São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

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Gritos de independência

Comemoração dos 200 anos de independência de países latino-americanos reacende debates sobre o que é a democracia no continente

Gil Montano - 19.abr.10/Reuters
Militar passa diante de muro em Caracas com grafite representando Simón Bolívar, herói da independência da Venezuela

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DA ILUSTRADA

As comemorações de 200 anos da vinda da família real ao Brasil, em 2008, tomaram proporções surpreendentes, fazendo com que livros sobre a data virassem best-sellers e acendendo debates na mídia e nas universidades. A cena parece repetir-se agora em vários países da América Latina, por conta dos 200 anos do início dos processos de independência das ex-colônias espanholas.
Cada território o faz com suas particularidades, mas em vários já se veem líderes políticos a usar a efeméride para legitimar discursos patrióticos.
O boliviano Evo Morales e o venezuelano Hugo Chávez foram os primeiros a sair a público evocando os heróis da independência como inspiradores de seus respectivos governos.
Arroubos populistas à parte, o fato é que a data encerra um significado importantíssimo para a história política da América Latina. Em 1810, depois de 300 anos subjugados a um império, os súditos americanos da Coroa espanhola passaram a ser cidadãos de distintas novas nacionalidades.
O processo teve início com os primeiros levantes, a maioria em 1810, e, com algumas idas e vindas, consolidou-se durante a década seguinte.
Tudo começou com o avanço napoleônico contra a Espanha, em 1808, que destituiu o rei espanhol, passando o controle do império a José Bonaparte, irmão de Napoleão. Houve uma resistência sangrenta por parte do povo espanhol, imortalizada nas pinturas de Goya, e um verdadeiro racha nos territórios de além-mar.
Entre as elites crioulas americanas, havia tanto quem defendesse a independência total como quem preferisse apoiar e esperar uma eventual volta do rei. Enquanto isso, de seu exílio no Brasil, a rainha Carlota Joaquina também sonhava reunir os ex-territórios espanhóis sob seu comando.
Na América, alguns dos "cabildos" -órgãos que cumpriam o papel de Câmara Municipal- se manifestaram em favor da ruptura e da formação de um governo próprio. Entre os principais "cabildos" estavam os de Caracas, Buenos Aires, Bogotá e da Cidade do México.
As independências em geral foram levadas adiante por esses grupos, que vinham inspirados pelas ideias liberais burguesas adquiridas por meio de livros, periódicos e viagens ao Velho Continente e aos EUA. Defendiam a liberdade política e comercial, a igualdade jurídica, a legitimidade da propriedade privada, a valorização da educação e o que consideravam a busca pelo progresso.
De modo mais geral, pode-se dizer que as independências latino-americanas estão inseridas no processo de revolução liberal que desde o fim do século 18 pôs fim ao Antigo Regime na Europa.

Tempo de debates
A data também inaugura um período de intenso debate entre intelectuais de diversas origens, que, a partir das décadas seguintes, passaram a escrever em jornais, viajar e levantar a discussão sobre modos de governar e o futuro que se desenhava para as jovens nações.
No caso argentino (leia ao lado), esse debate foi protagonizado, principalmente, pelos integrantes da chamada Geração de 1837 (Juan Bautista Alberdi, Esteban Echeverría) e o autor do clássico "Facundo", Domingo Faustino Sarmiento.
As questões que incomodavam esses intelectuais não eram poucas, como explica a professora de história da América Latina da USP Maria Lígia Coelho Prado.
"Conquistada a independência, era preciso organizar e fazer funcionar os Estados que estavam nascendo. Com a República, vieram a necessidade da construção do espaço público, a ideia de que o poder emanava do povo, a invenção da legitimidade, a realização de eleições periódicas, a escritura de Constituições, a organização dos três Poderes, a definição das fronteiras nacionais."
Para o mexicano Jorge Volpi, autor do recém-lançado "El Insomnio de Bolívar" [A Insônia de Bolívar], o bicentenário das independências vem revelar uma certa apatia no debate político. "O período era muito mais efervescente do ponto de vista da discussão. Hoje os países latino-americanos se isolaram, não se pensa num futuro comum."
No livro, um ensaio que mistura reflexões sobre política e literatura, Volpi analisa a chamada nova esquerda latino-americana e faz duras críticas ao modo como interpretam a democracia. "Chegamos a um nível em que temos sistemas que são democracias imaginárias. No papel, parecem democracias ocidentais, mas na vida prática o cidadão se sente desprotegido e enganado por políticos corruptos, com a desigualdade social se alastrando."
O historiador argentino Luis Alberto Romero lembra que, na ocasião do primeiro centenário, surgiram muitos ensaios, "que transcenderam o alvoroço das festas e apontaram problemas futuros: a questão social, a democracia, as instituições".
Hoje, completa, não vê nada semelhante acontecendo. "Não está havendo reflexão, porque algo está falhando no que deveria ser o centro da discussão, o Estado. Naquele tempo, a elite dirigente tinha muitas dúvidas, mas uma certeza, a ferramenta estatal funcionava. Hoje, cem anos depois, devemos começar reconstruindo-a. Isso constitui o grande desafio do segundo centenário."


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