São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(S)ociedade

Politicamente duvidoso

Observado pela Stasi, a polícia política da Alemanha Oriental, o Prêmio Nobel de Literatura Günter Grass comenta detalhes da vigilância a que foi submetido e os limites da espionagem em plena Guerra Fria

CRISTOF SIEMES

Em suas viagens à República Democrática Alemã (RDA), Günter Grass visitava colegas escritores que viviam sob censura cerrada do regime socialista.
Vigiado pela Stasi, o serviço secreto da Alemanha Oriental, toda vez que cruzava a fronteira, mas também por meio de informantes na República Federal da Alemanha (RFA), o autor de "O Tambor" relata, em entrevista ao jornal alemão "Die Zeit", que não se sentia, de fato, ameaçado, diferentemente dos escritores da RDA.
Para ele, driblar a censura possibilitou a autores alemães orientais experimentarem "todas as possibilidades imagináveis". Crítico em relação às duas Alemanhas, Grass foi descrito pela Stasi como "politicamente duvidoso".

 

PERGUNTA - Quando o sr. ficou sabendo da sua ficha na Stasi?
GÜNTER GRASS -
Fui informado pelo "Órgão Gauck" [apelido da agência encarregada dos arquivos da Stasi]. Mas, nos primeiros anos depois da queda do Muro [de Berlim], não quis saber de nada nem permitir que alguém tivesse acesso. Com um argumento, que vale hoje como no passado: diferentemente de colegas escritores da RDA, não fui prejudicado. Também não quis saber quem me espionou.

PERGUNTA - Por que não?
GRASS -
Porque já perdi um número suficiente de amigos.

PERGUNTA - O sr. pensou antes de suas viagens à RDA sobre o que a Stasi provavelmente faria?
GRASS -
No fundo, não. Nós, que quase sempre entrávamos em grupo de Berlim Ocidental, não tínhamos conhecimento da extensão da espionagem. Nas nossas visitas a colegas escritores da RDA, éramos acompanhados a partir da estação Friedrichstrasse de modo mais ou menos perceptível. Nossa suspeita de grampos nas residências não foi confirmada. Mas, às vezes, falávamos como se elas estivessem grampeadas e apresentávamos charadas literárias aos eventuais ouvintes da Stasi.

PERGUNTA - O intercâmbio entre os escritores da Alemanha Ocidental e da Alemanha Oriental era livre?
GRASS -
As conversas formavam um contraponto absoluto a esses cuidados ameaçadores, custosos e burocráticos do Estado alemão oriental. A razão dessas conversas era a necessidade de não perder o contato. A melhor maneira de organizar as conversas era o conhecido modelo do Grupo 47 [de escritores e críticos alemães ocidentais]: líamos textos para os colegas, em oficinas de literatura. Disso, com certeza, resultou um ou outro jogo de palavras com viés político. Mas tudo o que foi colocado de segundas intenções secretas nessas conversas -de que o meu interesse mais urgente era recrutar autores para o Ocidente, encorajá-los a ir à Alemanha Ocidental- é pura invenção.

PERGUNTA - Na sua ficha aparecem muitos nomes com erros de ortografia, títulos incorretos de obras, nexos não compreendidos. Ao que tudo indica, os espiões não estavam muito familiarizados com a literatura e o seu universo.
GRASS -
E isso não valia apenas para os escritores da Alemanha Ocidental, mas para os da própria RDA. Eles nem estavam em condições de avaliar o que, no fundo, nos aproximava: o interesse pela literatura.

PERGUNTA - A onisciência da Stasi foi superestimada?
GRASS -
Sim. Naturalmente ela era uma ameaça para a população. Mas não conseguiu atingir seu objetivo, que era conservar o Estado.

PERGUNTA - O sr. alguma vez se sentiu ameaçado em suas viagens à RDA?
GRASS -
Não. Só uma vez, na minha entrada, eles examinaram minha pasta e encontraram vários exemplares da revista "L'80", que eu editava juntamente com [os escritores] Heinrich Böll e Carola Stern e que defendia um socialismo democrático. Isso era para a RDA mais perigoso do que Franz Josef Strauss [político conservador ocidental] e tudo o que vinha da direita. Não cheguei a ser preso, mas fui instado com veemência a acompanhar um dos funcionários da fronteira até uma sala sem janelas. Quando eles fecharam a porta, armei um escândalo. Bati com os punhos na porta de metal e lembrei-me de uma frase do meu breve período de serviço militar: "Quero falar com o oficial de plantão". Quando este chegou, perguntei-lhe: "O que o sr. tem contra as revistas? Elas defendem um socialismo democrático! Se isso lhe interessa, fique com os exemplares, tenho outros em casa".

PERGUNTA - O sr., antes das viagens, pensava que alguns dos seus interlocutores pudessem ser informantes da Stasi?
GRASS -
Não. Mesmo no caso de Hans Marquardt, que publicou minha obra na editora Reclam, não supus nada disso. Como editor, ele arriscou fazer coisas que outros não teriam ousado fazer. Nunca teria me ocorrido imaginar que ele fosse um informante regular da Stasi. Para mim, foi também inteiramente surpreendente que Hermann Kant já escrevera tão cedo os primeiros relatórios a meu respeito, já em 1961.

PERGUNTA - O sr. teve sentimentos de vingança contra os que o espionaram?
GRASS -
Não, nunca. Fiquei desiludido com Marquardt, pois ele nos convidara para sua casa e informou depois com fanfarronice as nossas conversas, conforme mostra a documentação da Stasi. Já o irmão de Hans Joachim Schädlich, Karlheinz Schädlich, um dos informantes mais zelosos, teve um fim trágico. Suicidou-se.

PERGUNTA - Alguns autores, Frank-Wolf Matthies ou Lutz Rathenow, tiveram sérias dificuldades por terem se encontrado com o sr. Teria preferido não encontrá-los?
GRASS -
A decisão foi deles. Nós não os importunamos, eles nos convidaram. Isso foi na fase final, quando tinham surgido grupos de protesto que não ligavam mais para a repressão. No caso dessa gente, na sua maioria jovens, a Stasi praticamente reagiu em pânico, muitos foram presos. As consequências eram conhecidas de antemão.

PERGUNTA - O sr. não tomou nenhum cuidado nas suas idas à RDA?
GRASS -
Só quando alguém estava envolvido concretamente. No mais, não só não deixei de dar um nome aos bois, mas insisti em discussões. Os arquivos da Stasi mostram com clareza que determinadas pessoas, previamente instruídas para fazer perguntas, foram introduzidas nas conversas, mas não adiantou. Afinal de contas, algumas questões urgentes foram formuladas, assim, por exemplo: "Devemos ficar aqui ou requerer licença para sair do país?"

PERGUNTA - O que o sr. recomendava?
GRASS -
Do ponto de vista de um alemão ocidental, sempre era difícil dar uma resposta a essa pergunta. Dizia que conseguia compreender qualquer pessoa que não mais pudesse suportar essa realidade opressora e limitadora. Mas, se todos os que têm um comportamento crítico saem, a realidade não muda.

PERGUNTA - O sr. se preocupava com a possibilidade de que os emigrados pudessem não se ambientar na Alemanha Ocidental?
GRASS -
Há alguns exemplos disso. Hoje, em retrospectiva, eu diria: os escritores alemães orientais perderam o seu objeto, a superfície de atrito, seu tema, quando chegaram à Alemanha Ocidental. Poucos conseguiram superar a mudança sem baixar de nível na produção literária. Na RDA, eles experimentaram, sob a censura lá existente, todas as possibilidades imagináveis, que fatigavam o sistema e escreviam livros que chamavam a atenção não apenas no seu país, mas eram publicados também no Ocidente.

PERGUNTA - Em uma de suas inúmeras avaliações, a Stasi o caracteriza como "politicamente duvidoso".
GRASS -
Isso se deve ao fato de eu abordar em perspectiva crítica a realidade da RFA assim como a realidade da RDA. Tais coisas não existiam no pensamento e na ação dos colegas orientais. Eles precisavam tomar partido.

PERGUNTA - Sua ficha também contém registros minuciosos sobre suas últimas viagens à RDA em 1987 e 1988. Como foi o clima naqueles tempos?
GRASS -
O Estado estava inseguro e reagia a esse sentimento de insegurança ora com suavidade e indecisão, ora com zelo exagerado. O esforço feito para controlar minha viagem semiparticular foi inacreditável. Eles cuidaram até para que eu não visitasse bairros deteriorados de Stralsund. Veja as preocupações dessa gente!

PERGUNTA - Como o sr. avalia o modo de lidar com os arquivos depois de 1990?
GRASS -
A Stasi só produziu êxitos depois do desaparecimento da RDA, pois esse monstro colocou lenha na fogueira da suspeita generalizada do Ocidente de que cada cidadão da RDA poderia ser um informante da Stasi. Ao lado de todos os outros ônus, essa suspeição também contribuiu para a insegurança de toda a população. Diferentemente de nós, alemães ocidentais, os alemães orientais não puderam acumular experiências com a democracia. As pessoas da minha geração saíram de uma ditadura para entrar em outra. Tudo somado, o ônus maior da guerra perdida por todos os alemães foi suportado pelos 18 milhões de cidadãos da RDA. Deveriam ter pensado nisso quando finalmente surgiu a oportunidade da unificação. Em vez disso, tivemos a vitória dessa visão ocidental que pensa saber tudo melhor que os outros. Simplesmente acreditaram nos arquivos da Stasi, como se contivessem a verdade.

PERGUNTA - Qual teria sido a alternativa? Enterrar os arquivos sob uma montanha de concreto armado, como se fez com a usina nuclear de Tchernobil?
GRASS -
Evidentemente não. Fui a favor de preservar os arquivos, de recompor o que fora destruído pela máquina de picar papel e de proteger esses documentos contra qualquer abuso. Mas houve uma época em que a mera suspeita de ter sido informante da Stasi levou várias pessoas ao suicídio. Mais tarde se verificou que as suspeitas não tinham fundamento.

PERGUNTA - O que deveríamos aprender com a publicação da documentação sobre a sua pessoa?
GRASS -
É interessante constatar que na época, quando eu era considerado um dos principais inimigos da RDA, convidaram-me periodicamente na Alemanha Ocidental para que eu fosse "para o outro lado", como se dizia naquela época. Fui tratado como um comunista camuflado não apenas pela imprensa do grupo Springer [império midiático conservador na RFA]. Depois de ter lido as mais de 2.000 páginas do arquivo da Stasi, desejaria agora conhecer a documentação que o Serviço Federal de Inteligência [da RFA] juntou sobre a minha pessoa.

PERGUNTA - O sr. acha que esse arquivo tem o mesmo tamanho?
GRASS -
O número de páginas não importa. Mas a possibilidade de vista certamente seria ilustrativa para complementar uma visão em perspectiva alemã integrada. Ocorre que esse material, até agora, está bloqueado.


A íntegra desta entrevista foi publicada no jornal alemão "Die Zeit".
Tradução de Peter Naumann.


Texto Anterior: +(L)ivros: De olho nos negócios
Próximo Texto: Quando jovem, autor foi recrutado pela SS
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.