São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

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+mais! (1992 - 2010)

O Mais! deixa de circular, legando exemplos de liberdade e atualidade na abordagem de temas culturais

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

Quando o Mais! foi lançado, em 16 de fevereiro de 1992, uma das brincadeiras que mais ouvi, dentro e fora da Redação, indagava: "O caderno chama-se Mais! ou chama-se "Menos'?".
A reclamação, a princípio, fazia sentido.
O veículo foi criado para reunir num só lugar dois produtos bem-sucedidos do jornal: "Ciência" e "Letras". Também agregava assuntos da Ilustrada, que deixou de circular aos domingos, e uma seção que existia em Mundo, chamada "Multimídia Especial".
A criação do número 1, sob o comando de seu talentoso primeiro editor, Marcos Augusto Gonçalves, foi uma aventura que dificilmente esquecerei.
Como fazer caber em suas 18 páginas parte do conteúdo habitual de todos aqueles cadernos suprimidos, mas sobretudo realizar uma "renovação do jornalismo cultural brasileiro", como o Mais! fora anunciado nas páginas do jornal?
Em oposição ao espírito acadêmico e literário que predominava nos cadernos culturais semanais da época, este foi erguido sobre o seguinte tripé: mais jornalismo, mais atenção aos temas atuais e mais intervenção polêmica no debate sociocultural (e mesmo político) brasileiro.
Na conta do jornalismo, praticamente todos os principais repórteres do jornal escreveram matérias de envergadura para o Mais!. O empenho dos editores Adriano Schwartz e Marcos Flamínio Peres fez adensar essa estratégia, que culminou nos anos recentes nas premiadas reportagens de Mário Magalhães e Joel Silva ("Os anti-heróis - O submundo da cana", 24/8/2008) e Raphael Gomide ("O Infiltrado -PM por dentro", 18/5/2008).
O caderno também cuidou de levar para o jornalismo cultural sofisticado os princípios que norteiam o "Manual da Redação" da Folha, inclusive no que diz respeito aos modelos de edição do jornal, com uso intensivo de recursos didáticos, mapas, gráficos e estatísticas.

Futurismo
A preocupação com trazer temas atuais à pauta, por sua vez, foi um modo de evitar a tendência ao passadismo e à museificação, que continuam sendo verdadeiras pragas do jornalismo cultural. Com isso, o semanário abriu-se a assuntos muito variados e heterodoxos, às vezes futuristas.
Foi o primeiro espaço da grande imprensa a levar a sério a internet, quando a web ainda era apenas uma fantasia (17/7/ 1994, em reportagem visionária de Maria Ercilia). Abro a edição de 9/4/2000, e vejo que o assunto de capa ("O livro morreu! Viva o e-livro!") traz uma reportagem minuciosa sobre as experiências com livros eletrônicos -dez anos antes do Kindle e do iPad.
Deixar o caderno bem próximo da atualidade exigia um trabalho imenso. Para começar, era fundamental ao editor e à equipe ter um sentimento acentuado de pertencimento à sua época. Precisávamos também ser tremendamente ágeis, porque não interessava ao Mais! a atualidade abstrata, mas o que havia acontecido na última semana. Recordo que, inúmeras vezes, edições já prontas foram substituídas por outras, na última hora, para trazer à capa um assunto mais quente e mais relevante no momento vivido pelo leitor.
Com isso, a partir de exemplos concretos e no calor dos acontecimentos, os principais debates do final do século 20 e do início do século 21 foram abordados: o fim do comunismo, a crise da esquerda, a globalização, o multiculturalismo, as políticas afirmativas, o colapso da psicanálise, a neurociência, a bioética, a entrada na era digital, o terrorismo e a política securitária pós-11 de Setembro, o neoconservadorismo etc. etc.
A ambição de intervir no debate sociocultural e político brasileiro também excitava muito os que participavam do caderno. Um dos "momentos culminantes" desse esforço jornalístico foi o debate desencadeado pelo economista José Luis Fiori, em reportagem de Fernando de Barros e Silva (de 3/7/1994), sobre a influência das diretrizes neoliberais do Consenso de Washington no plano de governo do então candidato presidencial Fernando Henrique Cardoso. Foi uma gigantesca polêmica, e o próprio FHC interrompeu a campanha para redigir uma longa réplica à reportagem.

Liberdade
À parte o tripé que associava jornalismo, atualidade e intervenção, o Mais! tinha outra base editorial, nos bastidores: mais irreverência, mais reflexão e mais liberdade. Das irreverências, dou apenas um exemplo (há vários).
Dezenas de pessoas cancelaram sua assinatura do jornal no dia seguinte à publicação de uma antologia de poemas dedicados à vagina.
Para piorar, a edição (20/7/ 1997) estampava na capa o quadro "A Origem do Mundo", de Courbet -o "close" pictórico de uma genitália-, numa disposição gráfica arrojada e elegante, criada por Renata Buono, a designer que sempre esteve por trás da excelência visual do caderno.
Outra atitude foi a de nunca considerar o leitor um néscio e sempre acreditar que ele se interessa pelas reflexões mais complexas e mais ousadas. A editoria evitou a todo custo cair no anti-intelectualismo ou na aversão às "vanguardas" das artes e do pensamento -ressentimentos que atingem com frequência o meio jornalístico.
Assim, abriu-se à colaboração inestimável de um numeroso elenco de professores, intelectuais, escritores, dramaturgos, cineastas e artistas plásticos, entre outros profissionais, do Brasil e do exterior, dos mais diferentes matizes políticos e das mais diversas correntes culturais. Sem eles, teria sido apenas um caderno cultural qualquer.
Foi a tradição editorial da Folha de um jornalismo polifônico, aberto e tolerante -tradição erguida na luta contra a ditadura militar- que inspirou e alimentou essa dinâmica colaborativa, multidisciplinar e calcada na liberdade de pensamento.
É esta mesma liberdade, creio, o principal legado do Mais! ao novo e ilustríssimo caderno que o substituirá, a partir do próximo domingo.


ALCINO LEITE NETO foi editor do Mais! de 1994 a 2000.


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