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Gritos de independência
Comemoração dos 200 anos de independência de países latino-americanos reacende debates sobre
o que é a democracia no continente
Gil Montano - 19.abr.10/Reuters
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Militar passa diante de muro em Caracas com grafite representando Simón Bolívar, herói da independência da Venezuela
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DA ILUSTRADA
As comemorações de
200 anos da vinda
da família real ao
Brasil, em 2008, tomaram proporções
surpreendentes, fazendo com
que livros sobre a data virassem best-sellers e acendendo
debates na mídia e nas universidades. A cena parece repetir-se agora em vários países da
América Latina, por conta dos
200 anos do início dos processos de independência das ex-colônias espanholas.
Cada território o faz com
suas particularidades, mas em
vários já se veem líderes políticos a usar a efeméride para legitimar discursos patrióticos.
O boliviano Evo Morales e o
venezuelano Hugo Chávez foram os primeiros a sair a público evocando os heróis da independência como inspiradores
de seus respectivos governos.
Arroubos populistas à parte,
o fato é que a data encerra um
significado importantíssimo
para a história política da América Latina. Em 1810, depois de
300 anos subjugados a um império, os súditos americanos da
Coroa espanhola passaram a
ser cidadãos de distintas novas
nacionalidades.
O processo teve início com
os primeiros levantes, a maioria em 1810, e, com algumas
idas e vindas, consolidou-se
durante a década seguinte.
Tudo começou com o avanço
napoleônico contra a Espanha,
em 1808, que destituiu o rei espanhol, passando o controle do
império a José Bonaparte, irmão de Napoleão. Houve uma
resistência sangrenta por parte
do povo espanhol, imortalizada
nas pinturas de Goya, e um verdadeiro racha nos territórios
de além-mar.
Entre as elites crioulas americanas, havia tanto quem defendesse a independência total
como quem preferisse apoiar e
esperar uma eventual volta do
rei. Enquanto isso, de seu exílio
no Brasil, a rainha Carlota Joaquina também sonhava reunir
os ex-territórios espanhóis sob
seu comando.
Na América, alguns dos "cabildos" -órgãos que cumpriam
o papel de Câmara Municipal-
se manifestaram em favor da
ruptura e da formação de um
governo próprio. Entre os principais "cabildos" estavam os de
Caracas, Buenos Aires, Bogotá
e da Cidade do México.
As independências em geral
foram levadas adiante por esses grupos, que vinham inspirados pelas ideias liberais burguesas adquiridas por meio de
livros, periódicos e viagens ao
Velho Continente e aos EUA.
Defendiam a liberdade política
e comercial, a igualdade jurídica, a legitimidade da propriedade privada, a valorização da
educação e o que consideravam
a busca pelo progresso.
De modo mais geral, pode-se
dizer que as independências latino-americanas estão inseridas no processo de revolução
liberal que desde o fim do século 18 pôs fim ao Antigo Regime
na Europa.
Tempo de debates
A data também inaugura um
período de intenso debate entre intelectuais de diversas origens, que, a partir das décadas
seguintes, passaram a escrever
em jornais, viajar e levantar a
discussão sobre modos de governar e o futuro que se desenhava para as jovens nações.
No caso argentino (leia ao lado), esse debate foi protagonizado, principalmente, pelos integrantes da chamada Geração
de 1837 (Juan Bautista Alberdi,
Esteban Echeverría) e o autor
do clássico "Facundo", Domingo Faustino Sarmiento.
As questões que incomodavam esses intelectuais não
eram poucas, como explica a
professora de história da América Latina da USP Maria Lígia
Coelho Prado.
"Conquistada a independência, era preciso organizar e fazer funcionar os Estados que
estavam nascendo. Com a República, vieram a necessidade
da construção do espaço público, a ideia de que o poder emanava do povo, a invenção da legitimidade, a realização de eleições periódicas, a escritura de
Constituições, a organização
dos três Poderes, a definição
das fronteiras nacionais."
Para o mexicano Jorge Volpi,
autor do recém-lançado "El Insomnio de Bolívar" [A Insônia
de Bolívar], o bicentenário das
independências vem revelar
uma certa apatia no debate político. "O período era muito
mais efervescente do ponto de
vista da discussão. Hoje os países latino-americanos se isolaram, não se pensa num futuro
comum."
No livro, um ensaio que mistura reflexões sobre política e
literatura, Volpi analisa a chamada nova esquerda latino-americana e faz duras críticas
ao modo como interpretam a
democracia. "Chegamos a um
nível em que temos sistemas
que são democracias imaginárias. No papel, parecem democracias ocidentais, mas na vida
prática o cidadão se sente desprotegido e enganado por políticos corruptos, com a desigualdade social se alastrando."
O historiador argentino Luis
Alberto Romero lembra que, na
ocasião do primeiro centenário, surgiram muitos ensaios,
"que transcenderam o alvoroço
das festas e apontaram problemas futuros: a questão social, a
democracia, as instituições".
Hoje, completa, não vê nada
semelhante acontecendo. "Não
está havendo reflexão, porque
algo está falhando no que deveria ser o centro da discussão, o
Estado. Naquele tempo, a elite
dirigente tinha muitas dúvidas,
mas uma certeza, a ferramenta
estatal funcionava. Hoje, cem
anos depois, devemos começar
reconstruindo-a. Isso constitui
o grande desafio do segundo
centenário."
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