construção é a mesma coisa: como eu vou fazer para entreter esse cara de modo a que eu possa enredá-lo a ponto de, quando chegar ao fim, perceber o que quis dizer? Portanto, você pode considerar que para a literatura as palavras são como pedras de catedrais. É uma construção.

Folha - E, por outro lado, a arquitetura é também um discurso, uma linguagem codificada.
Mendes da Rocha -
Sim, e se pode dizer isso pensando na cidade toda. Só foi possível construí-la porque ela já existia inteira na mente. Ninguém pode engendrar uma coisa que não pensou antes, não é? A mulher que borda conhece a técnica de bordar mas conhece também a flor toda que vai bordar, antes que o bordado todo fique pronto.
Para nós também é assim: a arquitetura não se faz aos poucos, aos pedaços. A construção pode ser feita aos poucos, mas não o raciocínio.

Folha - Gostaria que o sr. falasse um pouco das suas leituras, das coisas que o emocionaram e fizeram pensar.
Mendes da Rocha -
Se se propõe a ficar um pouco de fora, se vê tudo, entretanto, como uma coisa ou outra, como qualquer águia, qualquer gaivota. Eu acho que li muito pouco. Eu me lembro de relatos de Walter Benjamin, belíssimos, centrados na viagem extraordinária que ele fez a Moscou nos anos 30, se não me engano. Bem, nesses relatos ele diz assim: em nenhuma parte Moscou se parece consigo mesma, mas com sua periferia. É uma reflexão crítica muito profunda. O que quer dizer consigo mesma? Todos aqueles palácios e cúpulas, isso não era Moscou. Moscou é o povo. E ela pouco a pouco, entretanto, se parece com a sua periferia.

Folha - É o centro de São Paulo...
Mendes da Rocha -
Isso é São Paulo puro. E não é uma crítica amarga, ao contrário, é total estímulo. Essa cidade, esse centro que querem revitalizar, jamais voltará a ser o que era. Mas vai ser a nova capital da periferia. Isso é muito dinâmico e é o que vai dar possibilidade de efetivamente acontecer uma revitalização, um "revival" dessa área em sua monumentalidade.
Na área da Luz, por exemplo, aqueles pequenos hoteizinhos ao lado da estação, aqueles vendedores, era a expansão do comércio, por meio da ferrovia... Nunca deveriam ser destruídos nem transformados muito. Até hoje precisamos de hotéis baratos. Essa degeneração do centro foi meticulosamente planejada. Mesmo quando querem revitalizar, chamam uma área de cracolândia. Isso é um modo de botar a mão, arranjar o apoio da classe dominante: aquilo é a cracolândia.
Com isso se expulsa quem está lá, aquilo se desvaloriza e os grandes empreendimentos imobiliários do futuro vão ser lá. É puro negócio. Não se chamam artefatos urbanos de Cebolão, Minhocão, Cracolândia, porque você estigmatiza.


Martin Corullon é arquiteto.


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