São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

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Ponto de Fuga

Camafeu antigo e raro


A arte de Bidu Sayão repousa no domínio técnico e da musicalidade a serviço da emoção; sua voz era delicada e alcançava o espectador mesmo no mais longínquo poleiro do teatro

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A marca Cembal d'Amour, bastante confidencial, especializou-se em "never-before-published and rare live recordings" (gravações ao vivo, raras e nunca antes publicadas), como eles próprios se apresentam. Publicaram recentemente três CDs reunindo diamantes ignotos: interpretações inéditas de Bidu Sayão [1902-99] em programas de rádio.
Talvez nunca se tenha ouvido tão bem a arte da grande cantora. As boas condições técnicas em que foram captadas, associadas ao clima caloroso, com presença de público, em programas de auditório, favoreceram a percepção de seu timbre e sensibilidade incomparáveis.
Algumas árias fazem parte de seus personagens mais conhecidos: Juliette, Susanna, Mimi. Outras, porém, são novidades absolutas: "Come Serenamente", de "Lo Schiavo", de Carlos Gomes, sentida por ela em modo elegíaco, com maravilhosos pianíssimos, sem a truculência que certos sopranos imprimiram ao papel; o "Lundu da Marquesa de Santos" e "Nhapopê", de Villa-Lobos; "I Hate Music" e "I Just Found Out", de Leonard Bernstein; "O Rouxinol e a Rosa", de Rimsky-Korsakov.
A voz de Bidu Sayão era delicada. Não se caracterizou pelo volume extraordinário. Todos os testemunhos, porém, concordam: alcançava o espectador mesmo no mais longínquo poleiro do teatro. Basta um desses trechos do CD para perceber que a voz se impõe e envolve o ouvinte; o canto "toma o comando", como disse um crítico, e exige a atenção. O timbre sempre foi maravilhosamente homogêneo, a pronúncia sempre clara e perfeita; a inflexão, seja musical, seja dramática, sempre justa.

Lustro
Bidu Sayão começou a estudar com Elena Theodorini, uma cantora de primeira grandeza, romena de nascimento. Depois de brilhante carreira nas grandes salas internacionais, retirou-se no Rio de Janeiro, onde se tornou professora de canto.
Soube ensinar à discípula a técnica impecável que lhe permitiu uma longa carreira sem declínio na voz.
Depois, Bidu Sayão aperfeiçoou-se na França, em Nice, com Jean de Reszke, tenor lendário pela elegância do estilo, pela inteligência do fraseado, mítico predecessor de Caruso no Metropolitan. Estava pronta para enfrentar os teatros mais importantes.
A primeira parte de sua carreira transcorreu sobretudo na Europa. Os papéis que assumiu, como Lucia ou Lakmé, indicam que a voz devia ser leve, ágil, brilhante, com agudos fáceis. Depois de sua estreia no Metropolitan Opera de Nova York, em 1937, tornou-se ali uma grande estrela.
A emissão amadureceu, assentando-se num registro médio mais pleno, de uma beleza que permaneceu intacta. É essa a Bidu Sayão que conhecemos hoje, por meio de gravações em estúdio, ou captadas de apresentações ao vivo.

Excelência
A arte de Bidu Sayão repousa no domínio técnico e da musicalidade a serviço da emoção. Como era incapaz de errar, ela gravava sempre de uma tacada só, dizendo: "Se você não consegue fazer direito da primeira vez, ao repetir, só piora".

Benemérito
A marca Cembal d'Amour pertence ao pianista Mordecai Shehori. Foi ele quem redigiu o livreto no CD sobre Bidu Sayão.
Escreve: "Ao ouvir estas interpretações ao vivo, admira-se o domínio técnico, a perfeita entonação, a dicção clara e a estrutura das frases musicais, cunhadas com sofisticação e bom gosto. Mas, acima de tudo, o que comove até as lágrimas é a força veemente com que Bidu Sayão nos comunica as emoções essenciais da música". Mais informações em www. cembaldamour.com.


jorgecoli@uol.com.br


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