São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Entre Batman e Bourdieu

No instigante e temerário "O Intelectual", o sociólogo Steve Fuller procura analisar a figura do pensador público

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Lendo o sumário deste livro, pensei que se tratava de um empreendimento bizarro e inconcebível: um manual de auto-ajuda para intelectuais. Eis alguns dos temas abordados por Steve Fuller: "Os intelectuais carecem de um plano de negócios"; "como o intelectual adquire credibilidade?"; "como os intelectuais devem relacionar-se com os acadêmicos?"; "por que os intelectuais nunca são verdadeiramente apreciados? O que deve ser feito para mudar essa situação?".


Fuller pretende analisar o papel do polemista com o mesmo realismo que Maquiavel dedicou ao mundo político em "O Príncipe"


Não se trata, contudo, de auto-ajuda. "O Intelectual" é um livro mais ambicioso, ainda que igualmente bizarro. Professor de sociologia na Universidade de Warwick, especializado em teoria e história da ciência, Fuller pretende analisar o papel do pensador "público", do polemista (em oposição aos acadêmicos e filósofos profissionais), com o mesmo realismo que Maquiavel dedicou ao mundo político em "O Príncipe".

Obsolescência planejada
"O Intelectual" prodigaliza assim uma série de insights interessantes e temerários a respeito dos bastidores institucionais da atividade em que se destacaram figuras como Anthony Giddens, Noam Chomsky e Edward Said. Apesar de algumas referências a Sartre e Aron, seu ponto de vista é marcadamente anglo-saxão.
Mais do que em qualquer outro lugar, provavelmente é nos Estados Unidos que se verifica, por exemplo, o fenômeno da "obsolescência planejada", que Fuller aponta com pertinência. Trata-se da estratégia, adotada por muitos intelectuais e seus editores, de imprimir "uma quantidade limitada de livros de qualidade apenas razoável (tanto na forma quanto na substância), esperando esgotá-la no tempo exato em que o autor termine outro livro, preferencialmente no alvorecer de outro ano acadêmico".
São de aplicabilidade mais ampla os raciocínios de Fuller a respeito do conflito de gerações entre teóricos e cientistas, em razão do qual os jovens tendem a adotar novas idéias na medida em que são menos informados a respeito dos tabus e dos debates do passado. É o caso, diz ele, da biotecnologia.
O que se lê, nos melhores momentos do livro, são sobretudo hipóteses para uma pesquisa empírica pormenorizada. Sistematicamente avesso a notas de rodapé e dispondo de uma bibliografia assustadoramente breve para o tamanho de suas provocações, "O Intelectual" é um livro para ler com o pé atrás. Ou, levando em conta a exposição extremamente confusa e a terrível tradução, para não ler de jeito nenhum.
Erros, ilogismos e afirmações altamente contestáveis aparecem a todo momento. Fuller declara, por exemplo, que "Lacan introduziu a psicanálise na França em 1930", ignorando Marie Bonaparte; chama Albert Hirschman de "economista político"; considera que o célebre teórico conservador Daniel Bell "foi praticamente alijado da história da sociologia"; sugere que, "se dermos ouvidos ao especulador keynesiano", a ameaça do aquecimento global será resolvida antes que as predições catastróficas dos cientistas se realizem.
Diz que, etimologicamente, "paranóia" significa "de duas mentes"; a confusão, aqui, é com "esquizofrenia". Sustenta que, quando Zola escreveu "J'Accuse", no auge do caso Dreyfus, ele mal tinha provas do que estava dizendo -quando a inocência de Dreyfus e a culpa de Esterházy só não eram evidentes para os mais fanáticos anti-semitas.
Comparações de estilo pop não favorecem -para raciocinar maquiavelicamente- a respeitabilidade do livro: "O intelectual, como o super-herói, vive num universo dualístico". Segue-se uma veloz comparação entre Batman e Bourdieu.

Sobre as mentiras
Que o leitor avalie o rigor lógico de Fuller pelo parágrafo que se segue: "Se mentir é dizer uma falsidade com o intuito de enganar, então há duas maneiras de não mentir. A primeira é dizer a verdade com o intuito de enganar, a segunda é dizer uma falsidade com o intuito de não enganar". Poderíamos lembrar que existe uma terceira maneira de não mentir, que é dizer a verdade com o intuito de não enganar.
Exercício que o autor poderia praticar com mais freqüência.

O Intelectual
160 págs., R$ 29,90 de Steve Fuller. Tradução de Maria da Silveira Lobo. Ed. Relume-Dumará (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-235, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2564-6869).



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