|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(S)ociedade
Politicamente duvidoso
Observado pela Stasi, a polícia política da Alemanha Oriental, o Prêmio Nobel de Literatura Günter Grass comenta detalhes da vigilância a que foi submetido e os limites da espionagem em plena Guerra Fria
CRISTOF SIEMES
Em suas viagens à República Democrática
Alemã (RDA), Günter
Grass visitava colegas
escritores que viviam
sob censura cerrada do regime
socialista.
Vigiado pela Stasi, o serviço
secreto da Alemanha Oriental,
toda vez que cruzava a fronteira, mas também por meio de
informantes na República Federal da Alemanha (RFA), o autor de "O Tambor" relata, em
entrevista ao jornal alemão
"Die Zeit", que não se sentia, de
fato, ameaçado, diferentemente dos escritores da RDA.
Para ele, driblar a censura
possibilitou a autores alemães
orientais experimentarem "todas as possibilidades imagináveis". Crítico em relação às
duas Alemanhas, Grass foi descrito pela Stasi como "politicamente duvidoso".
PERGUNTA - Quando o sr. ficou sabendo da sua ficha na Stasi?
GÜNTER GRASS - Fui informado
pelo "Órgão Gauck" [apelido da
agência encarregada dos arquivos da Stasi]. Mas, nos primeiros anos depois da queda do
Muro [de Berlim], não quis saber de nada nem permitir que
alguém tivesse acesso.
Com um argumento, que vale
hoje como no passado: diferentemente de colegas escritores
da RDA, não fui prejudicado.
Também não quis saber quem
me espionou.
PERGUNTA - Por que não?
GRASS - Porque já perdi um número suficiente de amigos.
PERGUNTA - O sr. pensou antes de
suas viagens à RDA sobre o que a
Stasi provavelmente faria?
GRASS - No fundo, não. Nós,
que quase sempre entrávamos
em grupo de Berlim Ocidental,
não tínhamos conhecimento
da extensão da espionagem.
Nas nossas visitas a colegas escritores da RDA, éramos acompanhados a partir da estação
Friedrichstrasse de modo mais
ou menos perceptível.
Nossa suspeita de grampos
nas residências não foi confirmada. Mas, às vezes, falávamos
como se elas estivessem grampeadas e apresentávamos charadas literárias aos eventuais
ouvintes da Stasi.
PERGUNTA - O intercâmbio entre os
escritores da Alemanha Ocidental e
da Alemanha Oriental era livre?
GRASS - As conversas formavam um contraponto absoluto
a esses cuidados ameaçadores,
custosos e burocráticos do Estado alemão oriental. A razão
dessas conversas era a necessidade de não perder o contato.
A melhor maneira de organizar as conversas era o conhecido modelo do Grupo 47 [de escritores e críticos alemães ocidentais]: líamos textos para os
colegas, em oficinas de literatura. Disso, com certeza, resultou
um ou outro jogo de palavras
com viés político.
Mas tudo o que foi colocado
de segundas intenções secretas
nessas conversas -de que o
meu interesse mais urgente era
recrutar autores para o Ocidente, encorajá-los a ir à Alemanha
Ocidental- é pura invenção.
PERGUNTA - Na sua ficha aparecem
muitos nomes com erros de ortografia, títulos incorretos de obras, nexos não compreendidos. Ao que tudo indica, os espiões não estavam
muito familiarizados com a literatura e o seu universo.
GRASS - E isso não valia apenas
para os escritores da Alemanha
Ocidental, mas para os da própria RDA. Eles nem estavam
em condições de avaliar o que,
no fundo, nos aproximava: o interesse pela literatura.
PERGUNTA - A onisciência da Stasi
foi superestimada?
GRASS - Sim. Naturalmente ela
era uma ameaça para a população. Mas não conseguiu atingir
seu objetivo, que era conservar
o Estado.
PERGUNTA - O sr. alguma vez se
sentiu ameaçado em suas viagens à
RDA?
GRASS - Não. Só uma vez, na
minha entrada, eles examinaram minha pasta e encontraram vários exemplares da revista "L'80", que eu editava juntamente com [os escritores]
Heinrich Böll e Carola Stern e
que defendia um socialismo democrático. Isso era para a RDA
mais perigoso do que Franz Josef Strauss [político conservador ocidental] e tudo o que vinha da direita.
Não cheguei a ser preso, mas
fui instado com veemência a
acompanhar um dos funcionários da fronteira até uma sala
sem janelas.
Quando eles fecharam a porta, armei um escândalo. Bati
com os punhos na porta de metal e lembrei-me de uma frase
do meu breve período de serviço militar: "Quero falar com o
oficial de plantão".
Quando este chegou, perguntei-lhe: "O que o sr. tem contra
as revistas? Elas defendem um
socialismo democrático! Se isso lhe interessa, fique com os
exemplares, tenho outros em
casa".
PERGUNTA - O sr., antes das viagens, pensava que alguns dos seus
interlocutores pudessem ser informantes da Stasi?
GRASS - Não. Mesmo no caso
de Hans Marquardt, que publicou minha obra na editora Reclam, não supus nada disso.
Como editor, ele arriscou fazer
coisas que outros não teriam
ousado fazer. Nunca teria me
ocorrido imaginar que ele fosse
um informante regular da Stasi. Para mim, foi também inteiramente surpreendente que
Hermann Kant já escrevera tão
cedo os primeiros relatórios a
meu respeito, já em 1961.
PERGUNTA - O sr. teve sentimentos
de vingança contra os que o espionaram?
GRASS - Não, nunca. Fiquei desiludido com Marquardt, pois
ele nos convidara para sua casa
e informou depois com fanfarronice as nossas conversas,
conforme mostra a documentação da Stasi. Já o irmão de
Hans Joachim Schädlich, Karlheinz Schädlich, um dos informantes mais zelosos, teve um
fim trágico. Suicidou-se.
PERGUNTA - Alguns autores, Frank-Wolf Matthies ou Lutz Rathenow, tiveram sérias dificuldades por terem
se encontrado com o sr. Teria preferido não encontrá-los?
GRASS - A decisão foi deles. Nós
não os importunamos, eles nos
convidaram. Isso foi na fase final, quando tinham surgido
grupos de protesto que não ligavam mais para a repressão.
No caso dessa gente, na sua
maioria jovens, a Stasi praticamente reagiu em pânico, muitos foram presos. As consequências eram conhecidas de
antemão.
PERGUNTA - O sr. não tomou nenhum cuidado nas suas idas à RDA?
GRASS - Só quando alguém estava envolvido concretamente.
No mais, não só não deixei de
dar um nome aos bois, mas insisti em discussões. Os arquivos
da Stasi mostram com clareza
que determinadas pessoas, previamente instruídas para fazer
perguntas, foram introduzidas
nas conversas, mas não adiantou. Afinal de contas, algumas
questões urgentes foram formuladas, assim, por exemplo:
"Devemos ficar aqui ou requerer licença para sair do país?"
PERGUNTA - O que o sr. recomendava?
GRASS - Do ponto de vista de
um alemão ocidental, sempre
era difícil dar uma resposta a
essa pergunta. Dizia que conseguia compreender qualquer
pessoa que não mais pudesse
suportar essa realidade opressora e limitadora. Mas, se todos
os que têm um comportamento
crítico saem, a realidade não
muda.
PERGUNTA - O sr. se preocupava
com a possibilidade de que os emigrados pudessem não se ambientar
na Alemanha Ocidental?
GRASS - Há alguns exemplos
disso. Hoje, em retrospectiva,
eu diria: os escritores alemães
orientais perderam o seu objeto, a superfície de atrito, seu tema, quando chegaram à Alemanha Ocidental. Poucos conseguiram superar a mudança sem
baixar de nível na produção literária.
Na RDA, eles experimentaram, sob a censura lá existente,
todas as possibilidades imagináveis, que fatigavam o sistema
e escreviam livros que chamavam a atenção não apenas no
seu país, mas eram publicados
também no Ocidente.
PERGUNTA - Em uma de suas inúmeras avaliações, a Stasi o caracteriza como "politicamente duvidoso".
GRASS - Isso se deve ao fato de
eu abordar em perspectiva crítica a realidade da RFA assim
como a realidade da RDA. Tais
coisas não existiam no pensamento e na ação dos colegas
orientais. Eles precisavam tomar partido.
PERGUNTA - Sua ficha também
contém registros minuciosos sobre
suas últimas viagens à RDA em 1987
e 1988. Como foi o clima naqueles
tempos?
GRASS - O Estado estava inseguro e reagia a esse sentimento
de insegurança ora com suavidade e indecisão, ora com zelo
exagerado. O esforço feito para
controlar minha viagem semiparticular foi inacreditável.
Eles cuidaram até para que eu
não visitasse bairros deteriorados de Stralsund. Veja as preocupações dessa gente!
PERGUNTA - Como o sr. avalia o
modo de lidar com os arquivos depois de 1990?
GRASS - A Stasi só produziu
êxitos depois do desaparecimento da RDA, pois esse monstro colocou lenha na fogueira
da suspeita generalizada do
Ocidente de que cada cidadão
da RDA poderia ser um informante da Stasi.
Ao lado de todos os outros
ônus, essa suspeição também
contribuiu para a insegurança
de toda a população.
Diferentemente de nós, alemães ocidentais, os alemães
orientais não puderam acumular experiências com a democracia. As pessoas da minha geração saíram de uma ditadura
para entrar em outra. Tudo somado, o ônus maior da guerra
perdida por todos os alemães
foi suportado pelos 18 milhões
de cidadãos da RDA.
Deveriam ter pensado nisso
quando finalmente surgiu a
oportunidade da unificação.
Em vez disso, tivemos a vitória
dessa visão ocidental que pensa
saber tudo melhor que os outros. Simplesmente acreditaram nos arquivos da Stasi, como se contivessem a verdade.
PERGUNTA - Qual teria sido a alternativa? Enterrar os arquivos sob
uma montanha de concreto armado, como se fez com a usina nuclear
de Tchernobil?
GRASS - Evidentemente não.
Fui a favor de preservar os arquivos, de recompor o que fora
destruído pela máquina de picar papel e de proteger esses
documentos contra qualquer
abuso. Mas houve uma época
em que a mera suspeita de ter
sido informante da Stasi levou
várias pessoas ao suicídio. Mais
tarde se verificou que as suspeitas não tinham fundamento.
PERGUNTA - O que deveríamos
aprender com a publicação da documentação sobre a sua pessoa?
GRASS - É interessante constatar que na época, quando eu era
considerado um dos principais
inimigos da RDA, convidaram-me periodicamente na Alemanha Ocidental para que eu fosse
"para o outro lado", como se dizia naquela época.
Fui tratado como um comunista camuflado não apenas pela imprensa do grupo Springer
[império midiático conservador na RFA]. Depois de ter lido
as mais de 2.000 páginas do arquivo da Stasi, desejaria agora
conhecer a documentação que
o Serviço Federal de Inteligência [da RFA] juntou sobre a minha pessoa.
PERGUNTA - O sr. acha que esse arquivo tem o mesmo tamanho?
GRASS - O número de páginas
não importa. Mas a possibilidade de vista certamente seria
ilustrativa para complementar
uma visão em perspectiva alemã integrada. Ocorre que esse
material, até agora, está bloqueado.
A íntegra desta entrevista foi publicada no jornal alemão "Die Zeit".
Tradução de Peter Naumann.
Texto Anterior: +(L)ivros: De olho nos negócios Próximo Texto: Quando jovem, autor foi recrutado pela SS Índice
|