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Geometria da intervenção
Segundo arquiteto do país a ganhar o Pritzker, depois de Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha defende que sua disciplina
deve ser especulativa e não se render ao mercado, diz que Brasília
é africana e afirma que não há uma arquitetura brasileira
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA A FOLHA
MARTIN CORULLON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Paulo Mendes da Rocha, nascido em 1928 em Vitória (ES),
é o vencedor deste ano do
Prêmio Pritzker, condecoração máxima entre os arquitetos no
mundo. No Brasil, apenas Oscar
Niemeyer havia alcançado esse posto, quando, em 1988, dividiu o prêmio com o norte-americano Gordon Bunshaft. Há uma semana, portanto, se instaurou uma euforia entre os arquitetos brasileiros, sinalizando um renascimento do país no
cenário internacional. Fora do país
as homenagens são extensas, como a
do importante crítico italiano Francesco dal Co, que ressalta sua originalidade, coerência e coragem, e o
fato de sua obra ser marcada pelo
desprezo ao supérfluo, aparecendo
como "estranha" em meio à cena
histriônica da arquitetura contemporânea internacional.
Integrante destacado da chamada
"escola paulista" dos anos 60 e 70,
Mendes da Rocha despontou em
1958, quando venceu o concurso para o ginásio do Clube Atlético Paulistano, em São Paulo. Desde então,
realizou obras importantes, tais como o pavilhão do Brasil na Feira
Mundial de Osaka, em 1970, o Museu Brasileiro da Escultura, a renovação da Pinacoteca do Estado, e o
pórtico da praça do Patriarca, todos
em São Paulo.
Não faz muito sentido para mim defender um caráter nacional; o colonia-lismo produziu horrores porque não soube ler a experiência dos nativos
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Entrevistado em seu escritório, no
edifício do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), no centro de São
Paulo, Mendes da Rocha falou das
suas principais referências (incluindo arquitetos, artistas, e memórias
de infância), defendeu a idéia de que
a arquitetura é um discurso posto
para além das formas e disse desejar
que o prêmio sirva para fortalecer o
ensino de arquitetura no Brasil.
Folha - Qual a importância, para a
arquitetura brasileira, do recebimento do Prêmio Pritzker? De que modo a
sua arquitetura é brasileira?
Paulo Mendes da Rocha - Talvez seja melhor dizer que não há e nem deveria haver uma "arquitetura brasileira" -eu não gosto muito de bandeiras. Não faz muito sentido para
mim defender um caráter nacional.
O que entretanto se pode imaginar,
de modo sadio, é que há algo de peculiar na experiência da América,
sem dúvida nenhuma, porque esses
400 anos não são nada na vida do
homem, e você pode considerá-los
como a edição de toda sabedoria do
universo do gênero humano.
O colonialismo produziu horrores
porque não soube ler a experiência
dos nativos. Ainda mais agora que se
fala tanto em natureza, é preciso
também dizer que uma oca ianomami é uma excelência construtiva:
madeiras tensionadas, peças que
trabalham sob tensão, aquela oca
circular aberta no meio para o fogo,
para poder haver uma fogueira, indispensável para tudo.
Um fogo só para a aldeia toda. Esse
fogo coletivo, essa oca, é constituída
de madeira cravada, envergada, tensionada, com um perímetro interno
que é uma praça interna de tensores
com cipó e madeira cravada no
chão, é uma maravilha de construção. Bem, além da linguagem, da
cultura, da compreensão da cor...
Quando fala assim o erudito, por
exemplo, em 1300, 1400, diz que Florença era a forma, Veneza era a cor.
Ora, mas os nossos índios de cor
sabiam o quê? Sabiam namorar, invejar, o amarelo, o azul que passava
voando no papo das araras, e colher
aquilo, fazer artefatos etc. Uma cultura maravilhosamente humana, interessantíssima. E o massacre de tudo isso.
Eu vou dar um exemplo de uma
leitura feita aos poucos. Há pouco
tempo eu comecei a dizer, e é tão intrigante quanto não é convincente,
mas pode se dizer assim: ah, eu vou
pensar nisso. Brasília é muito africana. Muito africana. E é capaz de ser
tão africana a ponto de influenciar
um artista, escultor. Bruno Giorgi,
quando fez "Os Guerreiros", que lhe
encomendaram para a Praça dos
Três Poderes, que já estaria configurada naqueles palácios, naquelas
formas do Niemeyer, fez aqueles
dois guerreiros que estão lá, que são
uma figurinha de exu, de coisa assim
africana. Não são guerreiros de carnes fartas. São figurinhas esguias,
mas não como Giacometti. Somos
iguais, absolutamente iguais de modo diferente.
Isso é interessante: não considerar
diversidade como oposição, não
considerar diversidade, como o capitalismo grosseiro pretende, uma
forma de competição.
O que acho interessante na valorização desse trabalho todo, como esse prêmio esclarece ou ilustra, é que
você acaba recuperando o que estava muito ameaçado: a dimensão da
importância do curso de arquitetura
no âmbito da universidade, porque
sendo assim patente, como é, uma
atividade multidisciplinar, sem dúvida nenhuma, você lida com mecânicas de solo, com engenharia, com
filosofia, antropologia, cogita dos
desideratos da população para eleger as formas e, principalmente, as
relações espaciais daquilo que vai
construir no sentido de ser público,
democrático, livre, esclarecedor, positivo. Não é que a arquitetura sendo, assim, multidisciplinar vai ceder
de graça todo esse fazer, enfrentar o
mercado.
Essa é uma visão estúpida da escolinha pragmática. É, ao contrário, no
plano da especulação, como a sociedade vai absorver isso de forma profissional, não-profissional, mas como forma peculiar de conhecimento. Portanto, pode-se dizer que a arquitetura, multidisciplinar e abrangente assim, é uma forma peculiar
de conhecimento e passa a ser altamente estimulante no âmbito da
universidade.
A faculdade de arquitetura é a
mãe, a matriz do discurso do conhecimento, é onde o homem vai configurando coisas objetivas, materiais,
construídas, demonstrando para si
mesmo como se goza o saber.
Uma coisa que acho que se deve
dizer é que isso não é uma forma de
configurar uma elite e desprezar a
idéia da possibilidade de fundarmos
escolas particulares de arquitetura.
Em princípio, eu não seria contra; ao
contrário, acho que desse particular
podem surgir coisas da maior excelência, escolas, isoladas, porém que
tenham a consciência que, antes de
mais nada, a universidade está aí na
cidade. Que não se permita, oxalá,
que se degenere a idéia de arquitetura como um curso prático para atender o mercado.
Folha - Segundo o júri do Pritzker,
sua obra torna expressivas certas restrições construtivas do país, certas limitações técnicas, que aludem talvez
a um caráter local. Como o sr. vê isso?
Mendes da Rocha - Eu não vejo, absolutamente, nenhuma idéia de restrição como fruto do nosso meio.
Quem construiu, como nós, Urubupungá, por exemplo, sabe perfeitamente que não temos restrição técnica nenhuma. Se você agora fosse
uma formiga estaria ouvindo o barulho da máquina escavando o nosso metrô aqui embaixo. Esse "tatuzão" é uma máquina que escava o
túnel do metrô entre as fundações
dos prédios e, ao mesmo tempo, vai
produzindo uma papa -que é o
próprio túnel de concreto armado-
, uma coisa fantástica.
Uns alunos da Faculdade de Arquitetura [da USP] fizeram um projeto imaginando que, com essa máquina, se poderia fazer um lindo
museu subterrâneo, que encontra
torres de ascensão para a superfície
em alguns prédios existentes. Quer
dizer, uma cidade que já se vê nos
seus subterrâneos, digamos assim.
Portanto, não há nenhuma restrição técnica. Tenho a impressão de
que o que se quis dizer é que há hoje
no mundo um emprego exagerado de sofisticadas tecnologias para obter apenas aspectos exteriores, decorativos, cuja rejeição é louvável em
arquitetura.
A arquitetura não é feita para ser
histriônica. Não interessa a uma cidade tão exigente de artefatos urgentes, como a "casa para todos", as escolas, os transportes, que se coloquem essas cerejas de pudim sobre
os seus desastres. Isso é idiota.
Acho que é nesse sentido que elogiaram a estrita aplicação dos recursos indispensáveis, como quem faz
toda obra muito mais a partir do
programa que da forma. Uma escola, um hospital, uma estação de metrô, um museu, uma biblioteca são
programas que não exigem nada excepcional do ponto de vista técnico.
Ao contrário, é uma virtude poder
mostrar sua simplicidade.
Folha - O sr. acha, então, que a sua
obra representa um contraponto às
formas "histriônicas" dos protagonistas da arquitetura internacional, grupo ao qual o sr. agora pertence?
Mendes da Rocha - Eu não tenho
nenhuma vocação para herói e não
sairia, como Chaplin, com aquela
bandeirinha sem saber quem vem
atrás. Mas a idéia não é estabelecer
um definitivo antagonismo, e sim
uma forma de dizer: prestem atenção a isso também. Então, o que eu
acho importante é dizer que não
posso ter tirado essas coisas do nada.
Nós aqui temos uma belíssima escola. Temos o dever de prestar atenção e não deixar degenerar a questão
do ensino para nós. São Paulo e Rio
de Janeiro fazem, há muito tempo,
uma dupla muito extraordinária no
plano do ensino da arquitetura. E,
inclusive, já se falou muito de um
certo antagonismo entre elas.
Eu não concordo muito, porque
acho que as duas não poderiam existir sozinhas. Portanto, a nossa herança politécnica e as belas-artes do
Rio são para mim símbolos da genealogia do pensamento do arquiteto: a arte e a técnica. O que eu acho
interessante nessa dualidade reiterada pelos comentários é a complementaridade, em São Paulo, da Escola Politécnica com a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras.
A nossa escola de arquitetura foi
fundada com essa visão de consistência nas técnicas, na engenharia,
porém com o crivo crítico engendrado pelo pensamento sempre brilhante, e também inaugural, da nossa Faculdade de Filosofia.
Digamos que os dois diamantes
que apareceriam numa bateia ao sol
seriam Flávio Motta e Vilanova Artigas. Nesse contexto é que nós começamos a pensar, juntos, a questão da
arquitetura.
Folha - A partir daí, quais o sr. diria
que são suas principais referências?
Artigas e Niemeyer?
Mendes da Rocha - É indiscutível,
inevitável. Mais, talvez, uma condenação, dentro daquilo que diz Harold Bloom, que não se pode evitar a
não ser sofrendo o que ele chama de
"a angústia da influência" no sentido criativo. Mas acharia melhor dizer: creio que sempre admirei a força
de Affonso Eduardo Reidy, Roberto
Burle Marx, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas.
Mas sem esquecer, naturalmente,
as minhas memórias de infância:
tanta ventania, tantas águas, a bacia
do Prata, a bacia Amazônica, 8.000
quilômetros de costa, navios etc. Essa consciência e a felicidade de poder conviver com árabes, negros,
ibéricos, holandeses... Esse é um
país, como tudo o que é bom entre
nós, com profundas e amargas contradições, porém muito criativas,
muito fecundas. O que seria dos
EUA sem a música dos negros?
Portanto, é claro que não se pode
dizer que a escravidão tenha sido
um bem. Mas, na inexorável condição de viver o que já vivemos, temos
que pensar daqui para a frente. Então, é uma grande felicidade se sentir
fruto disso tudo. Meu avô paterno
era baiano, meu avô materno era italiano, eu nasci em Vitória, no Espírito Santo, morei na ilha de Paquetá,
na casa do outro avô, e depois na
avenida Paulista, numa pensão
-vejam só as contradições.
Era na avenida Paulista, nos primeiros 30 metros da esquina com a
Brigadeiro Luís Antônio, nos anos
30, numa pensão de gente que já fugia da Espanha, da Guerra Republicana. Portanto, há muito tempo que
o mundo sofre esses deslocamentos.
E então, uma pobre família fugida
aluga um casarão daquele, subloca
os quartos, e é ali que meu pai, no
terceiro ou quarto capítulo da difícil
vida dele, começada nos anos 30, em
plena crise de 29, vem se instalar.
Eu nasci em 1928. Eu vim à luz
dentro da crise e, logo depois, vivi os
golpes, revoluções (1932, em São
Paulo), a guerra, a bomba atômica
mas também a chegada do homem
ao espaço. O que nos amparou foram os grandes feitos do século 20,
como diz Hobsbawm: um século
terrível, violento, mas, entretanto, o
século da revolução soviética, e de
um esclarecimento fundamental nas
transformações do trabalho -da
mão para a máquina.
E estamos vivendo tudo isso ainda
hoje. As dificuldades que têm o Brasil ou São Paulo, hoje, têm também
Madri, Paris, Londres, Lisboa: lá estão negros, indianos, argelinos, marroquinos, os homens de Sumatra,
Bornéu. Ou seja, o que estamos vivendo, no sentido de construir uma
nova visão sobre nós mesmos, é
uma revisão do passado colonial, da
política colonial.
Folha - Há relação entre essas memórias e seu projeto de arquitetura?
Mendes da Rocha - Muita gente pode achar que essas são questões que
estão fora, ou além da arquitetura.
Mas não! Elas são anteriores, são
fundadoras da arquitetura. Uma
construção que você olha e, de algum modo, se comove deve conter
tudo isso de forma não explícita, pedra por pedra, mas de um modo um
tanto indizível, lírico, não é?
Um escritor está sempre preocupado com a sedução, ou seja, com o
fato de que aquele que ler o primeiro
parágrafo do livro não deixe de ler o
segundo, porque o que ele quer dizer
necessita que se leia aquilo tudo até o
fim. Na construção é a mesma coisa:
como eu vou fazer para entreter esse
cara de modo a que eu possa enredá-lo a ponto de, quando chegar ao fim,
perceber o que quis dizer? Portanto,
você pode considerar que para a literatura as palavras são como pedras
de catedrais. É uma construção.
Folha - E, por outro lado, a arquitetura é também um discurso, uma linguagem codificada.
Mendes da Rocha - Sim, e se pode
dizer isso pensando na cidade toda.
Só foi possível construí-la porque ela
já existia inteira na mente. Ninguém
pode engendrar uma coisa que não
pensou antes, não é? A mulher que
borda conhece a técnica de bordar
mas conhece também a flor toda que
vai bordar, antes que o bordado todo fique pronto.
Para nós também é assim: a arquitetura não se faz aos poucos, aos pedaços. A construção pode ser feita
aos poucos, mas não o raciocínio.
Folha - Gostaria que o sr. falasse um
pouco das suas leituras, das coisas
que o emocionaram e fizeram pensar.
Mendes da Rocha - Se se propõe a ficar um pouco de fora, se vê tudo, entretanto, como uma coisa ou outra,
como qualquer águia, qualquer gaivota. Eu acho que li muito pouco. Eu
me lembro de relatos de Walter Benjamin, belíssimos, centrados na viagem extraordinária que ele fez a
Moscou nos anos 30, se não me engano. Bem, nesses relatos ele diz assim: em nenhuma parte Moscou se
parece consigo mesma, mas com
sua periferia. É uma reflexão crítica
muito profunda. O que quer dizer
consigo mesma? Todos aqueles palácios e cúpulas, isso não era Moscou. Moscou é o povo. E ela pouco a
pouco, entretanto, se parece com a
sua periferia.
Folha - É o centro de São Paulo...
Mendes da Rocha - Isso é São Paulo
puro. E não é uma crítica amarga, ao
contrário, é total estímulo. Essa cidade, esse centro que querem revitalizar, jamais voltará a ser o que era.
Mas vai ser a nova capital da periferia. Isso é muito dinâmico e é o que
vai dar possibilidade de efetivamente acontecer uma revitalização, um
"revival" dessa área em sua monumentalidade.
Na área da Luz, por exemplo,
aqueles pequenos hoteizinhos ao lado da estação, aqueles vendedores,
era a expansão do comércio, por
meio da ferrovia... Nunca deveriam
ser destruídos nem transformados
muito. Até hoje precisamos de hotéis baratos. Essa degeneração do
centro foi meticulosamente planejada. Mesmo quando querem revitalizar, chamam uma área de cracolândia. Isso é um modo de botar a mão,
arranjar o apoio da classe dominante: aquilo é a cracolândia.
Com isso se expulsa quem está lá,
aquilo se desvaloriza e os grandes
empreendimentos imobiliários do
futuro vão ser lá. É puro negócio.
Não se chamam artefatos urbanos
de Cebolão, Minhocão, Cracolândia,
porque você estigmatiza.
Martin Corullon é arquiteto.
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