São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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O cheque em branco da mente

Em "Tábula Rasa", o cientista cognitivo norte-americano Steven Pinker critica a idéia recorrente de que o ser humano é moldado por sua experiência

Simon Blackburn
especial para a "New Scientist"

A tábula rasa do título do livro de Steven Pinker é o "papel em branco destituído de caracteres ou idéias" ao qual o filósofo John Locke [1632-1704] compara a mente quando esta, em seu estado original, aguarda passivamente que a experiência lhe forneça os materiais da razão e do conhecimento. Numa generalização que vai muito além das intenções do próprio Locke, tal comparação induz à idéia de que, antes de ter início a jornada da vida, a mente não possui faculdades nem inclinações próprias. Gottfried Leibniz [1646-1716] e David Hume [1711-76], para mencionar só dois de seus críticos, expuseram a fragilidade do argumento ao indicar que a mente -ou o cérebro- precisa dispor, no mínimo, da capacidade de se aplicar sobre o que quer que a experiência nos forneça. No entanto, segundo o messiânico livro de Pinker, a noção ainda subsiste, com freqüência atrelada (de maneira inconsistente) à convicção romântica de que a mente vazia é intrinsecamente nobre e que a violência, a agressividade e até mesmo a falta de senso de humor ou a insensibilidade auditiva são a conseqüência de pais irresponsáveis, ambiente impróprio ou outros problemas de ordem cultural ou social. Pinker acredita que isso dá margem a todo um conjunto de equívocos práticos, incluindo programas políticos utópicos, projetos insensatos de engenharia social, programas educacionais otimistas e pontos de vista ridículos sobre questões de gênero. Em sua crítica, ele mobiliza as mais modernas das ciências, com destaque para a neurociência, a genética, a teoria da evolução e, em particular, a psicologia evolutiva.

Teorias de gabinete
"Tábula Rasa" é brilhante em vários aspectos. É um livro agradável, informativo, claro, humano e sensível. Pinker tem consciência das emoções e auto-enganos que rodeiam a ciência da natureza humana e passa em revista um grotesco elenco de vilões, do behaviorista B.F. Skinner ao psicólogo Jerome Kagan. Não é fácil ser moralmente sensível quando se desmancham os sonhos das pessoas. Mesmo assim, Pinker dá conta do recado sem jamais abrir mão de enfatizar que os que nutrem ilusões a respeito da boa moral e da boa política precisam reconhecer a verdade sobre os seres humanos e vê-los como eles são, não como gostariam que fossem. Poder-se-ia dizer que o mote político do livro é o comentário que certa vez E.O. Wilson fez sobre Karl Marx: "Teoria maravilhosa. Espécie errada". Tudo isso é correto e muito apropriado. Será, contudo, justificável a ilimitada deferência que Pinker reserva às novas ciências da mente e do cérebro? Em tom retórico ele afirma: "Todo estudante de ciência política aprende que as ideologias políticas se baseiam em teorias sobre a natureza humana. Mas por que baseá-las em teorias que estão desatualizadas há 300 anos?". Não obstante, no capítulo que dedica aos conflitos e à violência, Pinker se apóia explícita e quase exclusivamente nas idéias de Thomas Hobbes [1588-1679]. O mesmo acontece com seus perspicazes comentários sobre a ganância humana e o status, fundamentados em teses dos economistas políticos Adam Smith [1723-90] e Thorstein Veblen [1857-1929]. Pinker contrapõe a verdadeira ciência às teorias "de gabinete". Acontece que a maior parte dos esforços de teorização tem lugar em gabinetes, e autores como os mencionados acima foram talentosos observadores da natureza humana muito antes de se recolherem a seus gabinetes para elaborar teorias.

Consensos opostos
Uma leitura atenta do livro revela que as contribuições da teoria da evolução, da psicologia evolutiva e da neurociência são pequenas ou controversas. Por exemplo: Pinker sustenta haver amplo consenso entre os especialistas de que a exposição à violência exibida pela mídia não torna as crianças mais violentas. Ora, eu li o livro logo depois de ter participado de uma conferência sobre "direito e natureza humana", durante a qual se afirmou, com igual dose de convicção, que o consenso entre os especialistas em relação a esse assunto é exatamente o oposto do mencionado por Pinker.
É evidente que mensurar o que pensam os especialistas é tão difícil quanto mensurar qualquer outra coisa. Não é diferente quando se trata de evolução e psicologia. Pinker aborda com clareza extraordinária a distinção entre mecanismos evolutivos subjacentes (genes egoístas) e mecanismos psicológicos adjacentes (motivações manifestas, como luxúria ou inveja, altruísmo ou malícia). No entanto é necessário apreciar o grau de liberdade que a evolução deixa a esses mecanismos, uma vez que em política e educação tentamos influenciá-los para melhor. E, se desejamos saber mais sobre isso, é provável que Hobbes e Tolstói ainda sejam melhores guias do que a Associação Americana de Psicologia.


Simon Blackburn é professor de filosofia na Universidade de Cambridge (Reino Unido).
Tradução de Alexandre Hubner.


Tábula Rasa
672 págs., R$ 57,00 de Steven Pinker. Trad. Laura Teixeira Motta. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



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